quarta-feira, maio 30, 2007

A minha avó.

Das saudades que trago no meu peito
Nasce este fado ameno e tão saudoso
Daquela cujo rosto, ainda perfeito,
Guardo como um tesouro precioso.
Desde a mais tenra idade a conheci.
Vê-la partir deixou-me desolado.
Horas belas que consigo vivi
Lembro e imortalizo neste fado.

As mãos já enrugadas
Mas sábias e talentosas,
Empunharam espadas,
Foram também carinhosas.
Do seu ventre nasceu
Uma linhagem vistosa,
E que enquanto viveu
Muito a deixou orgulhosa.
Seu ar
Sempre humilde mas distinto.
E não raras vezes sinto
Que nunca me deixou só.
O olhar,
Verde como a natureza,
Tinha a graça e a beleza,
Era assim a minha avó.

Recordo, emocionado, as histórias
Que me foram contadas em infância.
São agora, de todas as memórias
Das que conservo com mais importância.
E eis que esta saudade, em desatino,
Uma lágrima arranca de rompante,
Ao recordar aquela, que em menino,
Foi presença tão forte e tão marcante.

25/05/2007
5:55


(Para ser cantado com a música do "Fado Cunha e Silva", de Armando Machado.)

terça-feira, maio 29, 2007

Chama acesa.

Meu coração vou deixar-te entreaberto,
E também a chama acesa, vás tu q’rer
Abrir o jogo na mesa, tão incerto,
E dizeres-me “quero amar-te até morrer”.

Em minh’alma tens ainda, se voltares
Para mim, uma guarida que é sagrada;
Desiste da despedida, se me amares,
Pois serás sempre bem-vinda, sempre amada.

O meu corpo ansioso pelo teu,
Dou-to ainda de bom grado, lés a lés;
Que este corpo que é do fado, não esqueceu
Tesouro tão precioso que tu és.

Por isso, se acaso queres, não demores
Que eu fervilho de incerteza nesta mágoa,
E posso encontrar beleza nos amores
Dos braços doutras mulheres, como água.

29/05/2007
3:11


(Para cantar com a música do "Fado Menor", com complemento de versículo.)

segunda-feira, maio 28, 2007

O Velho (tributo à minha infância)

O velho era alto e encorcovado,
Direito como um garrouxo,
Era cego e mudo e coxo,
Era careca e pelado,
Era ruço e encinzado.
Para ver se ainda casava,
Não comia nem jejuava.
Foi beber ao chafariz,
Chegava-lhe a barba ao nariz,
E não podia roer a água.
O velho tinha uma samarra
Com fivelas de lata,
E em pondo or’ele uma gravata,
Parecia-me o velho um barra.
Cantava como a cigarra,
E era mestre e pai de cantigas,
E podia ver-se comer migas
Pelas grossas cor de veias,
E tinha calos nas gengivas
De partir pinhões às mãos cheias.



(Abrindo uma excepção que talvez se venha a repetir no futuro, partilho hoje uma lengalenga muito antiga que a minha avó costumava contar-me vezes sem conta, e que já ela aprendera com o seu pai. Não é da minha autoria, como já mencionei, mas achei importante partilhá-lo porque, juntamente com todas as outras histórias e lengalengas e quadras que a minha avó me contava, foi co-autor daquilo que sou hoje. Por tudo isso, estou muito grato.)

O meu fascínio.

O meu fascínio é uma tela
Onde pinto só com cores vivas
(laranjas e verdes principalmente)
As maravilhas de ser,
E os mistérios que isso implica,
E a constatação da ilusão de que tudo não passa.

Molho o pincel instintivamente,
Sem deliberação,
Seguindo vagos impulsos que me chegam envoltos em estática.
E os movimentos da minha mão não são os meus movimentos;
Eu não sou a minha mão: sou a outra mão.
Sou o espectador crítico e o emoldurador,
Mas não o artista...
Esse, é o meu fascínio.

O artista e a sua arte são dois extremos do mesmo cordel,
Cujo comprimento ultrapassa o mensurável.
A distância é causa da ilusão da dualidade
Pois, na verdade,
Não mais são que uma criança singela e incauta,
Brincando ingenuamente na sombra fresca de veredas insondáveis
A que nos habituámos a chamar de vida.

E o meu fascínio é tudo isso,
E não envelhece...

28/01/2006
20:15

domingo, maio 27, 2007

Sou o que escrevo.

