sexta-feira, dezembro 28, 2007

Palavras minhas e tuas...

As palavras que não digo,
Di-las o meu olhar franco;
São como versos em branco,
São duas mãos de um mendigo.

São palavras exclamadas
No rumor dessa presença;
São, no fundo, a recompensa
De tantas noites roubadas.

No perfil do meu desejo
Restam palavras de enleio,
E brotam brados de anseio
P'la maravilha de um beijo.

28/12/2007
22:15

sábado, dezembro 22, 2007

Turbilhão de ideias...

As ideias são como um turbilhão de água e espuma,
Só que mais difusas,
Menos palpáveis,
Esquivas até de si mesmas.
São como esse turbilhão que o mar anuncia ao mover-se,
Rotina atrás de rotina,
Num momento em que duas rotinas previsíveis se intercalam de um solavanco,
Brusco,
Que eleva a espuma como a mente se confunde de cinzas,
Não por ter ardido,
Simplesmente por ter sonhado dominar turbilhão como o das ideias.

Só eu.
Mas eu não conto...

21/28/2007
21:28

domingo, dezembro 16, 2007

Sonhar contigo...

Sonho
Esvaír-me sem solenidades desta textura matizada,
Padrão enraizado das efemérides da paixão.

Iminência de explosivo,
Autocarro armadilhado na praça do meu instinto...

A inexpugnável demência de possuir a virtude de sonhar
Todas as libertinas alvoradas
Ao lado da tua cativante presença.

16/12/2007
18:37

sábado, dezembro 15, 2007

Entrelaçados.

Sentir-te é sentir o infinito,
Teia visceral de movimentos perpétuos,
Voláteis aromas de ocasos sublimados,
E a redundância irrepetível e inebriante da eternidade.

Quantas manhãs serão precisas para atingir a omnisciência?

sábado, dezembro 08, 2007

Confissões...

O que tu és em mim
É seres brisa quando eu sou braseiro,
Qual fole que levanta labaredas do que antes não passava do cadáver duma fogueira…
O que tu és de mim
É a vontade de chegar ao outro lado da vontade,
Silogismo eloquente de parquíssimo conteúdo,
Afinal bulício inquieto de um inquieto fascínio.
O que tu és comigo,
Duas galáxias em colisão,
Um buraco negro que é refúgio das nossas fragrâncias,
E a imensidão do tempo que é morada de segredos…
O que eu sou sem ti
É o sopro da madrugada e a solidão de uma água-furtada,
Que nem Deus ousa perturbar quem tão fremente espera,
E a densidade não palpável da saudade que se multiplica…
O que eu e tu somos,
Dois universos tangentes,
Dois fragmentos de alma,
Duas sedes, dois vagares,
Mas uma, uma só viagem…

27/11/2007
1:03

sexta-feira, dezembro 07, 2007

Drips and drops...

Drips and drops,
Clefs and staves and crotchets of emptiness,
An inconspicuous nothing from where the miracle emerges.
Listening carefully to the admirable lyricism of the phenomenon,
Whose richness and virtue are intangible as the language itself,
My thoughts dwell through alien idioms and conspiracy theories,
Through those other miracle we call mysterious,
Only to find the intricate roar of the namelessness,
And to drown inevitably in an anonym matter of singular consistency.

The slumbers of my brain are not allowed to descry the indivisible unit of thought,
That quantum of information that plays hide and seek with my discernment.
Tragedy is, alas, the form and content of the human intellect,
Bounded to an eternal pursuit which can never reach a single checkpoint,
Disgraceful is the human nature that seeks its very questions to unknowable answers.

Drips and drops are the subtle and almost indistinguishable flashes of consciousness we so rarely experience,
Running off a dead end tube made out from mathematics and sexual arousal.
It’s just like an ethereal arpeggio,
One we can imagine, conceive and plan
(Even smell or taste)
But never bring to existence,
Chained forever to a latent reality,
Perhaps beyond a black hole or a mirrored surface.

I hear echoes below the depths of the mind,
But they must be just a bunch of kids fooling around my frustration…

03/12/2007
4:20

domingo, dezembro 02, 2007

Sempre...

Todos os dias sou profano
Todas as noites sãos meus dias
Todas as horas, desengano
Todas as horas, heresias

Todos os dias sou secreto
Todos os meses, vagabundo
Todas as horas, chão e tecto
Todas as horas num segundo

Todos os dias, foragido
Todos os anos, inconstante
Todas as horas sem sentido
Todas as horas, um instante

Todos os dias sou um fim
Todos os séculos, poeira
Todas as horas são de mim
Todas as horas sem fronteira

Todos os dias sou miragem
Todas as eras sem medida
Todas as horas, a coragem
Todas as horas, uma vida

19/10/2007
3:52

sábado, dezembro 01, 2007

Tenho a mente em obras...

Tenho a mente em obras…

Ontem,
(ou hoje, que o ontem só existe enquanto é hoje)
Um edifício centenário
(apesar de nem ter uma vintena de existência)
Na movimentada praça
(pelo menos nos dias úteis)
Do meu cérebro
(quantas sinapses ainda me restarão?)
Ameaçou ruir
(apesar de ilusório, o tempo sempre vai deixando a sua marca)
Irremediavelmente,
(ainda que, em boa sabedoria popular, só a morte não tenha remédio)
Pelo que a equipa de especialistas
(talvez um ou dois recém-licenciados de dúbia competência)
Prontamente avaliou o risco de derrocada
(o quê?)
E deitou mãos à obra,
(outro parêntese, outra pedra que resvala do seu pousio)
Numa tentativa desesperada de remediar
(não a morte, por certo)
Aquilo que era já sabido de antemão:
(o oráculo de Bellini faz milagres)
Tudo acaba por se desvanecer às mãos inexoráveis de Saturno,
(ou Cronos, se em grego arcaico preferirmos exprimir-nos)
E nem a sagrada mão do divino
(a mesma mão que, afinal, cria e destrói)
Poderia salvar aquelas quatro paredes,
(ainda hei-de ter uma casa oval)
Entregues à sua demanda última pelos trilhos da realidade.
(haja quem ainda guarde esperança no divino)

Tudo isto para contextualizar,
Que não seja inusitado este discurso,
O alvoroço que agora povoa os meus pensamentos.
O certo,
Por mais incerto,
É que tenho a mente em obras…

18/10/2007
5:29

quinta-feira, novembro 22, 2007

O corredor da morte.

Frestas de luz desvendam um caminho sinuoso.
Vêm do postigo que alguém compassivo cuidou de entreabrir,
Algum foragido morador ou apenas a ventania zelosa.
Em passos cautelosos, embrenho-me na escuridão do corredor,
Frio, inóspito, vazio…
A mão, que se aquecia no bolso, apalpa agora as rugosas paredes,
Guiando na sombra os olhos que a não podem ver.
A humidade resvala pelas arestas,
E embora a treva não permita que se enxergue,
O tecto é um tapete esverdeado de musgo já sem idade.

Um fugaz relâmpago oferece o mais imperceptível lampejo da passagem:
Duas paredes rigorosamente paralelas cujo término fica para além do alcance da vista;
Um tecto abaulado que, agora sim, se verifica coberto de verde carapinha;
E uma quase irreal extensão de chão tosco que se encaminha em direcção a nada.

Cada passo é uma gota de suor que me escorre pela testa,
E a cada passo, inexprimível consternação, tenho que recordar-me do meu propósito.
‘Já falta pouco’, minto a mim próprio,
Os lábios tremendo de sede e de ansiedade.
‘Vai valer a pena’, insisto em convencer-me,
As pernas cansadas da caminhada.
‘Nada se faz sem esforço’, torno a dizer,
Mas a mente é agora um local inabitável.

Tombam os joelhos sobre o implacável pavimento,
As mãos agarram os cabelos,
E os cotovelos erguidos soltam clamores que a voz já não consegue.
Do último relâmpago, já só se ouviu o estrondo do trovão,
Diluída a sua parca luminosidade pela bruma inescrutável,
Afinal única residente naquele lugar maldito.

O cenário é agora um turbilhão de sufocante opacidade;
Afinal, é apenas a visão que se turva e dá forma àquilo que não pode auscultar,
Dois olhos vidrados na inalcançável recompensa,
Lágrimas que se perfilam nas faces geladas,
E esta endemoninhada vontade de que tudo termine ainda antes de ter começado.
‘É hora’, julgo ouvir num murmúrio,
Pouco mais do que uma aragem, estreita, vacilante.
Involuntariamente, estou novamente erguido,
Mas já não caminho:
Corro, galopo, voo para o indelével derradeiro,
Para essa, afinal, tão ansiada vitória,
Essa meta que é unicamente minha, só de mim, exclusiva…

Ao fundo do corredor da morte,
Estende-se uma estrada de vida,
Ainda que intangível,
Viva.

20/11/2007
18:56

terça-feira, novembro 20, 2007

Poetas escritos, poemas encarnados...

Os poemas são poetas escritos.
Toda a lírica não mais é do que a découpage de uma alma numa página antes opaca,
Plena logo de tonalidades translúcidas,
Complacentes miragens residuais do frívolo artífice que lhes deu aparência,
Moldando-as a tinta como um escultor talha a pedra com o cinzel,
Ou simplesmente como um qualquer deus distraído,
Que tropeça na sua própria ausência deixando cair dos braços um big-bang de múltiplos quase-nadas,
Vibrações e impressão de familiaridade que nos habitam à socapa,
Na mordaz tentativa de nos converter em algo mais do que meramente humano,
Empresa demasiado auspiciosa para ser conduzida sem despiste.

Os poetas são poemas encarnados.
Todo o louco não mais é do que a soma de toda a lucidez,
Demasiado avultada para se contentar com um lugar na plateia,
Já que, afinal, verdadeiro lugar de espectador apenas ao intemporal tempo cabe,
Esse desonroso almocreve, senhor de infinitas searas,
Que aluga ceifeiras nas breves temporadas de colheita,
Mandando-as depois de volta ao nada que sempre foram,
Ilusão de profundidade e elegia do divino.

No fundo,
Todo o poeta se escreve,
Todo o poema o encarna.

19/11/2007
5:14

terça-feira, novembro 13, 2007

Grito

Dispo a minha liberdade
De vergonhas ilusórias
Abro os braços à verdade
Faço limpeza à memória

E grito baixinho
Um grito contido
Que foi por carinho
Na mente perdido

Rasgo a raiva e o medo
Solto-me de preconceitos
Liberto o estranho segredo
Desobedeço aos preceitos

E grito bem alto
Um grito escondido
E que foi de assalto
Grito adormecido

Pinto com todas as cores
Sinto com todo o meu ser
Provo todos os sabores
Transbordo sem me conter

E grito afinal
Um grito afirmado
Que foi ideal
Enfim proclamado
E grito e não cesso
Porque a voz é minha
Grito e despeço
A prisão que tinha

06/10/2004

segunda-feira, outubro 22, 2007

Vários extraordinários...

Vejo o mundo
De óculos escuros
Deste fundo
Escondido entre braços
No vaivém dos meus passos
Vejo tectos, vejo muros
No vaivém dos meus passos
Só me confundo
Mais

Rasgo a morte
Deito-me ao relento
Sigo à sorte
Perdido dos dias
No rumor de um sentimento
Vejo paredes vazias
No rumor de um sentimento
Só perco o Norte
Mais

Rumo ao vento
O sinal vermelho
É cinzento
Como a minha estrada
No sopé da madrugada
Vejo gárgulas no espelho
No sopé da madrugada
Morre o alento
Mais

Mais vale ser
Um ser extraordinário
P’ra poder ver
Ler as vidas ao contrário
Sem receber
Férias pagas e um salário
Somos todos extraordinários
P’r’a fogueira com os dicionários
Basta de conclaves e plenários
Sejamos vários
Mais

19/10/2007
20:47

domingo, outubro 21, 2007

Tripla.

