domingo, setembro 30, 2007

Dias e noites (Parte I).

Havia um gato que, assiduamente, deambulava pelo passeio em frente à minha casa. Era de cor escura, mas às horas que costumava vê-lo serpentear por entre os canteiros que pontuavam a rua, na negrura da noite mais cerrada, não podia assegurar se era apenas preto, ou de alguma tonalidade ainda mais sombria. O seu miado era distinto, num timbre pouco natural que parecia simular um chamamento, como que um apelo à própria noite para que o ocultasse sob o seu imperioso manto.
Havia também uns olhos que, apesar de viajarem sempre agarrados à face opaco do gato, pareciam fazê-lo apenas por obrigação de força maior, aparentando ganhar vida própria a cada passo cauteloso que os levava de um lado ao outro da estrada. Eram o perfeito contraste com a negrura da noite e do gato: brilhavam com uma luminosidade que almejava competir com as mais vistosas estrelas, num tom turquesa bem definido e quase sedutor. Sempre bem abertos, iluminavam zelosamente o caminho do felino que, por entre os obstáculos da rua, vagueava de forma híbrida entre o errante e o deliberado.
Para além do gato e dos cintilantes olhos, havia apenas uma fresta na janela do primeiro andar, através da qual contemplava a cena, intrigado com a forma quase humana como aqueles olhos faziam o gato parecer comportar-se. Com as luzes do quarto todas apagas para melhor apreender a escuridão da noite e a luz daqueles olhos, e neles me imiscuir, deixava-me ficar absorto em pensamentos improváveis, em fracamente plausíveis ideias que roçavam mesmo as fronteiras da fantasia. Por vezes, acabava por adormecer à janela e, quando isso acontecia, continuava a observar o mesmo cenário em sucessivos sonhos sempre iguais, para finalmente despertar quando os primeiros raios de sol encontravam caminho por entre a fresta e pousavam a sua morna mão sobre a minha face enregelada, constatando imediatamente que a noite se fora e, com ela, também o gato e os seus olhos. Nessa altura, resignava-me à realidade quotidiana, sempre ansiando pelo ocaso que traria consigo, mais uma vez, o misterioso animal de olhos humanos,

* * * * *

Naquela noite, em que a lua se escondera na sombra projectada pela terra na sua superfície acidentada, e em que as estrelas brilhavam com um fulgor particularmente forte, decidi que seria diferente. Estava sentado na mesma poltrona, com a janela sempre na mesma posição semiaberta, observando fixamente os olhos azuis que, subitamente, para minha surpresa, contrariamente a todas as noites anteriores, cruzaram o seu brilho com o meu olhar extasiado, e senti, ou melhor, confirmei que neles se encerrava um subtil chamamento e que, por alguma razão, parecia desta vez a mim dirigido. A princípio, sem saber bem como reagir àquela mudança inesperada num cenário tantas vezes repetido da mesma forma, quedei-me a apreciar aquele fortuito encontro de olhares, que me preencheu inexplicavelmente com um perturbante burburinho interior, fazendo com que quase sentisse o meu espírito a cambalear dentro de mim. Com esse tumulto a crescer e a ganhar força, foi como se deixasse de ter controlo sobre os meus movimentos, erguendo-me prontamente. Enfiei o blusão ruço que pendia do cabide à entrada do quarto e peguei nas chaves de casa, dirigindo-me firme para a porta. Ainda estaquei por momentos, como se aqueles segundos sem o olhar preso ao refulgir daqueles olhos tivesse sido suficientes para quebrar aquela espécie de encantamento, mas a simples alusão ao azul intenso desse olhar nos meus pensamentos pareceu reacender o feitiço que de mim se apossara, levando-me a sair rapidamente, descendo as escadas do prédio completamente às escuras, numa ânsia desmesurada por me encontrar novamente com a fonte de luz que me encantara.

* * * * *

É preciso, neste ponto, esclarecer que existem momentos na nossa vida em que experimentamos algo inexplicável, algo que desafia toda a nossa compreensão, algo que põe em causa o entendimento normal das coisas. Todos nós passamos por isso e, passados esses momentos, quando em tentativas vãs de os compreender os trazemos à memória uma e outra vez, apercebemo-nos de que todo o misticismo e toda a fantasia não passam de um produto da interface não suposta entre a nossa realidade e o desconhecido, e que surge na defesa das fundações e das leis mais fundamentais que formulamos e que pensamos, de forma arrogante, abarcarem toda a realidade. Há coisas que, pura e simplesmente, nos são naturalmente inacessíveis à compreensão, mas que podemos vivenciar e desfrutar daquilo que elas nos podem proporcionar. Penso que isto é fundamental para que o relato que se segue não vos deixe a pensar que este é apenas mais um conto fantástico para entreter algumas mentes mais cansadas da fastidiosa experiência diária, tão parca de momentos impossíveis.