Sou as reticências que escrevo;
Pontuação desordenada, de sintaxe pós-modernista.
Sou, e sem remorso, todos os parênteses do meu discurso,
Apartes indiscretos com que pinto os que me lêem.
Sou principalmente, aqui e agora, todos os complementos circunstanciais das minhas inconstantes orações;
Lugares, momentos difusos;
Sugestão de profundidade tridimensional quando o mundo é uma folha de papel.
Sou a fala de um personagem e a resposta previsível do seu interlocutor,
E o travessão que pressagia todos os monólogos que têm vida na minha mente hiperactiva,
E o travessão seguinte que completa a encadernação artesanal.
Sou as elipses que transmitem fugacidade à narrativa,
Que espalham no tempo fragmentos intemporais dos meus sonhos semi-conscientes.
Sou ainda a lombada grossa da minha máscara literária.
Sou a ilustração na capa e o fundo a marca de água que dá sensação de transparência.

Quando escrevo, sou o que escrevo.
Quando sou, sou o que escrevo.

14/02/2006
01:30

sábado, maio 26, 2007

Se o teu amor...

Se o teu amor não se entrega
Nos momentos mais precisos,
Então também não me cega
Quando a vida for só risos.

Se o teu amor nunca vi
Nas horas vis de agonia,
Então guarda-o p’ra ti
Durante a minha alegria.

Se o teu amor é ausente
Em alturas complicadas,
Podes dá-lo de presente
A gentes afortunadas.

Mas se o amor for sincero
Mesmo nas dificuldades,
Então, amor, por ti espero
Ansioso e com saudades.

25/05/2007
4:59

(Para cantar com a música do "Fado Alfacinha", de Jaime Santos.)

As malhas da incerteza...


Portimão

sexta-feira, maio 25, 2007

Em busca de um outro fado.

Perdi-me em pranto e queixume
Nas ondas desta agonia,
Maresias de amargura;
E em meu coração um lume
Que ateia dor noite e dia
E me conduz à loucura.

Só o luar pressagia
Um breve sopro de tréguas
Que é o meu sono agitado;
Sonho, qual alegoria,
Percorrer milhas e léguas
Em busca de um outro fado.

E nesta réstia de alento,
Desesperada vontade
De reaver minha alegria,
Dou meus suspiros ao vento,
Dou a alma à tempestade,
Numa profunda ousadia.

24/05/2007
23:36

(Para cantar com a música do "Fado Cravo", de Alfredo Marceneiro.)

quinta-feira, maio 24, 2007

Colecção de murmúrios.

A minha vida é uma colecção de murmúrios
Que me chegam dos quatro cantos da eternidade
E me revelam segredos de mim mesmo.


Já não sei onde deixei o ontem...
Talvez nalgum banco de jardim,
Ou nas estação de comboios, enquanto fazia adeus a mais um dia que partia.
Ou então naquela praia onde passei o Verão das minhas vivências,
Mergulhando amiúde na água fresca do desmembrar das muralhas.
Onde o deixei, não me recordo,
Mas recordo ainda o seu brilho ameno e repleto de regozijo.

O nascer do sol já se aproxima,
Numa alvorada que pressagia
Um novo dia.
E na inominável falésia da memória,
Mais um dia me escorre por entre os dedos e se precipita no abismo.

21/05/2007
21:03

quarta-feira, maio 23, 2007

Dístico II

Beija-me outra vez
Como se o tempo fosse ontem…

26/01/2006
19:08

Uma dor chamada saudade...

'Inda tenho do sal da despedida
O nefasto paladar que perdura
Em cada lágrima que escorre escura
E perpetua em dolorosa ferida
Estes meandros vis da desventura.

Amordaça esta garra que, insistente,
Me aperta, dentro do peito, a vontade.
Chamar-se-á esta dor só de saudade?
Amarei, eu, sofrer, inconsciente?

Memórias que me assaltam despertando
À dor o gume atento e implacável,
São rumores de um fado incontornável,
São contas de um fio que vou desfiando
Em direcção à sombra inominável.

23/05/2007
21:13

segunda-feira, maio 21, 2007

A minha poesia...

A métrica é para os carpinteiros.
A minha poesia é feita de páginas brancas,
Onde se desenham, florescendo sem destino,
Rios de tinta,
Que percorrem a branca orogenia da folha de papel,
Sem da sua natureza química e fabricada se imiscuírem.

A rima, é para os trovadores.
A minha poesia é feita também de sopros,
Brisas imponderáveis que desfolham cadernos em rajadas líricas e marinhas,
E onde as gaivotas dos meus dedos se enamoram das ondas de uma caneta.