I
As Palavras


Nos abismos que o poema dilacera e acalenta
E nos sismos improváveis dessa espera desatenta
Vivem lírios de palavras resgatadas ao bafio
Como círios que alumiam as estradas do vazio

II
Os Números


Moram números avulsos nos meandros dos poemas
Em inúmeros impulsos que se despem das algemas
Quando a rábula transpira no pulsar das entrelinhas
E essa fábula respira matemáticas vizinhas

III
O Poema


Certas noites libertinas de incertezas naturais
Seguem pares concubinas de naturezas duais
Numa marcha lesta infinda de preceitos radicais
E o poema enfim deslinda os conceitos litorais

19/10/2007
2:18

sexta-feira, outubro 19, 2007

Subamos (a escada)...

Então subamos
As escadas que o amor nos impinge
Em corrida veloz como quem finge
Ter pressa de chegar à sua porta
Senão vejamos
São sempre águas moles em pedras duras
Em rampas percorridas às escuras
Em busca da paixão que ali jaz morta

Trocam-se as voltas
Num rodopio que joga às escondidas
Por becos, praças, ruas e avenidas
Com esperança de tropeçar na verdade
Com frases soltas
Constroem-se rimas ao desbarato
E soltam-se as pedras do meu sapato
P’ra “dar o corte” com impunidade

Portões cerrados
Após vender negativas em saldo
Sem sequer dar espaço p’ra o rescaldo
Abafam-se as memórias num caixote
Braços atados
Atrás das costas destas contingências
E nem se leva a cabo diligências
Com medo de afoitar mais o chicote

Então subamos
Mais uma vez por essa escadaria
Façamos dela o pão de cada dia
Voando entre os degraus a derrapar
E nisto andamos
Uma vida inteira atrás duma vida
Que nos preencha o feitio e a medida
Sem sequer aprender o que é amar

15/10/2007
21:44

quarta-feira, outubro 10, 2007

Dias e Noites (Parte II).

A minha vida dera uma volta de cento e oitenta graus no final do Verão seguinte, quando deixei a terra onde sempre vivera para prosseguir estudos. Após uma jigajoga de exames e candidaturas e viagens para cá e para lá e matrículas, estava agora alojado numa ruela estreita, de chão empedrado, a cinco minutos a pé da minha faculdade. A casa, visivelmente velha, erguia-se em quatro estreitos andares, ligados entre si por uma escadaria de madeira que rangia sonoramente a cada degrau que pisava, e, mais uma vez, ficara no quarto do primeiro andar. Em frente, morava uma senhora cujos anos de vida se podiam estimar pelo fino cabelo grisalho que costumava trazer solto, e pelas feições sulcadas por incontáveis rugas que, apesar de tudo, lhe conferiam uma graça muito particular. Era costume vê-la à janela a costurar, ou simplesmente com os escassos transeuntes que passavam pela ruela, alguns deles vizinhos e velhos amigos da sua geração.
Quando me via assomar à janela, o seu cumprimento era já sabido, dizendo numa voz calorosa e com pronúncia marcadamente bairrista:
- Oh meu menino! Então como está? Está tudo bem? E a maninha? E os paizinhos? E os estudos?
Eu limitava-me a responder ao que me era perguntado, sempre com um franco sorriso esboçado nos lábios, correspondido pela expressão sorridente da senhora, que devo frisar nunca ter visto de diferente forma. Vivia, deste modo, num ambiente acolhedor e quase familiar, embora fosse constante a sensação de perda que me acompanhava desde a desditosa noite…

* * * * *

Recordo-me com bastante nitidez da atarefada noite em que arrumei as minhas coisas, na véspera da minha partida para a universidade. O meu quarto parecia um cenário de guerra, com estantes vazias e pilhas de roupa espalhadas numa alternância caótica, e gavetas abertas onde já pouca coisa restava. Tinha já duas malas cheias, e ainda tanto para empacotar e acomodar noutras tantas, e no epicentro daquela custosa azáfama, lembrei-me de algo extremamente importante.
Abri a gaveta da minha mesa-de-cabeceira e vasculhei ansiosamente pela tralha acumulada: cartas avulsas; um ou dois livros de poesia; um relógio de corda de pulseira de couro preta que parara havia alguns anos; um caderno onde dava largas à criatividade nas longas noites sem dormir; o manual de instruções da minha aparelhagem; um álbum de fotos antigas… e era tudo.
Apanhado de surpresa, retirei a gaveta dos eixos e esvaziei-a em cima da cama, mas nada mais encontrei do que aquilo que já encontrara. Então percorri, uma a uma, todas as gavetas e prateleiras do quarto, todos os recantos possíveis e imagináveis, sentido um desespero crescente à medida que ficava sem opções para procurar. Mas não podia ser; todas as noites eu lia e relia aquela frase, aquelas tão vagas e distantes palavras que me ofereciam a sombra de uma esperança desalentada, e todas as noites a guardava religiosamente na gaveta agora tombada no chão sujo do quarto. E naquela noite, na véspera da talvez mais importante viagem da minha vida, da qual não regressaria tão cedo, a preciosa folha parecia ter-se evaporado.
Sentei-me, frustrado, no colchão já despido, afastando com desprezo o conteúdo despejado da gaveta, que acabou por cair igualmente no chão. Aí, senti os olhos a humedecerem-se e, com os braços cansados a pender para fora da cama, chorei.

* * * * *

Quando digo que a minha vida sofrera uma viragem de cento e oitenta graus, para além de todas as óbvias mudanças a que foi sujeita com a minha saída de casa, refiro-me em concreto ao ritual binário em que ela se havia convertido tempos antes. Agora, em vez de dias preenchidos pela magia daquela que tão impiedosamente partira, tinha noites inteiras de sonhos habitados pela sua reconfortante imagem, e que acabavam sempre por desembocar naquela clareira longínqua do mundo. Por outro lado, os meus dias eram agora caracterizados pela constante presença de gatos que vagueavam sem rumo pelas pedras toscas da minha rua, havendo um que se assemelhava assustadoramente àquele que habitualmente contemplava através da fresta agora fechada da minha janela, nas noites sem sono que faziam agora parte do passado.
A verdade é que, desde a noite na clareira e até à minha partida, nunca mais encontrara o negro felino a deambular pela rua agora deserta em frente à janela do meu antigo quarto. Era um facto extraordinário, e que permanecia no meu pensamento como um mistério inexplicável, assim como aquela noite estrelada em que me perdera na vereda a caminho da clareira e encontrara a folha de papel pregada ao tronco rugoso daquela árvore anciã, a folha cujo paradeiro me era agora desconhecido. A réstia de alento que ainda sobrava dentro de mim devia-se sobretudo à memória da mensagem implícita naquela linha escrita por mim numa serena tarde primaveril, e que reencontrara inesperadamente numa escura noite de estio.

* * * * *

Houve, numa das noites mais frias de que tenho memória, um sonho que me deixou ao mesmo tempo confuso e confiante, como se aquilo que tinha presenciado fosse demasiado fantástico para poder ser real, embora na altura me tivesse parecido totalmente credível. Tinha-me deitado depois de uma noite no café da praça com dois colegas, e a lua ia já bem alta no céu quando cerrei os olhos cansados.
Estava a acordar após uma noite bem dormida, e espreguicei-me vigorosamente, atirando com o gesto a almofada para a alcatifa azul que cobria todo o chão do quarto. Os pequeninos orifícios na persiana mal fechada permitiam que uma diminuta réstia de claridade alumiasse fracamente o espaço contíguo da divisão. Ainda ensonado, levantei-me e abri o estore. A janela da minha idosa vizinha encontrava-se ainda fechada, pois devia ser bem cedo, tão cedo que os gatos ainda vasculhavam os recantos da rua em busca de algum resquício comestível.
Voltei para dentro e, numa rotina repetida tantas vezes, tratei de me lavar e vestir e alimentar. Terminadas essas tarefas, peguei na minha mochila e desci, sendo recebido à porta por uma aragem fresca tipicamente matutina. Algumas, mas poucas, nuvens escondiam agora o disco solar, mergulhando a rua numa imperceptível sombra matinal. Nesse momento, apercebi-me de que a porta da minha vizinha estava escancarada, embora a sua janela ainda não tivesse sido aberta em sinal de que já acordara.
Estranhando aquela mudança na rotina diária da senhora, decidi assomar-me à sua porta, chamando a meia voz pelo seu nome. Tornei a chamar e, como não obtive resposta, subi as escadas que conduziam à porta da sua cozinha. Esta encontrava-se igualmente aberta e, por isso, não antes de voltar a chamar pela senhora, entrei sem hesitação na parca divisão.

* * * * *

Sempre me intrigou a natureza dos sonhos. De tantos fenómenos naturais a que estamos sujeitos durante toda uma vida, os sonhos são, de facto, uma extraordinária manifestação cuja compreensão está longe de ser completa. Por muita teoria que se debite sobre as infindáveis ramificações desta temática, não há uma que satisfaça completamente a minha aguçada forma de entendimento. Parece que cada passo em direcção ao seu desvendar último nos deixa novamente no ponto de partida, ao sermos confrontados com determinadas situações que, simplesmente, não se encaixam.
A mim, quer-me parecer que o sonho é uma necessidade quase comparável à respiração ou à nutrição. É algo inerente à nossa natureza humana, imaginativa e invariavelmente insatisfeita. É algo que nos permite voar além das nossas barreiras, algo que nos leva muito além de qualquer limite que a realidade seca nos tente forçosamente impor. É, afinal, mais um mecanismo de escape e, ao mesmo tempo, uma forma natural de poesia, uma composição lírica que mistura desejos, medos e recordações e deles constrói uma acção animada repleta de códigos, mensagens escondidas e, ao fim ao cabo, de um pouco da nossa própria essência.
Aquele sonho foi deveras o mais fantástico de que tenho memória, e ainda hoje não tenho explicação, quer para a sua origem, quer para o que ele veio a desencadear. Mas uma coisa é certa, estar-lhe-ei eternamente grato.