* * * * *

Ao chegar à porta do prédio, com o coração a ameaçar saltar-me do peito, tal não era a impetuosidade com que bombeava o sangue através de todo o emaranhado de artérias e veias e capilares que percorriam o meu corpo, fiquei mais uma vez parado por alguns momentos, numa tentativa inconsciente de prolongar aquela sensação de excitante expectativa. Após um exasperado suspiro, abri a porta e saí.
De imediato, a luz de um candeeiro de rua que havia anos se apagara aparentemente de forma definitiva, acendeu-se repentinamente, e a violência daquele choque ofuscou-me completamente a vista durante alguns instantes que me pareceram horas. Enquanto piscava desenfreadamente os olhos, de forma a tentar compensar a extrema exposição àquela luz após tanto tempo imerso na mais profunda escuridão, apercebi-me de que algo não estava certo. Ainda cego pela descarga luminosa, avancei lentamente, tentando apalpar com as mãos as impalpáveis ondas sonoras que constituíam os tão característicos miados do felino que ali me atraíra.
De tantas conjunções de pequenas circunstâncias improváveis, aquela era realmente caricata: um gato que lançava feitiços, um candeeiro que despertava de uma letargia que aparentara ser derradeira, e uns olhos cegos precisamente no momento em que mais precisavam de ver. Para além disso, tudo acontecia na noite em que ela partira.

* * * * *

Impressionantemente longe daquele ambiente nocturno, durante o dia-a-dia insosso e repetitivo, havia uma mulher. Pouco mais era do que uma garota, dezassete anos feitos nesse Verão que ameaçava terminar com o reinício iminente das aulas, mas aos meus olhos era o mais impressionante exemplar do género feminino: olhos amendoados de um castanho inebriante, uma cabeleira de caracóis suaves e tonalidade escura cujos reflexos à luz intensa do meio-dia condiziam perfeitamente com a sua tez morena. O porte simultaneamente esguio e desembaraçado conferia-lhe uma sensualidade irrepetível, e que reverberava com os meus sentidos numa portentosa sinfonia de sensações miscelâneas, envolvendo-me num espectro que abrangia desde as mais puras e serenas emoções às mais carnais intenções que podem brotar da frágil estrutura emocional de um jovem como eu. O nome, que prefiro não mencionar por razões que também não enunciarei, acompanhava-me para toda a parte, surgindo amiúde ao longo as minhas noites contemplativas, como se de uma melodia se tratasse, uma daquelas que fica no ouvido ao primeiro contacto e que, incansavelmente, repetimos quase até à exaustão. E os lábios… Já mencionei que a sua constituição carnuda e irresistível me atormentava de cada vez que tinha o ambíguo prazer de observá-los? O seu sabor, ainda desconhecido para mim, era o ponto de partida para inúmeras conjecturas e especulações que floresciam quase automaticamente sempre que a sua presença assaltava o meu espírito.
Havia ela a colorir os meus dias, havia o gato e o seu olhar a acinzentar as minhas noites, e havia eu, no meio daquela bizarra dicotomia, sem saber como agir perante ambas as realidades.

* * * * *

Naquele dia, que precedeu aquela auspiciosa noite, soube que ela partira. Não sei ao certo qual o seu destino, nem encontrei ninguém que soubesse esclarecer-me. Simplesmente, a quatro dias da reabertura do ano lectivo, ela partira para parte incerta, deixando-me, como sempre, mas de forma completamente nova, no centro de um turbilhão de sentimentos que eclodiam em pequenas erupções de desconsolo e desânimo, culminando certeiramente numa tempestade de saudosismo doloroso e cinzento. Como enfrentar a monótona sucessão de frames que era o meu dia-a-dia sem a sua cálida presença a despertar-me para um mundo de infinitas possibilidades em que podia, afinal, perder-me num rumo indefinido? Sem essa rosa-dos-ventos em que costumava esconder-me voluntariamente, sem esse ciclone de sensações juvenis e adultas ao mesmo tempo, sentia-me assustadoramente vazio, largado mais uma vez na repetição aborrecida e monocórdica que fora a minha vida antes de a conhecer.