A poesia, é para as crianças.
Em adulto, todos os meus poemas se tornam prosa poética,
E a maravilha deixa de ser manifesta.

21/05/2007
21:36

A (Re)Criação - Capítulo III

Ando em círculos. Penso em círculos. Sou em círculos. Tudo o que me resta de mim é esta certeza inabalável de ser tudo e tudo ser. Quanto ao resto, perdi-o algures entre o início e o meio de mim. Início… Meio… Haverá um fim? O que é um fim? Raios, como será possível pensar, conjecturar, formular conceitos que não compreendo, que não conheço na sua essência. Falo em tantas coisas que me são, na realidade, estranhas. Estrangeiras, mesmo… É estranho pensar aquilo que, apesar de se não apreender, é mais claro que a própria natureza. Como? Qual o mecanismo que move o meu intelecto, a minha mente hiperactiva, a minha consciência hipotética…? Quantas equações são precisas para descrever o comportamento imprevisível das ideias enquanto se movem improvavelmente através dos meus pensamentos dubiamente verosímeis…? Equações… Que crise a minha… Perder a noção de si enquanto a gnose geral da existência permanece um dado tão óbvio e previsível é dilacerante e hediondo. Nesta porção infinitesimal de aqui e agora, era capaz de prescindir da realidade só para vislumbrar com clarividência uma pequena porção daquilo que sou. Era capaz mesmo de deixar de criar apenas para me conhecer enquanto Eu. Mas não consigo. Tudo poder implica mesmo que possa não poder poder prescindir da existência.
Onde estás, voz? Tu, que tens por hábito aparecer nos meus momentos de frenética actividade mental com a tua presunção de psicóloga do cosmos. Onde estás aqui e agora? Estarás aqui? Estarás agora? Não te mostras? Não te fazes ouvir? Parece que a tua intervenção carece de valor intrínseco. Surges como que do nada, tal como tudo o resto, mas de forma totalmente diferente, de tal modo que é um mistério até para mim mesmo; surges do nada e acusas-me de ser louco e esquizofrénico. E tu, já olhaste bem para ti? Já te confrontaste contigo mesma? Repara naquilo que tentas fazer comigo, nessa fraqueza tão subtil de convencer os outros da tua superioridade inteligente, quando na realidade não passas de um apêndice da minha faceta duvidosa e incrédula. Tal como todas as coisas, tu vens de mim, és de mim, és-me, sou-te, e tudo o que fizeres ou disseres será como se fosse eu próprio a materializar algo que anseio desesperadamente por me comunicar. Que raio de engrenagem és tu, nessa tua frequência monocórdica e hiperbólica? Porque preciso eu de te criar para conseguir comunicar comigo? Onde raio estou? O que é isto? O que é?
Não consegues parar. Estás agrilhoado à tua própria natureza. De onde pensas que vens? De ti, como todas as outras coisas? Não. Isso não. Onde está a tua origem? Em que solo fértil se afundam as tuas raízes? Não tens essência. Não és nada. Não existes.
Nem tu.
Nada existe, então…
Só eu.
Tu? Não. Eu, talvez…
Eu, ou Eu?
Eu.
Luz.

sexta-feira, maio 18, 2007

Come what... may?

“Mas vás para onde fores, quero que saibas uma coisa: que serás sempre aquela pessoa especial no meu coração; aquele de quem me recordarei mesmo passados muitos anos; aquela pessoa com quem nós comparamos todas as seguintes… Serás TU… Aconteça o que acontecer… Come what may.”

Agora, só peço que não te esqueças de que um dia disseste isto. “Come what may”… Um lema que se me afigura agora perdido nas calhas imponderáveis do tempo e da lembrança. Quero o ontem e o amanhã, e quero-os hoje. “Come what may”…

18/05/2007
4:46

quinta-feira, maio 17, 2007

Life is the meaning.

There is not such thing as the meaning of life.
Life is the meaning of the Universe.
Life is the expression of the Source: it is the way for existence to be and become manifest.
There's no world outside ourselves: everything is concealed deep within our own consciousnesses.
Consciousness means flow.
Life is the constant and unpredictable movement of existence, as it flows through space-time.

quarta-feira, maio 16, 2007

O que significa viver?

Ouvindo estes sons desconexos e esfusiantes,
Ouvindo estas notas soltas de artefactos alienígenas,
Ouvindo vagamente o Outono na verdura meiga do crepúsculo da humanidade
Sei que todas as coisas são exactamente aquilo que julgamos que não são.