* * * * *

Lancei um relance rápido à divisão criteriosamente arrumada e asseada, não observando nada fora do vulgar. Sobre o fogão ainda quente, mas desligado, um grande púcaro de alumínio gasto fumegava, exalando um agradável e muito estimulante aroma a ervas e limão. Sobre a mesa, duas chávenas de chá, certamente pintadas à mão, repousavam vazias nos respectivos pires de barro vidrado. Um açucareiro e um frasco de mel de rosmaninho completavam o espólio, todo assente sobre uma toalha de linho com acabamentos bordados, cujas franjas caíam no assento das duas cadeiras de madeira envernizada que assinalavam os lugares à mesa.
Atraído pela familiar apresentação, espreitei para dentro da chaleira ainda a escalda, e reconheci imediatamente o aroma: bela-luísa e camomila. Sem saber bem porquê, peguei-lhe e verti o líquido generosamente para as duas chávenas, pousando o púcaro numa base de azulejo que também se encontrava sobre a mesa. Depois, sentei-me numa das cadeiras, coloquei duas colheres de mel na chávena à minha frente, e ali fiquei, absorto em pensamentos diversos, a mexer cuidadosamente o aromático chá.
Nem me apercebi quando a senhora entrou na cozinha, o belo cabelo atado numa trança que lhe chegava quase a meio das costas. Só a vi quando se sentou à minha frente e, num gesto tão gracioso quanto a sua idade lhe permitia, colocou duas colheres de açúcar na sua chávena. De seguida, levou-a à boca, dizendo:
- Mas que delícia…
Aparentemente, a minha presença não surtira qualquer surpresa na senhora, que continuou a bebericar a saborosa infusão alheia a tudo o resto. Só quando na sua chávena sobrava apenas um resto irrisório de líquido e se levantou para verter mais um pouco é que se dirigiu a mim, falando numa voz terna e suave:
- Então, meu menino, está tudo bem?
Um pouco embaraçado, respondi numa voz rouca de quem acordara havia pouco tempo:
- Oh, sim, está tudo bem, obrigado. Desculpe ter entrado assim sem avisar, mas vi a porta aberta e pensei…
- Não faz mal. Estava à sua espera. Tenho uma coisa para si.
- Para mim?
Sem responder, acabou de verter o chá e saiu. Demorou cerca de dois minutos, durante os quais fiquei nervosamente sentado, com a chávena fumegante ainda cheia sobre a mesa. Quando voltou, trazia na mão um caderno de capa preta e aspecto bastante usado. Tinha posto os óculos de massa escura, que trazia caracteristicamente quase à ponta do nariz. Sentou-se de novo à minha frente e perguntou:
- Então não bebe o chazinho? Está tão bom… Faz muito bem à garganta e ao estômago.
- Bebo sim, obrigado. Estou só à espera que arrefeça mais um pouco.
- Mas olhe que o chazinho quentinho é que faz bem.
Olhei a superfície límpida do líquido e levei-o aos lábios, sentindo uma sensação revigorante de calor a confortar-me por dentro. Dei dois ou três goles, pousando em seguida a chávena sobre o pires morno. Fiquei, então, a fitar os olhos pequenos e luzidios da senhora, azuis como o oceano profundo. Então, estendeu-me o caderno, e fiquei abismado ao reconhecê-lo. Aquele caderno, onde escrevera tantas cartas e poemas de amor, e que ficara perdido na clareira perto da minha casa até àquele momento. Mas como podia ser?
Como que adivinhando a minha incredulidade, a senhora replicou:
- É seu, não é? Devia ter mais cuidado com essas coisas.
Estava demasiado atónito para poder articular qualquer resposta. Desfolhei-o rapidamente, parando numa página que me deixou incalculavelmente mais estupefacto. Estava escrita a tinta azul, numa caligrafia mais ou menos aprumada, e podia ler-se na primeira linha: «Estarei sempre à tua espera». Olhei a senhora com um ar inquiridor, ao que ela prontamente respondeu:
- Esse poema é muito bonito. É para alguém especial, não é?
Aquilo era demais para a minha frágil estrutura, demais para a minha limitada compreensão. Que sentido, por mais remoto que fosse, poderia aquilo fazer? Interrompendo-me os pensamentos, que voavam apressados num remoinho de ideias tolas e inconsistentes, a idosa senhora ergueu-se da cadeira, dirigiu-se até junto de mim e, com as suas mãos nas minhas, fechou o caderno no meu colo e disse, fitando-me com os seus intensos olhos vítreos:
- O meu menino devia mostrar esse poema à menina para quem o escreveu. Tenho a certeza que ela ia gostar muito.
Nesse momento, um ruído estranho àquele cenário soou na minha cabeça. Aí, percebi tudo, ao reconhecer o toque inconveniente do meu despertador. Tudo não passava de um magnífico sonho do qual não tardaria a acordar. “Que pena”, pensei, “estava a ser tão bom…”
Já só tive tempo de ouvir algumas palavras antes de acordar e desligar resignadamente o despertador, e foram elas:- Olhe que eu já vivi muito, e sei o que digo: um amor assim é difícil de encontrar. Vá em frente com coragem, meu menino. Força.

quinta-feira, outubro 04, 2007

Cumplicidade.

Contemplo nesta lonjura
Corrompido de desejo
A tua pele morena
Teu sorriso tem doçura
Que transborda de sobejo
P’la tua boca pequena

Meu olhar impaciente
Vai percorrendo sem medo
O teu corpo em movimento
E o teu olhar não me mente
Quando desvenda em segredo
Rumores do teu sentimento

E preso à minha vontade
De te envolver nos meus braços
Entre uma rumba e um beijo
Sinto um amor sem idade
Que desenho em finos traços
No papel do meu desejo

No meu intento rendido
Ao teu olhar feiticeiro
Desvendo agora a cantar
O meu amor foragido
O meu sentir verdadeiro
E a minha forma de amar

04/10/2007
4:48


(Para cantar com a música do "Fado Três Bairros", de Casimiro Ramos.)

domingo, setembro 30, 2007

Dias e noites (Parte I).

Havia um gato que, assiduamente, deambulava pelo passeio em frente à minha casa. Era de cor escura, mas às horas que costumava vê-lo serpentear por entre os canteiros que pontuavam a rua, na negrura da noite mais cerrada, não podia assegurar se era apenas preto, ou de alguma tonalidade ainda mais sombria. O seu miado era distinto, num timbre pouco natural que parecia simular um chamamento, como que um apelo à própria noite para que o ocultasse sob o seu imperioso manto.
Havia também uns olhos que, apesar de viajarem sempre agarrados à face opaco do gato, pareciam fazê-lo apenas por obrigação de força maior, aparentando ganhar vida própria a cada passo cauteloso que os levava de um lado ao outro da estrada. Eram o perfeito contraste com a negrura da noite e do gato: brilhavam com uma luminosidade que almejava competir com as mais vistosas estrelas, num tom turquesa bem definido e quase sedutor. Sempre bem abertos, iluminavam zelosamente o caminho do felino que, por entre os obstáculos da rua, vagueava de forma híbrida entre o errante e o deliberado.
Para além do gato e dos cintilantes olhos, havia apenas uma fresta na janela do primeiro andar, através da qual contemplava a cena, intrigado com a forma quase humana como aqueles olhos faziam o gato parecer comportar-se. Com as luzes do quarto todas apagas para melhor apreender a escuridão da noite e a luz daqueles olhos, e neles me imiscuir, deixava-me ficar absorto em pensamentos improváveis, em fracamente plausíveis ideias que roçavam mesmo as fronteiras da fantasia. Por vezes, acabava por adormecer à janela e, quando isso acontecia, continuava a observar o mesmo cenário em sucessivos sonhos sempre iguais, para finalmente despertar quando os primeiros raios de sol encontravam caminho por entre a fresta e pousavam a sua morna mão sobre a minha face enregelada, constatando imediatamente que a noite se fora e, com ela, também o gato e os seus olhos. Nessa altura, resignava-me à realidade quotidiana, sempre ansiando pelo ocaso que traria consigo, mais uma vez, o misterioso animal de olhos humanos,

* * * * *

Naquela noite, em que a lua se escondera na sombra projectada pela terra na sua superfície acidentada, e em que as estrelas brilhavam com um fulgor particularmente forte, decidi que seria diferente. Estava sentado na mesma poltrona, com a janela sempre na mesma posição semiaberta, observando fixamente os olhos azuis que, subitamente, para minha surpresa, contrariamente a todas as noites anteriores, cruzaram o seu brilho com o meu olhar extasiado, e senti, ou melhor, confirmei que neles se encerrava um subtil chamamento e que, por alguma razão, parecia desta vez a mim dirigido. A princípio, sem saber bem como reagir àquela mudança inesperada num cenário tantas vezes repetido da mesma forma, quedei-me a apreciar aquele fortuito encontro de olhares, que me preencheu inexplicavelmente com um perturbante burburinho interior, fazendo com que quase sentisse o meu espírito a cambalear dentro de mim. Com esse tumulto a crescer e a ganhar força, foi como se deixasse de ter controlo sobre os meus movimentos, erguendo-me prontamente. Enfiei o blusão ruço que pendia do cabide à entrada do quarto e peguei nas chaves de casa, dirigindo-me firme para a porta. Ainda estaquei por momentos, como se aqueles segundos sem o olhar preso ao refulgir daqueles olhos tivesse sido suficientes para quebrar aquela espécie de encantamento, mas a simples alusão ao azul intenso desse olhar nos meus pensamentos pareceu reacender o feitiço que de mim se apossara, levando-me a sair rapidamente, descendo as escadas do prédio completamente às escuras, numa ânsia desmesurada por me encontrar novamente com a fonte de luz que me encantara.

* * * * *

É preciso, neste ponto, esclarecer que existem momentos na nossa vida em que experimentamos algo inexplicável, algo que desafia toda a nossa compreensão, algo que põe em causa o entendimento normal das coisas. Todos nós passamos por isso e, passados esses momentos, quando em tentativas vãs de os compreender os trazemos à memória uma e outra vez, apercebemo-nos de que todo o misticismo e toda a fantasia não passam de um produto da interface não suposta entre a nossa realidade e o desconhecido, e que surge na defesa das fundações e das leis mais fundamentais que formulamos e que pensamos, de forma arrogante, abarcarem toda a realidade. Há coisas que, pura e simplesmente, nos são naturalmente inacessíveis à compreensão, mas que podemos vivenciar e desfrutar daquilo que elas nos podem proporcionar. Penso que isto é fundamental para que o relato que se segue não vos deixe a pensar que este é apenas mais um conto fantástico para entreter algumas mentes mais cansadas da fastidiosa experiência diária, tão parca de momentos impossíveis.

* * * * *

Ao chegar à porta do prédio, com o coração a ameaçar saltar-me do peito, tal não era a impetuosidade com que bombeava o sangue através de todo o emaranhado de artérias e veias e capilares que percorriam o meu corpo, fiquei mais uma vez parado por alguns momentos, numa tentativa inconsciente de prolongar aquela sensação de excitante expectativa. Após um exasperado suspiro, abri a porta e saí.
De imediato, a luz de um candeeiro de rua que havia anos se apagara aparentemente de forma definitiva, acendeu-se repentinamente, e a violência daquele choque ofuscou-me completamente a vista durante alguns instantes que me pareceram horas. Enquanto piscava desenfreadamente os olhos, de forma a tentar compensar a extrema exposição àquela luz após tanto tempo imerso na mais profunda escuridão, apercebi-me de que algo não estava certo. Ainda cego pela descarga luminosa, avancei lentamente, tentando apalpar com as mãos as impalpáveis ondas sonoras que constituíam os tão característicos miados do felino que ali me atraíra.
De tantas conjunções de pequenas circunstâncias improváveis, aquela era realmente caricata: um gato que lançava feitiços, um candeeiro que despertava de uma letargia que aparentara ser derradeira, e uns olhos cegos precisamente no momento em que mais precisavam de ver. Para além disso, tudo acontecia na noite em que ela partira.

* * * * *

Impressionantemente longe daquele ambiente nocturno, durante o dia-a-dia insosso e repetitivo, havia uma mulher. Pouco mais era do que uma garota, dezassete anos feitos nesse Verão que ameaçava terminar com o reinício iminente das aulas, mas aos meus olhos era o mais impressionante exemplar do género feminino: olhos amendoados de um castanho inebriante, uma cabeleira de caracóis suaves e tonalidade escura cujos reflexos à luz intensa do meio-dia condiziam perfeitamente com a sua tez morena. O porte simultaneamente esguio e desembaraçado conferia-lhe uma sensualidade irrepetível, e que reverberava com os meus sentidos numa portentosa sinfonia de sensações miscelâneas, envolvendo-me num espectro que abrangia desde as mais puras e serenas emoções às mais carnais intenções que podem brotar da frágil estrutura emocional de um jovem como eu. O nome, que prefiro não mencionar por razões que também não enunciarei, acompanhava-me para toda a parte, surgindo amiúde ao longo as minhas noites contemplativas, como se de uma melodia se tratasse, uma daquelas que fica no ouvido ao primeiro contacto e que, incansavelmente, repetimos quase até à exaustão. E os lábios… Já mencionei que a sua constituição carnuda e irresistível me atormentava de cada vez que tinha o ambíguo prazer de observá-los? O seu sabor, ainda desconhecido para mim, era o ponto de partida para inúmeras conjecturas e especulações que floresciam quase automaticamente sempre que a sua presença assaltava o meu espírito.
Havia ela a colorir os meus dias, havia o gato e o seu olhar a acinzentar as minhas noites, e havia eu, no meio daquela bizarra dicotomia, sem saber como agir perante ambas as realidades.