* * * * *

Os meus olhos começavam a habituar-se mais uma vez à escuridão, embora não conseguisse ainda distinguir mais do que algumas sombras desfocadas. No entanto, pude enxergar um vulto baixo e esquivo, que associei de imediato ao negro gato. Este afastava-se visivelmente apressado, dirigindo-se para o que me pareceu um caminho de terra batida que ligava o outro lado da estrada a uma discreta clareira no meio do arvoredo selvagem que havia perto da minha casa. Esforçando-me por acompanhar o seu estugado passo, com a luz do candeeiro ainda a comprometer a minha acuidade visual, segui-o pela vereda que se adensava de mato à medida que prosseguia. Ainda me cortei num ramo que não consegui evitar e, com a rua já escondida pela vegetação alta que filtrava finalmente a luz do candeeiro, tive apenas tempo para vislumbrar o vulto felino a enfiar-se pelo matagal adentro, estacando perante a impossibilidade de continuar a perseguição.
Alumiado agora apenas pela ténue luz das estrelas que pontuavam a bruma, com o sangue quente a escorrer pela minha cara rubra, senti-me ultrajado pela atitude incompreensível do gato, que se esgueirara para fora de alcance depois de me atrair para o meio do bosque às duas e meia da madrugada. Ouvi o solene repicar do sino da igreja a indicar a meia hora, sentando-me numa raiz saliente para retomar o fôlego e pensar no que faria a partir dali, mas um rumor de presença mais à frente no caminho pôs-me os sentidos em alerta e encheu-me de curiosidade. Sem me deter mais, ergui-me de novo e dirigi-me ao local de onde parecia ouvir agora um ligeiro caminhar, como se alguém deambulasse por entre a folhagem tombada.

* * * * *

Devo dizer-vos que aquela clareira encerra, no baú de todos os segredos que desde tempos remotos colecciona, um que me envolveu directamente, a mim e a ela. Isto passou-se pouco depois da sua entrada repentina na minha vida tranquila, embora a data exacta me escape já da memória. Fico até admirado por tal ter acontecido, já que é a recordação mais vívida e lúcida e todas as que possuo, sendo até capaz de fechar os olhos e revivê-la ao pormenor vezes sem conta. Era, aliás, esse um dos meus passatempos preferidos, especialmente nas alturas mais aborrecidas da minha vida banal. De qualquer modo, sinto-me na obrigação de vos elucidar.
Era uma tarde amena de Primavera, e a clareira estava ricamente enfeitada por diversas árvores e plantas floridas, compondo um colorido quadro de incomparável beleza e frescura. Acrescentando todos os trinados e assobios que um número incomensurável de aves libertava das suas irrepreensíveis gargantas, e o resfolgar de uma suave brisa vespertina por entre as copas engalanadas do arvoredo, ficava-se na presença de um edílico santuário natural, imperturbável e fabuloso. Apenas alguns raios de sol mais teimosos espreitavam ainda pelo topo dos verdejantes pináculos, mas transportavam claridade mais do que suficiente para a minha lírica tarefa.
Com um caderno aberto no colo e uma esferográfica azul entre os dedos, escrevinhava concentrado um poema que, ironicamente, se destinava, pelo menos em intenção, àquela que surgiria, sem aviso, de uma vereda escondida por uma cerrada teia de ramos e folhas, e da qual nunca tivera conhecimento antes. Com a inesperada aparição, levantei-me sobressaltado, deixando o caderno tombar no solo humoso e fértil, apercebendo-me imediatamente da identidade da pessoa que interrompera o meu momento de inspiração. Era ela, mais bela e radiosa do que nunca, com o cabelo caindo livremente sobre os ombros descobertos, vestida toda de claro, criando um agradável contraste com a sua pele bronzeada. A blusa curta era branca, matizada de vários tons de azul, permitindo que se visse o baixo abdómen deliciosamente delineado por imperceptíveis curvas impecáveis, e a saia de ganga, igualmente curta, tinha uma flor de tecido embutida de um dos lados, deixando a descoberto as suas elegantes pernas morenas que incitavam os meus imaginativos olhos a percorrê-las de ponta a ponta.
Embasbacado com a situação, nem me apercebi de que ela não reparara na minha presença e se dirigia ao tronco de uma das maiores e mais antigas árvores da clareira, parando mesmo de frente para este. De seguida, virou-lhe as costas e encostou-se, deixando escapar um disfarçado suspiro, resvalando depois até acabar por se sentar, ficando a fitar o horizonte com um olhar vago e triste.
Tentado a indagá-la sobre o que se passava, encaminhei-me lentamente na sua direcção, e quando estava a uns meros dois metros de distância, denunciei inadvertidamente a minha presença ao estalar um graveto seco sob um passo mais descuidado. Nesse momento, ela virou os olhos, que se cruzaram com os meus durante alguns instantes que pareceu durar a vida inteira. Era um olhar definitivamente meigo, mas condimentado com um quê de tristeza e angústia, algo que não compreendi naquela altura.
Após alguma hesitação, decidi-me a falar, e perguntei-lhe:
- Está tudo bem contigo?
A resposta que obtive foi um indefinido encolher de ombros, seguido de um desvio do olhar de novo para o horizonte. Experimentei aproximar-me, até que acabei por me sentar junto dela, e qual não foi o meu espanto quando senti a sua cabeça apoiada no meu ombro. Surpreso pela sua atitude, deixei-me ficar, envolvendo-a num abraço firme e carinhoso, e dessa forma ficámos até o sol atingir o extremo do firmamento, começando a despedir-se do dia que chegava ao fim e dando as boas-vindas à noite que se anunciava.
Então, como se o lusco-fusco a tivesse acordado de um sono tranquilo, espreguiçou-se no meu colo e ergueu-se, estendendo-me a delicada mão para me ajudar a levantar. Acedi à sua oferta e segurei a sua mão com delicadeza, parando mesmo à sua frente à distância de um passo. A troca de olhares que se seguiu fica para lá de qualquer tentativa de descrição, já que não há linguagem escrita ou falada que possa exprimir na plenitude a essência daquele intenso momento. Os seus olhos brilhavam mesmo na ausência de luz que neles se reflectisse, e pude neles distinguir o esboço de uma lágrima que se formava às escondidas no seu humor cristalino. Estávamos, naquele momento, à distância de um beijo…
Mas nunca chegou a culminar nessa tão desejada manifestação de amor e de afecto, já que ela recuou ao primeiro indício de avanço da minha parte. Depois, olhou para baixo e, numa voz mais encantadora que os trinados agora adormecidos dos pássaros, disse:
- Obrigado. Agora gostava de ficar sozinha.
Não tive outra opção senão aceder ao seu pedido, largando a sua mão com relutância e dirigindo-me, pela vereda, até casa. O meu coração palpitava ainda de amor e desapontamento, num misto descontrolado de emoções que me manteve acordado toda a noite.