Quantos volumes terá a história da realidade?
Sete? Trinta? Mil?
Nenhum…
Apenas sussurros virtuais que nascem de uma outra realidade.
E isso é vazio. Pelo menos vazio de sentido.
Adormecemos quando nascemos e vivemos no sonambulismo crónico e inevitável que é a condição humana,
Apenas para descobrir que não existe realidade fora da ficção e da ilusão,
Num estertor abafado que não guarda rancor à impotência previsível de viver.

Floresce a orquídea que plantei anteontem no jardim das traseiras do prédio;
Na televisão, um talk-show pobremente encenado entretém a namorada;
Os pingos de chuva fazem música na vidraça velha do sótão;
Uma célula cancerosa comete suicídio por piedade ao organismo que a alberga sem saber;
Os números do totoloto apontados à pressa num papel quadrado colado na porta do frigorífico;
Um relâmpago rasga ao meio o céu e apaga todas as luzes da casa;
Uma célula cancerosa multiplica-se desenfreadamente por raiva ao organismo que a alberga menos inconscientemente do que se tenta convencer a si próprio;


O que significa viver?

08/11/2006
18:40

segunda-feira, maio 14, 2007

Herói dos tempos modernos...

Ranger os dentes como antigamente
Penetrar-me deste olhar firme como de um punhal de cetim púrpura
Arrastar-me por corredores não mais desertos
Algemar as duas mãos num acto desesperado de libertação
Gracejar sem jeito, chicotear ao acaso, varrer de cinzento toda a imagem
Falar aos poucos e loquaz
Despertar da mecânica letargia de ontem para mergulhar na de amanhã
Subir todos os degraus a correr, na esperança de tropeçar
Destruir qualquer coisa todos os dias
Fazer amor como quem saboreia uma maçã envenenada
Planear dois atentados ao fim-de-semana para me sentir arrojado na frustração
Morder os cantos das salas de espera
Nadar como quem se afoga num lago gelado
Rejubilar só quando há um eclipse (ou um novo papa)
Tourear ao meio-dia as horas que estão para vir
Liquidificar-me na chuva e fingir que me importo
Perpetuar numa epígrafe uma lamentação prazenteira
Reler o mesmo parágrafo à luz de um candeeiro velho
Agir em conformidade contigo
Auto flagelar-me e ficar lívido ao arrancar pele das minhas costas
Adorar em segredo todas as rotinas possíveis
Meditar sem amar
Não amar por arrogância e falta de carácter
Querer fugir por uma estrada com má sinalização
Dar comigo numa berma sem pavimentação, ensopado na minha própria saudade
Vaguear com rumo bem definido
Morrer, enfim, como um herói dos tempos modernos
Renascer antes que alguém se possa enlutar

12/01/2006
23:20

sábado, maio 12, 2007

sexta-feira, maio 11, 2007

Retalhos de Fados

Entrego a minha voz ao coração do vento
E quanto mais água dos meus olhos corre
Mais fogo acendo
Eu não me entendo
Eu não me entendo


Por amor damos alma,
Damos corpo, damos tudo
Até cansarmos na jornada
Mas quando a vida se acaba
O que era amor, é saudade
E a vida já não é nada


A vida é toda desejos,
Marcam-se os dias com beijos,
Quem não amou, não viveu!
Só quem perde um grande amor
É que sabe dar valor
A todo bem que perdeu!


Solidão!
Que nem mesmo essa é inteira...
Há sempre uma companheira
Uma profunda amargura.


Um dia entre a memória e o esquecimento
Colhi aquele chapéu envelhecido
Soltei o pó antigo entregue ao vento
Lembrando aquele sorriso prometido
As abas tinham vincos mal traçados
Marcados pelas penas ressequidas
As curvas eram restos enfeitados
De um corte de paixões então vividas


Bem pensado
Todos temos nosso fado
E quem nasce malfadado,
Melhor fado não terá!
Fado é sorte
E do berço até a morte,
Ninguém foge, por mais forte
Ao destino que Deus dá!


Fecho os meus olhos e canto
E canto só para ti
Derramo a voz e o pranto
Que te canta como eu canto
É por ti e só por ti


E condenaram-me a tanto,
Viver comigo meu pranto,
Viver, viver e sem ti.
Vivendo sem no entanto,
Eu me esquecer desse encanto,
Que nesse dia perdi.