* * * * *

Naquele dia, que precedeu aquela auspiciosa noite, soube que ela partira. Não sei ao certo qual o seu destino, nem encontrei ninguém que soubesse esclarecer-me. Simplesmente, a quatro dias da reabertura do ano lectivo, ela partira para parte incerta, deixando-me, como sempre, mas de forma completamente nova, no centro de um turbilhão de sentimentos que eclodiam em pequenas erupções de desconsolo e desânimo, culminando certeiramente numa tempestade de saudosismo doloroso e cinzento. Como enfrentar a monótona sucessão de frames que era o meu dia-a-dia sem a sua cálida presença a despertar-me para um mundo de infinitas possibilidades em que podia, afinal, perder-me num rumo indefinido? Sem essa rosa-dos-ventos em que costumava esconder-me voluntariamente, sem esse ciclone de sensações juvenis e adultas ao mesmo tempo, sentia-me assustadoramente vazio, largado mais uma vez na repetição aborrecida e monocórdica que fora a minha vida antes de a conhecer.

* * * * *

Os meus olhos começavam a habituar-se mais uma vez à escuridão, embora não conseguisse ainda distinguir mais do que algumas sombras desfocadas. No entanto, pude enxergar um vulto baixo e esquivo, que associei de imediato ao negro gato. Este afastava-se visivelmente apressado, dirigindo-se para o que me pareceu um caminho de terra batida que ligava o outro lado da estrada a uma discreta clareira no meio do arvoredo selvagem que havia perto da minha casa. Esforçando-me por acompanhar o seu estugado passo, com a luz do candeeiro ainda a comprometer a minha acuidade visual, segui-o pela vereda que se adensava de mato à medida que prosseguia. Ainda me cortei num ramo que não consegui evitar e, com a rua já escondida pela vegetação alta que filtrava finalmente a luz do candeeiro, tive apenas tempo para vislumbrar o vulto felino a enfiar-se pelo matagal adentro, estacando perante a impossibilidade de continuar a perseguição.
Alumiado agora apenas pela ténue luz das estrelas que pontuavam a bruma, com o sangue quente a escorrer pela minha cara rubra, senti-me ultrajado pela atitude incompreensível do gato, que se esgueirara para fora de alcance depois de me atrair para o meio do bosque às duas e meia da madrugada. Ouvi o solene repicar do sino da igreja a indicar a meia hora, sentando-me numa raiz saliente para retomar o fôlego e pensar no que faria a partir dali, mas um rumor de presença mais à frente no caminho pôs-me os sentidos em alerta e encheu-me de curiosidade. Sem me deter mais, ergui-me de novo e dirigi-me ao local de onde parecia ouvir agora um ligeiro caminhar, como se alguém deambulasse por entre a folhagem tombada.

* * * * *

Devo dizer-vos que aquela clareira encerra, no baú de todos os segredos que desde tempos remotos colecciona, um que me envolveu directamente, a mim e a ela. Isto passou-se pouco depois da sua entrada repentina na minha vida tranquila, embora a data exacta me escape já da memória. Fico até admirado por tal ter acontecido, já que é a recordação mais vívida e lúcida e todas as que possuo, sendo até capaz de fechar os olhos e revivê-la ao pormenor vezes sem conta. Era, aliás, esse um dos meus passatempos preferidos, especialmente nas alturas mais aborrecidas da minha vida banal. De qualquer modo, sinto-me na obrigação de vos elucidar.
Era uma tarde amena de Primavera, e a clareira estava ricamente enfeitada por diversas árvores e plantas floridas, compondo um colorido quadro de incomparável beleza e frescura. Acrescentando todos os trinados e assobios que um número incomensurável de aves libertava das suas irrepreensíveis gargantas, e o resfolgar de uma suave brisa vespertina por entre as copas engalanadas do arvoredo, ficava-se na presença de um edílico santuário natural, imperturbável e fabuloso. Apenas alguns raios de sol mais teimosos espreitavam ainda pelo topo dos verdejantes pináculos, mas transportavam claridade mais do que suficiente para a minha lírica tarefa.
Com um caderno aberto no colo e uma esferográfica azul entre os dedos, escrevinhava concentrado um poema que, ironicamente, se destinava, pelo menos em intenção, àquela que surgiria, sem aviso, de uma vereda escondida por uma cerrada teia de ramos e folhas, e da qual nunca tivera conhecimento antes. Com a inesperada aparição, levantei-me sobressaltado, deixando o caderno tombar no solo humoso e fértil, apercebendo-me imediatamente da identidade da pessoa que interrompera o meu momento de inspiração. Era ela, mais bela e radiosa do que nunca, com o cabelo caindo livremente sobre os ombros descobertos, vestida toda de claro, criando um agradável contraste com a sua pele bronzeada. A blusa curta era branca, matizada de vários tons de azul, permitindo que se visse o baixo abdómen deliciosamente delineado por imperceptíveis curvas impecáveis, e a saia de ganga, igualmente curta, tinha uma flor de tecido embutida de um dos lados, deixando a descoberto as suas elegantes pernas morenas que incitavam os meus imaginativos olhos a percorrê-las de ponta a ponta.
Embasbacado com a situação, nem me apercebi de que ela não reparara na minha presença e se dirigia ao tronco de uma das maiores e mais antigas árvores da clareira, parando mesmo de frente para este. De seguida, virou-lhe as costas e encostou-se, deixando escapar um disfarçado suspiro, resvalando depois até acabar por se sentar, ficando a fitar o horizonte com um olhar vago e triste.
Tentado a indagá-la sobre o que se passava, encaminhei-me lentamente na sua direcção, e quando estava a uns meros dois metros de distância, denunciei inadvertidamente a minha presença ao estalar um graveto seco sob um passo mais descuidado. Nesse momento, ela virou os olhos, que se cruzaram com os meus durante alguns instantes que pareceu durar a vida inteira. Era um olhar definitivamente meigo, mas condimentado com um quê de tristeza e angústia, algo que não compreendi naquela altura.
Após alguma hesitação, decidi-me a falar, e perguntei-lhe:
- Está tudo bem contigo?
A resposta que obtive foi um indefinido encolher de ombros, seguido de um desvio do olhar de novo para o horizonte. Experimentei aproximar-me, até que acabei por me sentar junto dela, e qual não foi o meu espanto quando senti a sua cabeça apoiada no meu ombro. Surpreso pela sua atitude, deixei-me ficar, envolvendo-a num abraço firme e carinhoso, e dessa forma ficámos até o sol atingir o extremo do firmamento, começando a despedir-se do dia que chegava ao fim e dando as boas-vindas à noite que se anunciava.
Então, como se o lusco-fusco a tivesse acordado de um sono tranquilo, espreguiçou-se no meu colo e ergueu-se, estendendo-me a delicada mão para me ajudar a levantar. Acedi à sua oferta e segurei a sua mão com delicadeza, parando mesmo à sua frente à distância de um passo. A troca de olhares que se seguiu fica para lá de qualquer tentativa de descrição, já que não há linguagem escrita ou falada que possa exprimir na plenitude a essência daquele intenso momento. Os seus olhos brilhavam mesmo na ausência de luz que neles se reflectisse, e pude neles distinguir o esboço de uma lágrima que se formava às escondidas no seu humor cristalino. Estávamos, naquele momento, à distância de um beijo…
Mas nunca chegou a culminar nessa tão desejada manifestação de amor e de afecto, já que ela recuou ao primeiro indício de avanço da minha parte. Depois, olhou para baixo e, numa voz mais encantadora que os trinados agora adormecidos dos pássaros, disse:
- Obrigado. Agora gostava de ficar sozinha.
Não tive outra opção senão aceder ao seu pedido, largando a sua mão com relutância e dirigindo-me, pela vereda, até casa. O meu coração palpitava ainda de amor e desapontamento, num misto descontrolado de emoções que me manteve acordado toda a noite.

* * * * *

Ao ver-me naquele lugar outra vez, não pude deixar de recordar tudo o que acabo de relatar, como um filme projectado num ecrã alojado algures na minha mais secreta e profunda lembrança, sob a forma da mais límpida película. Agora, de volta à escuridão impenetrável da noite, algo me dizia que aquela tarde tinha algo a ver com a minha presença ali, e com o misterioso gato que ali me conduzira. Restava apenas desvendar a proveniência dos passos que me chamavam irresistivelmente à clareira. Com esse intento, avancei na sua direcção, e o que ali encontrei deixou-me boquiaberto.
Num dos troncos mais grossos de todos os que se avistavam, que por sinal pertencia talvez à maior e mais antiga árvore que ali se enraizara, pregada encontrava-se uma folha cuja brancura, ainda que ponteada por rabiscos azuis àquela distância indecifráveis, reflectia intensamente a moderada luz irradiada por um céu cada vez mais estrelado. De resto, num rápido relance a toda a largura da clareira, nada mais fui capaz de distinguir, muito menos algum sinal de gente. Estranhamente, até o rumor de passos que escutara escassos momentos atrás cessara por completo, sendo que agora se ouvia apenas uma incansável rapsódia de grilos.
Sem mais por onde pegar, segui para junto do tronco de onde pendia a folha, que identifiquei como parte do caderno em tempos ali esquecido assim que li a primeira linha. Tudo o resto estava rasurado, ou borrado, ou até mesmo sobreposto de tinta correctora, sendo aquela a única frase legível em toda a página. E dizia tão-somente isto: «Estarei sempre à tua espera»…

sábado, setembro 29, 2007

Deuses.

Deuses curvos, deuses turvos,
Deuses sem braços, deuses crassos,
Deuses livres de embaraços,
Deuses meigos, deuses vagos,
Deuses que bebo em dois tragos,
Deuses francos, deuses mágicos,
Deuses falsos, deuses trágicos,
Deuses que a vida escondeu,
Deuses de quem é ateu,
Deuses mortais, infernais,
Deuses fracos, deuses parcos,
Deuses em terra e em barcos,
Deuses leves, deuses magros,
Deuses vãos e esquecidos,
Deuses perdidos nas mãos,
Deuses de ontem, deuses fixos,
Deuses feitos de prefixos
E sufixos...
Deuses omnipotentes,
Deuses que são inconscientes,
Deuses faustos, deuses santos,
Deuses pelos quatro cantos,
Deuses que matam e morrem,
Deuses deuses, deuses homens,
Deuses triplos, deuses múltiplos,
Deuses pré-programados,
Deuses simples, deuses pintados,
Deuses moldados em barro,
Deuses belos, deuses frios,
Deuses de carro ou navio,
Deuses na cruz, deuses da luz,
Deuses convexos, selectos,
Deuses espertos, deuses abertos,
Deuses de mim, deuses de ti,
Deuses daqui e dali,
Deuses mortos, deuses vivos,
Deuses coados em crivos,
Deuses pretos, deuses brancos,
Deuses de frente e p'los flancos,
Deuses sim, deuses não,
Deuses que nem deuses são.

28/09/2007
21:10

sexta-feira, setembro 28, 2007

Na areia escrevo...

Na areia escrevo…
Em brados contidos, conto as vagas que passam,
E as que ficam…
As que não passam porque não podem passar,
E até as que no mar alto morrem sem beijar a areia
Em que escrevo.

Esta areia que foi rocha,
E este sal que foi rochedo,
E tudo o mais que foi um ponto de luz vadia
Vogando pela imensidão…

Todos eles são vivos.
São vidas que vivem mas não morrem…
São as areias com que vivo esta vida de tantas vidas…

Esses finos grãos com que escrevo as mais belas histórias
E os mais trágicos contos,
Condimentados de sal, que o traz o mar…
Esse mesmo mar que beija, incansável,
Este meu papel granulado em redijo a vida de tantas vidas
E que com todas vivo…

Ah, se eu pudesse…
Mas não posso viver o mar…
Pois se o pudesse, deixaria de o haver,
E não mais poderia escrever em contos vivos,
Salgados da maresia,
A poesia que escrevo nesta areia.
E que vivo…

21/10/2004

terça-feira, setembro 25, 2007

Jogging/Mais tarde/À noite

Jogging.