* * * * *

Ao ver-me naquele lugar outra vez, não pude deixar de recordar tudo o que acabo de relatar, como um filme projectado num ecrã alojado algures na minha mais secreta e profunda lembrança, sob a forma da mais límpida película. Agora, de volta à escuridão impenetrável da noite, algo me dizia que aquela tarde tinha algo a ver com a minha presença ali, e com o misterioso gato que ali me conduzira. Restava apenas desvendar a proveniência dos passos que me chamavam irresistivelmente à clareira. Com esse intento, avancei na sua direcção, e o que ali encontrei deixou-me boquiaberto.
Num dos troncos mais grossos de todos os que se avistavam, que por sinal pertencia talvez à maior e mais antiga árvore que ali se enraizara, pregada encontrava-se uma folha cuja brancura, ainda que ponteada por rabiscos azuis àquela distância indecifráveis, reflectia intensamente a moderada luz irradiada por um céu cada vez mais estrelado. De resto, num rápido relance a toda a largura da clareira, nada mais fui capaz de distinguir, muito menos algum sinal de gente. Estranhamente, até o rumor de passos que escutara escassos momentos atrás cessara por completo, sendo que agora se ouvia apenas uma incansável rapsódia de grilos.
Sem mais por onde pegar, segui para junto do tronco de onde pendia a folha, que identifiquei como parte do caderno em tempos ali esquecido assim que li a primeira linha. Tudo o resto estava rasurado, ou borrado, ou até mesmo sobreposto de tinta correctora, sendo aquela a única frase legível em toda a página. E dizia tão-somente isto: «Estarei sempre à tua espera»…

sábado, setembro 29, 2007

Deuses.

Deuses curvos, deuses turvos,
Deuses sem braços, deuses crassos,
Deuses livres de embaraços,
Deuses meigos, deuses vagos,
Deuses que bebo em dois tragos,
Deuses francos, deuses mágicos,
Deuses falsos, deuses trágicos,
Deuses que a vida escondeu,
Deuses de quem é ateu,
Deuses mortais, infernais,
Deuses fracos, deuses parcos,
Deuses em terra e em barcos,
Deuses leves, deuses magros,
Deuses vãos e esquecidos,
Deuses perdidos nas mãos,
Deuses de ontem, deuses fixos,
Deuses feitos de prefixos
E sufixos...
Deuses omnipotentes,
Deuses que são inconscientes,
Deuses faustos, deuses santos,
Deuses pelos quatro cantos,
Deuses que matam e morrem,
Deuses deuses, deuses homens,
Deuses triplos, deuses múltiplos,
Deuses pré-programados,
Deuses simples, deuses pintados,
Deuses moldados em barro,
Deuses belos, deuses frios,
Deuses de carro ou navio,
Deuses na cruz, deuses da luz,
Deuses convexos, selectos,
Deuses espertos, deuses abertos,
Deuses de mim, deuses de ti,
Deuses daqui e dali,
Deuses mortos, deuses vivos,
Deuses coados em crivos,
Deuses pretos, deuses brancos,
Deuses de frente e p'los flancos,
Deuses sim, deuses não,
Deuses que nem deuses são.