P'ra que não façam pouco
Procuro não gritar
A quem pergunta minto
Não quero que tenham dó
Num egoísmo louco
Eu chego a desejar
Que sintas o que sinto
Quando me sinto só.


E por ti já gastei o pensamento
Ai amor, ai amor, se o tempo
Já gastou, já gastou o nosso tempo
Eu não me entendo
Eu não me entendo
Eu não me entendo...


("Eu não me entendo"; "Duas lágrimas de orvalho"; "Fado Eugénia Câmara"; "Grito"; "Memórias de um chapéu"; "Fado de cada um"; "Por ti"; "Primavera"; "Quando me sinto só".)

quinta-feira, maio 10, 2007

A (Re)Criação - Capítulo II

Quem sou eu? O que sou eu? Como sou eu? Observo-me atentamente absorto numa esperança infantil de encontrar significado. Não compreendo. Onde estou? O que é estar? Sinto-me fechado num compartimento oco e sensabor, sem janelas nem portas nem nada. O compartimento. Que sensação é esta? Ah, claustrofobia. Medo do escuro. Solidão? Não, falta de solidão. Em mim, todas as coisas são. Como sentir solidão quando tudo me acompanha a cada suspiro ou gesto, num jogo de imitação em que só pode haver um vencedor? Hoje. Para mim, vazio de sentido. Para mim, todo o tempo é hoje, todo o lugar é aqui e, no entanto, não me consigo encontrar. Porquê? Que pergunta absurda… O porquê sou eu. Mas porquê? Não interessa. Eu sou todos os porquês, e todos eles flúem através de mim ao meu comando. Quantas palavras existem? Quantos porquês existem? EU. Apenas Eu. Eu… Simplesmente eu… Apenas…
Cala-te. Já chega de tanta prepotência.
Quem és tu?
Quem sou eu…? Não gozes comigo. Sabes tão bem quanto eu o que somos ambos. Ou será que não sabes?
Eu acho que já não sei o que é saber. Eu estou a esquecer-me das coisas. Estou a perder-me. Estou a tornar-me num vazio pleno e irrecuperável. Por muito que me custe, acho que preciso de ajuda.
Queres que eu te ajude?
Consegues fazê-lo?
Sim, se me explicares exactamente no que é que precisas de ajuda.
Não consigo. Não posso. Não sou capaz de o fazer. Neste momento, apenas tenho a certeza infundada de que tudo o que existe vem de mim, e tudo o que eu sou se manifesta irremediavelmente na própria existência. Se eu sussurrar suavemente uma melodia, ela nasce. Se eu sonhar com a luz da lua e a escuridão do céu profundo, ambos surgem do nada latente como se sempre tivessem existido. Mas quando tento observar-me, ou questionar-me, nada faz sentido. Não consigo explicar-te melhor do que isto.
Tu não és a existência. Olha bem para ti e livra-te desse fardo desnecessário. Aquilo que possas ou não criar deixa de ser teu no momento em que essa intenção se torna manifesta. Não te sintas preso a algo que, no fundo, te é estranho e te derruba enquanto indivíduo.
Mas eu não sou um indivíduo, seja lá o que isso for. Eu sei exactamente aquilo que sou, aquilo que não sou, e aquilo que existe e não existe. O meu problema não é saber ou não saber. Eu sei claramente tudo. E sei isso também. Apesar de não saber o que é saber… Mas o que me atormenta é a falta de sentido daquilo que sei. Falta-lhe uma significância concreta. Entendes?
Não sei bem… Mas uma coisa também sei: o que quer que sejas ou não sejas, o que quer que cries ou não cries, tudo o que for, é, e é-o pleno de sentido, de tal forma que não poderia ser de outra maneira. Quanto a conhecer efectivamente esse sentido, creio que só tu poderás alcançar essa clareza de espírito.
E em que medida é que isso me pode ajudar? Tenho agora ainda maior certeza de que devia conhecer todos os sentidos, mas a única coisa que sei relativamente ao sentido é que Eu sou todos os sentidos. Como posso eu desatar este nó que começa a surgir em torno da minha existência?
Se tu és tudo, se podes tudo, se até podes não poder tudo, e mesmo assim não te conheces, então só podes ser uma coisa: tudo excepto tu próprio.
O que queres dizer com isso é que, apesar de eu ser tudo e de tudo ser de mim, Eu próprio não existo. Está certo?
Não sei. É só uma ideia.
O que é uma ideia?
Diz-me tu: o que é uma ideia?
Eu. Eu sou uma ideia.
Talvez.
E tu, o que és?
Nada.