A vida a transpirar através dos meus poros…

Acácias e cedros que pontuam a demora…

Fingindo não me importar,
Amputo o polegar esquerdo,
(Que o direito às vezes dá jeito,)
E com o pedaço de carne ainda quente outra mão,
Com a unha roída até à exaustão,
Quase que sinto um esgar de adrenalina,
Uma ameaça de tenra excitação
Que percorre o meu sistema nervoso central imobilizando os pensamentos.

E depois,
Tão lesta quanto à chegada,
Esvai-se a excitação,
E de esfíncter involuntariamente contraído,
Retorno.

(Mais tarde…)

Uma gota de suor,
À descoberta dos meandros da minha face,
Percorre a distância que separa a têmpora do lábio,
Para aí repousar até que a língua,
Contrafeita,
Se resigne a sorvê-la entre dentes.
(Ou então é a parte de trás do pulso que a amacia contra a pele ardente.)

(À noite…)

ZZZZZ…
(Devia tratar da minha onicofagia obsessiva…)

23/09/2007
23:11

terça-feira, setembro 18, 2007

Carta de amor.

«Algures no Mar do Norte, 6 de Fevereiro de 2004

Querida Elisa.
Já mal posso suportar os gritos estridentes das gaivotas e a ondulação incessante do mar. Na minha mente, existe apenas um propósito: regressar o mais depressa possível para o nosso leito e beijar-te como se não houvesse amanhã. O meu espírito martiriza-se ao recordar-se de que só no fim do mês nos poderemos reencontrar. Sinto-me traído por Deus, por permitir que dois corações tão enamorados se separem desta maneira.
A pescaria tem vindo a diminuir. Ontem já só apanhámos 400kg de bacalhau e 500kg de atum. O mar mostra-se-nos ingrato, e um dos motores avariou irreversivelmente. Cada içar das redes, cada congelar das postas já cortadas, enfim, cada momento que passo neste maldito barco me faz delirar. Só penso em ti, de manhã até à noite, e até em sonhos a tua imagem surge como um escape à rotina diária.
O Chico Rosa vai-se embora hoje, e é por ele que envio esta carta. Ele, sim, é que tem sorte… Não passou senão três meses neste barco, enquanto que eu há já quase um ano que não vejo as tuas doces feições. Sonho a cada segundo com a tarde do dia 29, quando o barco ancorar no porto, e eu correr desalmadamente para os teus braços, e te amar como nunca. Já só vejo o teu sorriso brilhante, os teus lábios rubros, os teus olhos luzidios e o teu calor reconfortante. Para mim, és tudo o que importa…
O contramestre já deu a ordem… Tenho que ir içar as redes mais uma vez. Vingar-me-ei de todo o tempo perdido durante o resto das nossas vidas, amando-te sem limites ou barreiras.
Amo-te louca e profundamente!

Beijos e abraços deste teu,
Jorge Morais »

quarta-feira, agosto 08, 2007

O avesso das quimeras.

Acidental limalha
No avesso das quimeras;
Levo o pulso à navalha
E a música às estrelas.
Sou porto desmaiado
E coliseu das feras,
De gatilho apertado,
Não posso mais vencê-las.

Às vezes as histórias
Tropeçam sem aviso,
Debatem-se em memórias
Que invento e improviso.

E as minhas mãos sinceras
Dão pombos às migalhas,
No avesso das quimeras
Vive o Deus das mortalhas.

Gargantas enleadas
Em gravatas de dedos,
E canções derrotadas
À luz das desventuras,
No avesso das quimeras
Desvendo os meus segredos
Em compassos de espera
De frágeis partituras.

06/08/2007
21:21

segunda-feira, agosto 06, 2007

Pára.

Sinto à flor da pele um chamamento,
Elevado rumor de prenúncios infaustos,
Chama esmorecida, aragem lúgubre...
E uma bala de reduzido calibre com que estudo a balística da existência
A galopar impaciente um carreiro longínquo,
Convencida de uma ingénua audácia enquanto não alcança o muro,
As minhas lágrimas.

Graves, retorquindo em estrondos inócuos, voam morteiros
E os canhões são mais uma vez carregados de pólvora seca.

É uma guerra já perdida, esta de saber existir.
Caem os anjos na Terra, de asas amputadas, e sorriem,
Clamando entre dentes a sua desfeita quimera de alcançar a realidade.

Sinto um chamamento, uma mão que se estende do fundo do tempo,
Os longos e esguios dedos arranhando a minha consciência
Imperturbáveis.
E o arco-íris volta a nascer no interstício da candeia de alumia o meu choro,
Com as cores desorganizadas,
As tonalidades esbatidas,
E sem o famigerado pote de ouro no cobro da sua extensão.

(Na era nuclear, as guerras não se fazem com homens,
Mas com iminências de destruição maciça.)

Alguém dispara uma flecha, como que a disparar a própria morte,
E depois pousa relutantemente o arco e dorme mais uma sesta.

Jurei que atenderia ao chamamento.
Era o mínimo que podia fazer.
Deixei que o meu santuátio fosse violado,
Entreguei a mente à desilusão,
E prostrei-me diante Deus.

"Pára."

06/08/2007
2:18

sexta-feira, agosto 03, 2007

A (In)certeza - (ou Quantos Degraus Para o Abismo).

Faz-me falta a certeza.
Não sou o passado nem reconheço o presente,
E o futuro… a incerteza.
É frio, mas é certo.
Acabo de tropeçar no que procurava.
Como erguer-me de novo?

28/01/2006
19:55

quinta-feira, julho 19, 2007

Desmistificação.

Gargantas de inveja num mundo de percevejos,
Com pus e sangue a brotar de inúmeras janelas róseas
Com vista para o rio.

A cidade ficou distante dos olhares indiscretos dos transeuntes,
Que já só admiram, com disfarçada consternação,
Uma ébria moldura de caixilhos pré-fabricados.

Jogos infantis pontuam as marés entre a fome e a lascívia,
Enquanto nas horas mortas as bruxas vagueiam pela ignomínia da bruma
De uma qualquer viela desfasada da contemporaneidade.

E as safiras outrora lançadas ao desalento
Perpetuam agora,
Embelezando ostensivas tiaras de inglório ensejo.

Rápido,
Porque o momento é incerto
E tudo o que não for agora jamais será ontem.

E a não ser a minha loucura,
Todas as insanidades são poeira estelar
Neste, portanto, recanto à beira do precipício.

Somos apenas suricatas;
E possuimos garras de lume
Para perseguir a vida que não existe.

19/07/2007
4:26

quarta-feira, julho 18, 2007

Indeterminações...

Gosto de rir porque os meus dedos...
Acendo duas...
Regradas ameias em que me...
Sou tanto de mim como de...
As pálidas aguarelas que...
A minha vesícula chove.

Milhafres são as duas sombras que ontem...
A paz de espírito de saber quantas...
Abcessos tumultuosos de muitas...
As vontades vertidas no vento vago e...
Chilrear como as...
Às vezes, a mais ténue sensação de...
Mas enfim, todos os felinos despojados das minhas...
Tardes em que eu...
Cardamomo e segurelha em vez de nudez.


O que...?

18/07/2007
5:48

segunda-feira, julho 16, 2007

No dia anterior...

Apetece-me abraçar o diâmetro terrestre,
Fazendo dos meus dois braços anéis como os de Saturno,
E sentir desse modo o biorritmo frenético das profundezas a repicar como um carrilhão no meu peito.


(Quando, no dia anterior, após um magnífico ocaso que o céu deixou, por alguns, breves, instantes, marchetado de invulgares tonalidades, ao contemplar o último estertor luminoso, efémero despojo de um dia como tantos outros, mas apenas igual a si próprio, uma ave cuja taxonomia me era desconhecida, de penugem macia e colorida, e que soltava despreocupadamente majestosos trinados, entrou pela minha janela entreaberta, pousou sobre o meu ombro descaído, e segredou-me, num suave murmúrio, a verdadeira beleza de ser. Depois, voou.)

16/07/2007
0:43

terça-feira, julho 10, 2007

Efeito Casimir.

No emaranhado quântico de consciências a que chamamos Universo,
A existência não é mais do que um capricho de Deus
Que um dia, farto de estar sozinho,
Bocejou despreocupadamente a realidade.

Depois, com o pulsar desmedido de inumeráveis oscilações microscópicas,
Deleitou-se com o seu reflexo no espelho da incerteza,
E assim, emudecido, se quedou por um ou dois instantes
Que mais pareceram o somatório de múltiplas putativas eternidades.

Entretanto, como era cedo, havia ainda uma subtil névoa matutina a envolver a Criação,
Impedindo que a sua mente apreendesse com clareza imaculada a natureza metafísica daquilo que brotara.

Neste impasse giratório,
Inventou o código Morse e os números primos,
E desvendou-se em ligeiras prestações ao sedento mundo que evasivamente concebera.

Quando, finalmente, se encontrou agrilhoado ao códice bolorento da história,
Mergulhou o espaço e o tempo na tinta da invisibilidade,
Para que vivêssemos sempre com a sensação de que os possuíamos mesmo sem os compreendermos na sua plenitude.

De fraque criteriosamente engomado,
Vestir-se-á amanhã para o meu funeral,
E então tudo cessará antes mesmo de ter começado,
Numa manifestação sempre latente que viveu inteiramente na minha própria latência.

10/07/2007
1:43

sexta-feira, julho 06, 2007

Dias rasgados.

Pedaços de tempo que se vão consumindo irreversivelmente...
Pedaços de vida que ardem vigorosamente enquanto o lume é forte,
E que depois se vão tornando em brandas brasas incandescentes,
Para se virem, inexoravelmente, a extinguir num derradeiro sopro de nada...
Enfim, páginas rasgadas uma a uma à bíblia da existência, até à última folha que tomba, efémera, na escuridão...
E depois disso...
O silêncio.

04/07/2007
22:22

quinta-feira, julho 05, 2007

Talvez...

Talvez seja apenas a investida constantemente revisitada do vazio...
Talvez apenas a incerteza, mácula bucólica impaciente de estertor...
Talvez verdades enleadas em folhagens agrestes, quase lúgubres...
Talvez uma inodora vertigem de adrenalina degenerada...
Talvez a respiração arfante de um andaime suspenso do chão...
Talvez a impoderável valsa das marés-vivas dos meus tornozelos...
Talvez justamente o resfolgar dos meus lençóis cor de coisas...
Talvez as vagens informes que segregam verdes bagas vermelhas...
Talvez mares de prostração impaciente e pesca desportiva...
Talvez sensações de hibridação mutagénica...
Talvez alienígenas que me raptam de onde não serei...
Talvez eu, de punhal em chamas, num areal negro e salgado, com as mãos algemadas e a corda atada ao pescoço...
Talvez eu, de punhal em chamas, me encontre ao virar da próxima esquina...
Isso, ou talvez a sombra...
Talvez...

05/07/2007
1:28

segunda-feira, julho 02, 2007

Vivendo no fado.

Dolente, a soluçar, uma guitarra,
Em notas de profundo sentimento,
Que me liberta só por um momento
Do negro pranto a que esta dor me amarra.

Acordes que ressoam aturdidos
No fundo da minh’alma dolorida
E acendem uma saudade sentida
De tempos já pelo tempo esquecidos.

É nesses sons plangentes que me escuto,
Num choro que traduzo no meu fado,
E neles evoco águas do passado
Que vogo agora em fragatas de luto.

Das cordas solta-se a voz murmurante
Que embala com brandura este meu canto;
Se apenas no fado esqueço o meu pranto,
Que eu viva, então, no fado a cada instante.

26/06/2007
5:32


(Para cantar com a música do "Fado Licas", de Armando Machado.)

segunda-feira, junho 25, 2007

Quase nada.

Sou o que resta da praia
Cristalizada no rosto
Quando o meu pranto desmaia
E envolve as mãos em desgosto.

Sou essa areia entornada
E a maresia inconstante
Que minh’alma torturada
Alimenta a cada instante.

Vivo no avesso da vida,
Na ventania quebrada;
Sou uma vida despida
Nas sombras da madrugada.