28/09/2007
21:10

sexta-feira, setembro 28, 2007

Na areia escrevo...

Na areia escrevo…
Em brados contidos, conto as vagas que passam,
E as que ficam…
As que não passam porque não podem passar,
E até as que no mar alto morrem sem beijar a areia
Em que escrevo.

Esta areia que foi rocha,
E este sal que foi rochedo,
E tudo o mais que foi um ponto de luz vadia
Vogando pela imensidão…

Todos eles são vivos.
São vidas que vivem mas não morrem…
São as areias com que vivo esta vida de tantas vidas…

Esses finos grãos com que escrevo as mais belas histórias
E os mais trágicos contos,
Condimentados de sal, que o traz o mar…
Esse mesmo mar que beija, incansável,
Este meu papel granulado em redijo a vida de tantas vidas
E que com todas vivo…

Ah, se eu pudesse…
Mas não posso viver o mar…
Pois se o pudesse, deixaria de o haver,
E não mais poderia escrever em contos vivos,
Salgados da maresia,
A poesia que escrevo nesta areia.
E que vivo…

21/10/2004

terça-feira, setembro 25, 2007

Jogging/Mais tarde/À noite

Jogging.

A vida a transpirar através dos meus poros…

Acácias e cedros que pontuam a demora…

Fingindo não me importar,
Amputo o polegar esquerdo,
(Que o direito às vezes dá jeito,)
E com o pedaço de carne ainda quente outra mão,
Com a unha roída até à exaustão,
Quase que sinto um esgar de adrenalina,
Uma ameaça de tenra excitação
Que percorre o meu sistema nervoso central imobilizando os pensamentos.

E depois,
Tão lesta quanto à chegada,
Esvai-se a excitação,
E de esfíncter involuntariamente contraído,
Retorno.

(Mais tarde…)

Uma gota de suor,
À descoberta dos meandros da minha face,
Percorre a distância que separa a têmpora do lábio,
Para aí repousar até que a língua,
Contrafeita,
Se resigne a sorvê-la entre dentes.
(Ou então é a parte de trás do pulso que a amacia contra a pele ardente.)

(À noite…)

ZZZZZ…
(Devia tratar da minha onicofagia obsessiva…)

23/09/2007
23:11

terça-feira, setembro 18, 2007

Carta de amor.

«Algures no Mar do Norte, 6 de Fevereiro de 2004

Querida Elisa.
Já mal posso suportar os gritos estridentes das gaivotas e a ondulação incessante do mar. Na minha mente, existe apenas um propósito: regressar o mais depressa possível para o nosso leito e beijar-te como se não houvesse amanhã. O meu espírito martiriza-se ao recordar-se de que só no fim do mês nos poderemos reencontrar. Sinto-me traído por Deus, por permitir que dois corações tão enamorados se separem desta maneira.
A pescaria tem vindo a diminuir. Ontem já só apanhámos 400kg de bacalhau e 500kg de atum. O mar mostra-se-nos ingrato, e um dos motores avariou irreversivelmente. Cada içar das redes, cada congelar das postas já cortadas, enfim, cada momento que passo neste maldito barco me faz delirar. Só penso em ti, de manhã até à noite, e até em sonhos a tua imagem surge como um escape à rotina diária.
O Chico Rosa vai-se embora hoje, e é por ele que envio esta carta. Ele, sim, é que tem sorte… Não passou senão três meses neste barco, enquanto que eu há já quase um ano que não vejo as tuas doces feições. Sonho a cada segundo com a tarde do dia 29, quando o barco ancorar no porto, e eu correr desalmadamente para os teus braços, e te amar como nunca. Já só vejo o teu sorriso brilhante, os teus lábios rubros, os teus olhos luzidios e o teu calor reconfortante. Para mim, és tudo o que importa…
O contramestre já deu a ordem… Tenho que ir içar as redes mais uma vez. Vingar-me-ei de todo o tempo perdido durante o resto das nossas vidas, amando-te sem limites ou barreiras.
Amo-te louca e profundamente!

Beijos e abraços deste teu,
Jorge Morais »