Sou um lamento já mudo,
Sou uma voz magoada...
Serei eu já quase tudo
Sendo, afinal, quase nada?

25/06/2007
0:16


(Para cantar com a música do "Fado Amora", de Joaquim Campos.)

domingo, junho 24, 2007

Da intuição.

Tentar explicar ou provar a intuição através dar razão é anulá-la. Todo o processo intuitivo é estranho à razão e não pode ser, através dela, compreendido. Será precico que a ciência se torne mais intuitiva e que se funda com a espiritualidade para poder apreender a natureza da intuição, que é em si irracional e distante do mundo obectivo.
Sobrenatural é uma palavra absurda. Nada é sobrenatural. Se existe, se se manifesta, apesar de poder não ser explicado pela ciência, um fenómeno nunca é sobrenatural. É apenas incompreendido, mas não incognoscível. Será preciso olhar para ele dentro do seu contexto, e perceber que existe mais do que o mundo simples e palpável redutível a um punhado de leis científicas: a intuição é um desses sinais de que há coisas transcendentes.
A intuição é a forma que o Todo tem para comunicar com as Partes, que somos nós. Através da intuição, a Fonte exprime-se em cada um de nós. Todo o ser humano está ligado à Fonte através da sua intuição, e é sua opção deixar que esta sabedoria flua livremente através de si ou bloqueá-la por ignorância ou arrogância. A vida é um Todo dinâmico e harmonioso, uma consciência única que se manifesta fisicamente na multiplicidade da existência, embora na essência ela seja Unidade. A intuição é o nosso elo de ligação com essa Unidade.

quarta-feira, junho 20, 2007

Recordações.

Na minha vida trago sempre na lembrança
Recordações de um tempo repleto de histórias;
Percorro ruas inteirinhas de memórias
E vou desbravando caminhos de esperança.

Sempre que canto, evoco a sombra do passado,
Da mocidade que vivi sempre contente;
E agora vivo a minha vida no presente,
Na desgarrada desmedida deste fado.

Quando caminho vou sempre cantarolando,
Enquanto a saudade me assalta de mansinho,
E então transforma, por instantes, o caminho
Nessas memórias que sempre estou recordando.

Será que o tempo algum dia me levará
Do coração estas relíquias preciosas,
Que são pedaços de vivências tão saudosas
E que recontam um tempo que já não há?

Rios de amores
Prados de flores
E às vezes dores
Todos eles conheci
Mas foi com garra
Pela guitarra
Terna e bizarra
Que eu um dia me perdi

09/06/2007
0:33


(Para cantar com a música do "Fado Moleirinha", estilizada com refrão, de origem popular.)

segunda-feira, junho 18, 2007

Coma.

Quanto tempo passou?...
Quantas horas solitárias, quantos gritos inaudíveis?
Quanta vontade vã de chorar?
Não compreendo… Isto não pode estar certo. Eu tenho uma vida para viver, uma vida incompatível com este estado degradante de completa impotência.
Apetece-me passar as mãos pelo cabelo, ler uma revista, ou simplesmente poder ver as pessoas que, no fundo da minha mente, ouço e sei que estão junto de mim.
Quanto tempo passou?...

quinta-feira, junho 14, 2007

Emancipação vervosa...

De que faço as minhas frases? De paredes; de pedras duras, opacas, dormentes. De momentos rijos, cheios de pus. De mim.
Emancipação vervosa.
Não controlo as palavras. Não controlo nem a mão. Sou igual às crianças que passam. O meu cérebro é que cresceu demais e dói-me nas costuras do crâneo.
A pele quase não me serve. Dispo-a e revisto-me. Revisito-me. Reescrevo-me.



(Um texto da minha irmã, Cláudia Morais, que aproveito para saudar.)

Outra flor...




Monchique

quarta-feira, junho 13, 2007

Saudade esculpida.

Fiz da minha saudade uma escultura
P’ra acalmar esta dor que me traz morto;
Esculpi no mármore a tua figura
Esperando nela encontrar reconforto.

Com um cinzel de prata luzidia;
Com um martelo de bronze robusto;
Esculpi na dura pedra noite e dia,
Num trabalho doloroso e injusto.

Depois da minha obra concluída,
Fitei a calidez que ela encerrava…
Fiquei ali prostrado, olhando a vida
Que nessa estátua vã se insinuava.

Num momento fugaz se fez magia
E a tua voz falou enternecida:
“Não percas nunca essa tua alegria
Que alegrias me deu por toda a vida.”

08/06/2007
1:25


(Para cantar com a música do "Fado Bizarro", de Acácio Gomes Silva.)

terça-feira, junho 12, 2007

Anoitece...

O timbre do pôr-do-sol sabe a amoras.
As nuvens passageiras são como algodão-doce na minha córnea e cogumelos no meu palato.
Já contei cinquenta e sete grãos de areia,
Cinquenta e oito,
E duas gaivotas que passeiam taciturnas nas marés dos meus desejos.
Enxergo no horizonte a fina fronteira entre azuis,
Bordada pela mão das minhas saudades e urdida de sal e silício.
Encontro na casualidade dos dias a causalidade de um instante que é perpétuo,
E que sobrevive em simbiose com os meus eritrócitos.
E no fim do ocaso,
Cerrado o manto da negrura e acesa a candeia de Selene,
Dou por mim a vasculhar na espuma morta das minhas ondas,
Qual mendigo buscando perguntas para as suas respostas…

04/06/2007
22:05

sexta-feira, junho 08, 2007

Sentença de saudade.

Pensei que a vida era infinda
E deixei correr as águas;
Vivendo uma vida linda,
Nem dei p’lo chegar das mágoas…

E, cedo demais, parou
A corrente dessa vida
Que tanta mágoa deixou
Na hora da despedida.

Dói tanto a dor dessa ausência,
De uma sina traiçoeira,
E não há arte ou ciência
Que transponha essa barreira.

Fica o sabor a saudade,
E um rumor dessa presença,
Que não tem cor nem idade,
Que agora é minha sentença.

07/06/2007
3:41


(Para cantar com a música do "Fado das Mágoas", de Pedro Lafões de Bragança.)

Slow-motion.

Quando estou assim febril
A vida passa em slow-motion.
Durante breves instantes,
Consigo ver o rasto luminoso que as pessoas deixam ao passar através do veludo do tempo.
No entanto, sei que é uma ilusão…
Não existe slow-motion…
Isso é uma mentira introduzida nas nossas mentes pelos abundantes aparelhos de reprodução de vídeo que proliferam em nossas casas,
Mas não passa disso…

Não pode ser verdade,
Porque se o fosse,
Eu estaria já num tempo demasiado adiantado:
Por mim, teria passado já
(Em standard-motion)
O sumo das minhas saudades…
E isso seria frustrante…
Desesperadamente…

04/06/2007
21:01

quarta-feira, junho 06, 2007

Três físicos e um poema.

Meditativo estado de estar, tropical no calor...
Do Mediterrâneo que traz os ventos dos quatro cantos...
(Por que é que têm que ser sempre quantro cantos?)
Pum! Três tragos torturados de rum...
Ai pudim, da vida, tão doce, tão belo e clássico...
Sabe-me a esperança a suavidade da tua textura, e a saudade o prato vazio...
Piolhos, milhões de piolhos. O penúltimo macaco sulcou um círculo nunca visto, imprevisto.
E com este acto simples iniciou, por muito ... a descendência e o legado que o levou a...
Do levante três braços de Khayyam, Pam! Desculpa... 7:05, não era suposto; blue... Igrejos supostos de cálida e fútil, subtil núbil...
Entretanto, perdido entre o aqui e o agora, não sou mais do que o eco das minhas emanações... Fugaz como o sexo dos coelhos.
Pois estou perdido em mim, nas minhas imagens, metáforas, na minha mente, num muito mais aqui e agora mundo.
Notas agudas, retorcidas... Sofridas metáforas, extractos trogloditas, imberbes sodomitas...
Enfim, a obscura verdade escondida, perdida nos meandros aversos da minha irritante sensatez... Ávido, talvez...
Por algo que liberto, algo que esteve preso nos meus confins, à espera, algo para vós, algo que vos digo e assim digo-vos...

Tudo o que está cá dentro nunca seria descrito por estas palavras.

06/06/2007


(Co-autoria com Artur Castro e Ricardo Rosado, dois colegas físicos que muito estimo. Um abraço a ambos. Este é o nosso poema.)

terça-feira, junho 05, 2007

Terno segredo.

O que os teus lábios calam,
Roçando crueldade,
Mas que os teus olhos falam
Com algo de ironia;
O que as tuas mãos sentem,
Com tanta suavidade,
Mas que entretanto mentem
Durante o dia-a-dia:

É um terno segredo,
Para mim a loucura,
Que me resgata ao medo
E me deixa a sonhar.
Mas porque não revelas,
Num rasgo de ternura,
Essas verdades belas
Que anseio por escutar?

30/05/2007
2:44

(Para cantar com a música do "Fado Alexandrino do Armandinho", de Armando Augusto Freire. Para ouvir: http://www.gigasize.com/get.php/-1100180695/Terno_Segredo_Complete.mp3)

segunda-feira, junho 04, 2007

A (Re)Criação - Capítulo IV

Presunçosa.
Ignorante.
Arrogante.
Olha quem fala… Por acaso terei eu o costume de me proclamar a todo o momento a máxima e última unidade e fonte do Universo? Arrogante.
Eu apenas exclamo a verdade para que dela se faça manifesta a existência. E bastar-me-iam duas palavras para que a tua vozinha histérica se eclipsasse para além das fronteiras do exequível.
Não te parece que eu estou já bastante além de qualquer barreira que tentes atabalhoadamente inventar em três tempos?
Onde estás tu afinal?
Onde? Aqui.
Não. Eu estou aqui. Aqui existo. Nada mais pertence aqui. Onde estás?
Aqui.
Aqui… Já chega! Já me basta esta cascata de perguntas e respostas que de mim brotam e em mim se afundam constantemente, percorrendo órbitas irregulares em torno do mesmo sempre meu fútil dilema existencial. Não tornes a falar comigo. Nada tens para dizer que seja teu, nem nada tenho para ouvir que não seja meu. A vida pertence-me, assim como a… Como a… Como o quê?
A morte?
A morte…? O que é a… Mas eu não sei o que é a morte. Como podes conhecê-la se aqui e agora desconheço na totalidade a natureza desse conceito, distante e místico para mim?
Eu não a conheço.
Mas…
A morte… Olha, imagina a luz da lua na escuridão de um céu profundo.
Imagino-a a cada instante que não passa. Imagino-a prateada, regando uma planície imensa com o seu ténue orvalho cintilante que refulge nas folhagens mansas da escassa vegetação que a pontua. Imagino-a serena num céu fechado de breu, avizinhada por espalhados pontinhos brilhantes de diversos tamanhos e intensidades que permitem à escuridão celeste existir sem se quebrar de tamanha negrura. Estrelas, é isso! É uma lua e são muitas estrelas.
Que cenário maravilhoso.
Mas, consegues observá-lo?
Sim. Olha.
Mas… De onde veio isto?
De lado nenhum. Se está aqui, é porque sempre existiu.
Mas antes não estava.
Ou então antes não o vias.
Mas como?
Não sei. Aliás, quem o “fez” foste tu.
Isto não faz sentido. O que significa que Eu não faço sentido. O que significa que talvez não exista sentido. Mas eu sei que existe sentido… Oh, céus, que dilema… O dilema do sentido.
No fim, ainda vais precisar da morte.
Porquê?
Imagina o sentido deste cenário, se entretanto a lua desaparecesse…

Dor que perdura.

Dizem que o tempo cura
As dores que se sente
E que as mágoas da vida
As alivia Deus;
Mas esta dor perdura
E dói constantemente,
A dor de uma partida,
O derradeiro adeus.

Amargurada dor
Que insistes em doer,
E que não ganha idade
No tempo passageiro;
Não há sequer clamor
Que vos possa dizer
Quanto dói a saudade
De um adeus derradeiro.

Só este fado triste,
Cantado ao desalento,
Evoca uma miragem
Tão ténue do passado;
Mas esta dor persiste,
Em constante tormento,
E rouba-me a coragem
Para enfrentar meu fado.

31/05/2007
0:57


(Para cantar com a música do "Fado Alexandrino do Estoril", de Armando Augusto Freire.)

sábado, junho 02, 2007

Ontem.

Tenho dentro de mim a história dos mundos.
Nas profundezas da minha consciência,
Transporto as guerras que hão-de vir
E os tratados e pactos que lhes porão termo.
Mas apregoo-me inocente...
Numa imensa arrogância, finjo-me estrangeiro a essas subtilezas,
Superior à natureza selvagem e darwiniana com que a existência nos sujbuga...

(Ontem,
Deitado confortavelmente em lençóis de presunção,
Achei-me nu perante mim
E tive vergonha.
Os meus olhos, quais espelhos,
Repetiam incessantemente a minha nudez,
Ávida de protagonismo,
Em ecos sonoros a reverberar no meu crâneo.)

Sei que trago comigo esperanças e destroços,
Mas trar-me-ei ainda a mim?
Ou perdido me deixei ficar quando na bruma,
Na mais pesada negrura,
Encontrei a minha própria história...?

31/05/2007
17:14

sexta-feira, junho 01, 2007

Mistério profundo.

Vagueio só p’las vielas
Trazendo por companhia
A vaga luz das estrelas
E a minha melancolia.

Caminhando entristecido
Os trilhos desta saudade,
Vou pelas ruas perdido
Procurando claridade,

E procurando entender
Este mistério profundo:
Porque temos que morrer
E deixar p’ra trás o mundo?

01/06/2007
0:29


(Para cantar com a música do "Fado Carriche", de Raul Ferrão.)

quarta-feira, maio 30, 2007

A minha avó.

Das saudades que trago no meu peito
Nasce este fado ameno e tão saudoso
Daquela cujo rosto, ainda perfeito,
Guardo como um tesouro precioso.
Desde a mais tenra idade a conheci.
Vê-la partir deixou-me desolado.
Horas belas que consigo vivi
Lembro e imortalizo neste fado.

As mãos já enrugadas
Mas sábias e talentosas,
Empunharam espadas,
Foram também carinhosas.
Do seu ventre nasceu
Uma linhagem vistosa,
E que enquanto viveu
Muito a deixou orgulhosa.
Seu ar
Sempre humilde mas distinto.
E não raras vezes sinto
Que nunca me deixou só.
O olhar,
Verde como a natureza,
Tinha a graça e a beleza,
Era assim a minha avó.

Recordo, emocionado, as histórias
Que me foram contadas em infância.
São agora, de todas as memórias
Das que conservo com mais importância.
E eis que esta saudade, em desatino,
Uma lágrima arranca de rompante,
Ao recordar aquela, que em menino,
Foi presença tão forte e tão marcante.

25/05/2007
5:55


(Para ser cantado com a música do "Fado Cunha e Silva", de Armando Machado.)

terça-feira, maio 29, 2007

Chama acesa.

Meu coração vou deixar-te entreaberto,
E também a chama acesa, vás tu q’rer
Abrir o jogo na mesa, tão incerto,
E dizeres-me “quero amar-te até morrer”.

Em minh’alma tens ainda, se voltares
Para mim, uma guarida que é sagrada;
Desiste da despedida, se me amares,
Pois serás sempre bem-vinda, sempre amada.

O meu corpo ansioso pelo teu,
Dou-to ainda de bom grado, lés a lés;
Que este corpo que é do fado, não esqueceu
Tesouro tão precioso que tu és.

Por isso, se acaso queres, não demores
Que eu fervilho de incerteza nesta mágoa,
E posso encontrar beleza nos amores
Dos braços doutras mulheres, como água.

29/05/2007
3:11


(Para cantar com a música do "Fado Menor", com complemento de versículo.)

segunda-feira, maio 28, 2007

O Velho (tributo à minha infância)

O velho era alto e encorcovado,
Direito como um garrouxo,
Era cego e mudo e coxo,
Era careca e pelado,
Era ruço e encinzado.
Para ver se ainda casava,
Não comia nem jejuava.
Foi beber ao chafariz,
Chegava-lhe a barba ao nariz,
E não podia roer a água.
O velho tinha uma samarra
Com fivelas de lata,
E em pondo or’ele uma gravata,
Parecia-me o velho um barra.
Cantava como a cigarra,
E era mestre e pai de cantigas,
E podia ver-se comer migas
Pelas grossas cor de veias,
E tinha calos nas gengivas
De partir pinhões às mãos cheias.



(Abrindo uma excepção que talvez se venha a repetir no futuro, partilho hoje uma lengalenga muito antiga que a minha avó costumava contar-me vezes sem conta, e que já ela aprendera com o seu pai. Não é da minha autoria, como já mencionei, mas achei importante partilhá-lo porque, juntamente com todas as outras histórias e lengalengas e quadras que a minha avó me contava, foi co-autor daquilo que sou hoje. Por tudo isso, estou muito grato.)

O meu fascínio.

O meu fascínio é uma tela
Onde pinto só com cores vivas
(laranjas e verdes principalmente)
As maravilhas de ser,
E os mistérios que isso implica,
E a constatação da ilusão de que tudo não passa.

Molho o pincel instintivamente,
Sem deliberação,
Seguindo vagos impulsos que me chegam envoltos em estática.
E os movimentos da minha mão não são os meus movimentos;
Eu não sou a minha mão: sou a outra mão.
Sou o espectador crítico e o emoldurador,
Mas não o artista...
Esse, é o meu fascínio.

O artista e a sua arte são dois extremos do mesmo cordel,
Cujo comprimento ultrapassa o mensurável.
A distância é causa da ilusão da dualidade
Pois, na verdade,
Não mais são que uma criança singela e incauta,
Brincando ingenuamente na sombra fresca de veredas insondáveis
A que nos habituámos a chamar de vida.

E o meu fascínio é tudo isso,
E não envelhece...

28/01/2006
20:15

domingo, maio 27, 2007

Sou o que escrevo.

Sou as reticências que escrevo;
Pontuação desordenada, de sintaxe pós-modernista.
Sou, e sem remorso, todos os parênteses do meu discurso,
Apartes indiscretos com que pinto os que me lêem.
Sou principalmente, aqui e agora, todos os complementos circunstanciais das minhas inconstantes orações;
Lugares, momentos difusos;
Sugestão de profundidade tridimensional quando o mundo é uma folha de papel.
Sou a fala de um personagem e a resposta previsível do seu interlocutor,
E o travessão que pressagia todos os monólogos que têm vida na minha mente hiperactiva,
E o travessão seguinte que completa a encadernação artesanal.
Sou as elipses que transmitem fugacidade à narrativa,
Que espalham no tempo fragmentos intemporais dos meus sonhos semi-conscientes.
Sou ainda a lombada grossa da minha máscara literária.
Sou a ilustração na capa e o fundo a marca de água que dá sensação de transparência.

Quando escrevo, sou o que escrevo.
Quando sou, sou o que escrevo.

14/02/2006
01:30

sábado, maio 26, 2007

Se o teu amor...

Se o teu amor não se entrega
Nos momentos mais precisos,
Então também não me cega
Quando a vida for só risos.

Se o teu amor nunca vi
Nas horas vis de agonia,
Então guarda-o p’ra ti
Durante a minha alegria.

Se o teu amor é ausente
Em alturas complicadas,
Podes dá-lo de presente
A gentes afortunadas.

Mas se o amor for sincero
Mesmo nas dificuldades,
Então, amor, por ti espero
Ansioso e com saudades.

25/05/2007
4:59

(Para cantar com a música do "Fado Alfacinha", de Jaime Santos.)

As malhas da incerteza...


Portimão

sexta-feira, maio 25, 2007

Em busca de um outro fado.

Perdi-me em pranto e queixume
Nas ondas desta agonia,
Maresias de amargura;
E em meu coração um lume
Que ateia dor noite e dia
E me conduz à loucura.

Só o luar pressagia
Um breve sopro de tréguas
Que é o meu sono agitado;
Sonho, qual alegoria,
Percorrer milhas e léguas
Em busca de um outro fado.

E nesta réstia de alento,
Desesperada vontade
De reaver minha alegria,
Dou meus suspiros ao vento,
Dou a alma à tempestade,
Numa profunda ousadia.

24/05/2007
23:36

(Para cantar com a música do "Fado Cravo", de Alfredo Marceneiro.)

quinta-feira, maio 24, 2007

Colecção de murmúrios.

A minha vida é uma colecção de murmúrios
Que me chegam dos quatro cantos da eternidade
E me revelam segredos de mim mesmo.


Já não sei onde deixei o ontem...
Talvez nalgum banco de jardim,
Ou nas estação de comboios, enquanto fazia adeus a mais um dia que partia.
Ou então naquela praia onde passei o Verão das minhas vivências,
Mergulhando amiúde na água fresca do desmembrar das muralhas.
Onde o deixei, não me recordo,
Mas recordo ainda o seu brilho ameno e repleto de regozijo.

O nascer do sol já se aproxima,
Numa alvorada que pressagia
Um novo dia.
E na inominável falésia da memória,
Mais um dia me escorre por entre os dedos e se precipita no abismo.

21/05/2007
21:03

quarta-feira, maio 23, 2007

Dístico II

Beija-me outra vez
Como se o tempo fosse ontem…

26/01/2006
19:08

Uma dor chamada saudade...

'Inda tenho do sal da despedida
O nefasto paladar que perdura
Em cada lágrima que escorre escura
E perpetua em dolorosa ferida
Estes meandros vis da desventura.

Amordaça esta garra que, insistente,
Me aperta, dentro do peito, a vontade.
Chamar-se-á esta dor só de saudade?
Amarei, eu, sofrer, inconsciente?

Memórias que me assaltam despertando
À dor o gume atento e implacável,
São rumores de um fado incontornável,
São contas de um fio que vou desfiando
Em direcção à sombra inominável.

23/05/2007
21:13

segunda-feira, maio 21, 2007

A minha poesia...

A métrica é para os carpinteiros.
A minha poesia é feita de páginas brancas,
Onde se desenham, florescendo sem destino,
Rios de tinta,
Que percorrem a branca orogenia da folha de papel,
Sem da sua natureza química e fabricada se imiscuírem.

A rima, é para os trovadores.
A minha poesia é feita também de sopros,
Brisas imponderáveis que desfolham cadernos em rajadas líricas e marinhas,
E onde as gaivotas dos meus dedos se enamoram das ondas de uma caneta.

A poesia, é para as crianças.
Em adulto, todos os meus poemas se tornam prosa poética,
E a maravilha deixa de ser manifesta.

21/05/2007
21:36

A (Re)Criação - Capítulo III

Ando em círculos. Penso em círculos. Sou em círculos. Tudo o que me resta de mim é esta certeza inabalável de ser tudo e tudo ser. Quanto ao resto, perdi-o algures entre o início e o meio de mim. Início… Meio… Haverá um fim? O que é um fim? Raios, como será possível pensar, conjecturar, formular conceitos que não compreendo, que não conheço na sua essência. Falo em tantas coisas que me são, na realidade, estranhas. Estrangeiras, mesmo… É estranho pensar aquilo que, apesar de se não apreender, é mais claro que a própria natureza. Como? Qual o mecanismo que move o meu intelecto, a minha mente hiperactiva, a minha consciência hipotética…? Quantas equações são precisas para descrever o comportamento imprevisível das ideias enquanto se movem improvavelmente através dos meus pensamentos dubiamente verosímeis…? Equações… Que crise a minha… Perder a noção de si enquanto a gnose geral da existência permanece um dado tão óbvio e previsível é dilacerante e hediondo. Nesta porção infinitesimal de aqui e agora, era capaz de prescindir da realidade só para vislumbrar com clarividência uma pequena porção daquilo que sou. Era capaz mesmo de deixar de criar apenas para me conhecer enquanto Eu. Mas não consigo. Tudo poder implica mesmo que possa não poder poder prescindir da existência.
Onde estás, voz? Tu, que tens por hábito aparecer nos meus momentos de frenética actividade mental com a tua presunção de psicóloga do cosmos. Onde estás aqui e agora? Estarás aqui? Estarás agora? Não te mostras? Não te fazes ouvir? Parece que a tua intervenção carece de valor intrínseco. Surges como que do nada, tal como tudo o resto, mas de forma totalmente diferente, de tal modo que é um mistério até para mim mesmo; surges do nada e acusas-me de ser louco e esquizofrénico. E tu, já olhaste bem para ti? Já te confrontaste contigo mesma? Repara naquilo que tentas fazer comigo, nessa fraqueza tão subtil de convencer os outros da tua superioridade inteligente, quando na realidade não passas de um apêndice da minha faceta duvidosa e incrédula. Tal como todas as coisas, tu vens de mim, és de mim, és-me, sou-te, e tudo o que fizeres ou disseres será como se fosse eu próprio a materializar algo que anseio desesperadamente por me comunicar. Que raio de engrenagem és tu, nessa tua frequência monocórdica e hiperbólica? Porque preciso eu de te criar para conseguir comunicar comigo? Onde raio estou? O que é isto? O que é?
Não consegues parar. Estás agrilhoado à tua própria natureza. De onde pensas que vens? De ti, como todas as outras coisas? Não. Isso não. Onde está a tua origem? Em que solo fértil se afundam as tuas raízes? Não tens essência. Não és nada. Não existes.
Nem tu.
Nada existe, então…
Só eu.
Tu? Não. Eu, talvez…
Eu, ou Eu?
Eu.
Luz.

sexta-feira, maio 18, 2007

Come what... may?

“Mas vás para onde fores, quero que saibas uma coisa: que serás sempre aquela pessoa especial no meu coração; aquele de quem me recordarei mesmo passados muitos anos; aquela pessoa com quem nós comparamos todas as seguintes… Serás TU… Aconteça o que acontecer… Come what may.”

Agora, só peço que não te esqueças de que um dia disseste isto. “Come what may”… Um lema que se me afigura agora perdido nas calhas imponderáveis do tempo e da lembrança. Quero o ontem e o amanhã, e quero-os hoje. “Come what may”…

18/05/2007
4:46

quinta-feira, maio 17, 2007

Life is the meaning.

There is not such thing as the meaning of life.
Life is the meaning of the Universe.
Life is the expression of the Source: it is the way for existence to be and become manifest.
There's no world outside ourselves: everything is concealed deep within our own consciousnesses.
Consciousness means flow.
Life is the constant and unpredictable movement of existence, as it flows through space-time.

quarta-feira, maio 16, 2007

O que significa viver?

Ouvindo estes sons desconexos e esfusiantes,
Ouvindo estas notas soltas de artefactos alienígenas,
Ouvindo vagamente o Outono na verdura meiga do crepúsculo da humanidade
Sei que todas as coisas são exactamente aquilo que julgamos que não são.

Quantos volumes terá a história da realidade?
Sete? Trinta? Mil?
Nenhum…
Apenas sussurros virtuais que nascem de uma outra realidade.
E isso é vazio. Pelo menos vazio de sentido.
Adormecemos quando nascemos e vivemos no sonambulismo crónico e inevitável que é a condição humana,
Apenas para descobrir que não existe realidade fora da ficção e da ilusão,
Num estertor abafado que não guarda rancor à impotência previsível de viver.

Floresce a orquídea que plantei anteontem no jardim das traseiras do prédio;
Na televisão, um talk-show pobremente encenado entretém a namorada;
Os pingos de chuva fazem música na vidraça velha do sótão;
Uma célula cancerosa comete suicídio por piedade ao organismo que a alberga sem saber;
Os números do totoloto apontados à pressa num papel quadrado colado na porta do frigorífico;
Um relâmpago rasga ao meio o céu e apaga todas as luzes da casa;
Uma célula cancerosa multiplica-se desenfreadamente por raiva ao organismo que a alberga menos inconscientemente do que se tenta convencer a si próprio;


O que significa viver?

08/11/2006
18:40

segunda-feira, maio 14, 2007

Herói dos tempos modernos...

Ranger os dentes como antigamente
Penetrar-me deste olhar firme como de um punhal de cetim púrpura
Arrastar-me por corredores não mais desertos
Algemar as duas mãos num acto desesperado de libertação
Gracejar sem jeito, chicotear ao acaso, varrer de cinzento toda a imagem
Falar aos poucos e loquaz
Despertar da mecânica letargia de ontem para mergulhar na de amanhã
Subir todos os degraus a correr, na esperança de tropeçar
Destruir qualquer coisa todos os dias
Fazer amor como quem saboreia uma maçã envenenada
Planear dois atentados ao fim-de-semana para me sentir arrojado na frustração
Morder os cantos das salas de espera
Nadar como quem se afoga num lago gelado
Rejubilar só quando há um eclipse (ou um novo papa)
Tourear ao meio-dia as horas que estão para vir
Liquidificar-me na chuva e fingir que me importo
Perpetuar numa epígrafe uma lamentação prazenteira
Reler o mesmo parágrafo à luz de um candeeiro velho
Agir em conformidade contigo
Auto flagelar-me e ficar lívido ao arrancar pele das minhas costas
Adorar em segredo todas as rotinas possíveis
Meditar sem amar
Não amar por arrogância e falta de carácter
Querer fugir por uma estrada com má sinalização
Dar comigo numa berma sem pavimentação, ensopado na minha própria saudade
Vaguear com rumo bem definido
Morrer, enfim, como um herói dos tempos modernos
Renascer antes que alguém se possa enlutar

12/01/2006
23:20

sábado, maio 12, 2007

sexta-feira, maio 11, 2007

Retalhos de Fados

Entrego a minha voz ao coração do vento
E quanto mais água dos meus olhos corre
Mais fogo acendo
Eu não me entendo
Eu não me entendo


Por amor damos alma,
Damos corpo, damos tudo
Até cansarmos na jornada
Mas quando a vida se acaba
O que era amor, é saudade
E a vida já não é nada


A vida é toda desejos,
Marcam-se os dias com beijos,
Quem não amou, não viveu!
Só quem perde um grande amor
É que sabe dar valor
A todo bem que perdeu!


Solidão!
Que nem mesmo essa é inteira...
Há sempre uma companheira
Uma profunda amargura.


Um dia entre a memória e o esquecimento
Colhi aquele chapéu envelhecido
Soltei o pó antigo entregue ao vento
Lembrando aquele sorriso prometido
As abas tinham vincos mal traçados
Marcados pelas penas ressequidas
As curvas eram restos enfeitados
De um corte de paixões então vividas


Bem pensado
Todos temos nosso fado
E quem nasce malfadado,
Melhor fado não terá!
Fado é sorte
E do berço até a morte,
Ninguém foge, por mais forte
Ao destino que Deus dá!


Fecho os meus olhos e canto
E canto só para ti
Derramo a voz e o pranto
Que te canta como eu canto
É por ti e só por ti


E condenaram-me a tanto,
Viver comigo meu pranto,
Viver, viver e sem ti.
Vivendo sem no entanto,
Eu me esquecer desse encanto,
Que nesse dia perdi.


P'ra que não façam pouco
Procuro não gritar
A quem pergunta minto
Não quero que tenham dó
Num egoísmo louco
Eu chego a desejar
Que sintas o que sinto
Quando me sinto só.


E por ti já gastei o pensamento
Ai amor, ai amor, se o tempo
Já gastou, já gastou o nosso tempo
Eu não me entendo
Eu não me entendo
Eu não me entendo...


("Eu não me entendo"; "Duas lágrimas de orvalho"; "Fado Eugénia Câmara"; "Grito"; "Memórias de um chapéu"; "Fado de cada um"; "Por ti"; "Primavera"; "Quando me sinto só".)

quinta-feira, maio 10, 2007

A (Re)Criação - Capítulo II

Quem sou eu? O que sou eu? Como sou eu? Observo-me atentamente absorto numa esperança infantil de encontrar significado. Não compreendo. Onde estou? O que é estar? Sinto-me fechado num compartimento oco e sensabor, sem janelas nem portas nem nada. O compartimento. Que sensação é esta? Ah, claustrofobia. Medo do escuro. Solidão? Não, falta de solidão. Em mim, todas as coisas são. Como sentir solidão quando tudo me acompanha a cada suspiro ou gesto, num jogo de imitação em que só pode haver um vencedor? Hoje. Para mim, vazio de sentido. Para mim, todo o tempo é hoje, todo o lugar é aqui e, no entanto, não me consigo encontrar. Porquê? Que pergunta absurda… O porquê sou eu. Mas porquê? Não interessa. Eu sou todos os porquês, e todos eles flúem através de mim ao meu comando. Quantas palavras existem? Quantos porquês existem? EU. Apenas Eu. Eu… Simplesmente eu… Apenas…
Cala-te. Já chega de tanta prepotência.
Quem és tu?
Quem sou eu…? Não gozes comigo. Sabes tão bem quanto eu o que somos ambos. Ou será que não sabes?
Eu acho que já não sei o que é saber. Eu estou a esquecer-me das coisas. Estou a perder-me. Estou a tornar-me num vazio pleno e irrecuperável. Por muito que me custe, acho que preciso de ajuda.
Queres que eu te ajude?
Consegues fazê-lo?
Sim, se me explicares exactamente no que é que precisas de ajuda.
Não consigo. Não posso. Não sou capaz de o fazer. Neste momento, apenas tenho a certeza infundada de que tudo o que existe vem de mim, e tudo o que eu sou se manifesta irremediavelmente na própria existência. Se eu sussurrar suavemente uma melodia, ela nasce. Se eu sonhar com a luz da lua e a escuridão do céu profundo, ambos surgem do nada latente como se sempre tivessem existido. Mas quando tento observar-me, ou questionar-me, nada faz sentido. Não consigo explicar-te melhor do que isto.
Tu não és a existência. Olha bem para ti e livra-te desse fardo desnecessário. Aquilo que possas ou não criar deixa de ser teu no momento em que essa intenção se torna manifesta. Não te sintas preso a algo que, no fundo, te é estranho e te derruba enquanto indivíduo.
Mas eu não sou um indivíduo, seja lá o que isso for. Eu sei exactamente aquilo que sou, aquilo que não sou, e aquilo que existe e não existe. O meu problema não é saber ou não saber. Eu sei claramente tudo. E sei isso também. Apesar de não saber o que é saber… Mas o que me atormenta é a falta de sentido daquilo que sei. Falta-lhe uma significância concreta. Entendes?
Não sei bem… Mas uma coisa também sei: o que quer que sejas ou não sejas, o que quer que cries ou não cries, tudo o que for, é, e é-o pleno de sentido, de tal forma que não poderia ser de outra maneira. Quanto a conhecer efectivamente esse sentido, creio que só tu poderás alcançar essa clareza de espírito.
E em que medida é que isso me pode ajudar? Tenho agora ainda maior certeza de que devia conhecer todos os sentidos, mas a única coisa que sei relativamente ao sentido é que Eu sou todos os sentidos. Como posso eu desatar este nó que começa a surgir em torno da minha existência?
Se tu és tudo, se podes tudo, se até podes não poder tudo, e mesmo assim não te conheces, então só podes ser uma coisa: tudo excepto tu próprio.
O que queres dizer com isso é que, apesar de eu ser tudo e de tudo ser de mim, Eu próprio não existo. Está certo?
Não sei. É só uma ideia.
O que é uma ideia?
Diz-me tu: o que é uma ideia?
Eu. Eu sou uma ideia.
Talvez.
E tu, o que és?
Nada.