sábado, novembro 07, 2009

Trilogia.

Dois mundos que se entrelaçam dançantes,
Cientes, pois, dos furacões que encetam
Em debandada p’lo desfiladeiro;
Ruína entre o após e o pouco antes,
Dois pólos que se tentam e inquietam
Nos respectivos vícios de solteiro.

Tatuada essa voz no meu suor,
E os dedos que perdi nos teus cabelos,
E a sombra que nos rasga em mil quimeras;
Fantasmas que me levam a melhor,
Que afugento com terror de perdê-los,
Desvanecidos ecos de outras eras.

Caprichosa senhora, e sem fadiga,
Não queiras, com meu luto amplificado,
Matar anjos sem dor num grito mudo;
O leito que te rogo, mão amiga,
Um beijo entre lençóis endividado,
Concede-me esta noite o tu que és tudo.

31/10/2009
8:30

sexta-feira, novembro 06, 2009

Sonambulismo.

Abro os olhos.
Fecho os olhos.
O detestável despertador provoca terramotos no crânio.
Abro os olhos.
Fecho os olhos.
Cinco minutos passam nesse instante, e o sismógrafo dispara de novo.
Abro os olhos.
Fecho os olhos.
Ao terceiro assalto, os meus movimentos manifestam o automatismo de um electrodoméstico:
Estendo a mão e, num golpe seco, arranco a ficha da tomada.
Abro os olhos.
Fecho os olhos.
Um calafrio percorre-me a espinha,
E a janela aberta clama por intervenção urgente.
Abro os olhos.
Ergo-me sem pressa,
Caminho direito mas sem convicção,
E cerro as portadas,
Corro a persiana
E imerjo na mais corrupta escuridão.
Fecho os olhos.
O outro despertador,
Aquele que costumo programar com meia hora de diferença do primeiro
E que repousa estrategicamente fora de alcance
Agride os meus ouvidos com o seu toque estridente.
Abro os olhos.
Fecho os olhos.
A investida continua, impávida,
Até que se torna insuportável.
Abro os olhos.
Torno a levantar-me do mesmo modo insosso
E desconstruo o aparelho contra a parede mais próxima,
Sem violência sem ressentimento,
Uma simples manobra de estacionamento.
Fecho os olhos.
Um trovão atroa a atmosfera com ferocidade inigualável,
De tal modo que consigo sentir a sua força em cada célula do meu corpo.
Abro os olhos.
Fecho os olhos.

Abro os olhos, que se recusam a permanecer fechados,
Embora fechados os sinta,
Continuamente,
Ininterruptamente fechados.
E assim, de olhos abertos fechados,
Prossigo o sono agitado e assombrado a que chamo
Noite,
Enquanto na minha mente vagueiam histórias antigas acerca de uma fantástica,
Belíssima,
E nunca equiparável,
Aurora.

Quando me sentir cansado,
Voltarei a fechar os olhos.
Mas que diferença faz,
Se os olhos que julgo usar para enxergar
Em tempo algum chegam realmente a fazê-lo?
Olhos abertos, olhos fechados...
Certamente estarei a sonhar...
Acordado?

02/11/2009
9:24

quinta-feira, novembro 05, 2009

Sequela.

Invadiste o adeus inacabado
Dos ciúmes,
E entretiveste a seiva derramada
Pelo chão,
Jorrada deste nosso coração
Fermentada
Em fornalhas e alambiques e lumes
Lado a lado.

Ensinaste aos meus olhos a doutrina
Da vagueza,
E riscaste o meu nome da listagem
Dos achados,
Conspiraste ao lançar amarga os dados
E a voltagem
Consome ainda hoje esta franqueza
Em surdina.

Roçaste o teu punhal pelas gargantas
Tão doridas,
Roufenhas e entaladas como a mão
Na palmatória
Nutriste em mim um crente na memória
De um então
P’ra profanares o arsenal de feridas
Como tantas.

Decalcaste palavras indulgentes
No meu peito
E programaste os sonhos para dois
Sem calendário
E deixaste assentar pó nesse armário
P’ra depois
Desferires o teu golpe perfeito
Entre dentes.

Perdeste-me num canto acabrunhado
Entristecido
E ali fiquei prostrado em vãs esperas
Por perdão
Não foi a tua mão, foi o condão
Das primaveras
Que acalentou o desgosto embutido
Do passado.

Fizeste a tua parte e eu faço a minha,
Não me agrada
Que tanto solilóquio alimente
A minha dor
Amor, que é isso amor, não sei que amor
Tinhas em mente
É tarde, já tirei a minha espada
Da bainha.

31/10/2009
13:22

segunda-feira, novembro 02, 2009

Engenharia da percepção.

A estranha leveza de que padeço, de forma crónica e despropositada, convida ao recolhimento da alma no próprio âmago de uma individualidade una, como que uma gigante vermelha que colapsa sobre si mesma para enredar singularidades mirabolantes, que bem podem constituír berços profanos de novas cores e novas vozes, ou apenas aberrações de uma misteriosa fazenda inenarrável. Do mesmo modo podem os meus constantes acessos introspectivosverter-me numa sopa primordial imponderável ou, não tão épico, alienar-me à homogeneidade aborrecida de um Universo que se reflecte ad infinitum. Num ou noutro caso, não me compete a taxonomia do fenómeno, tarefa árdua de grandes mentes polidas, mas sim trocar-lhe o óleo ou verificar-lhe a pressão dos pneus. Como tal, poderia designar-me como um engenheiro da percepção, embora tal promiscuidade de conceitos possa pôr em causa a legitimidade de tal nomeação num tecido social de preceitos pragmatizados. Possa, em tal eventualidade, ser condescendida a minha irreverente incapacidade de não pisar os traços contínuos quando circulo atrás de um contentor ambulante a uma velocidade que dissertaria sobre aerodinâmica com uma lesma.
Entretanto, entretido nesta bizarra exposição de não sei que entidades cognitivas, discorri de tantos assuntos que me apartei da origem em movimento helicoidal. Retorno agora a pronunciar a leveza e o recolhimento, a tomar-lhes o gosto nas palavras e a encontrar os seus aromas na miríade daqueles que me rodeiam. Sou, neste momento, um receptor de mim mesmo, numa corrente circular que se realimenta positivamente até ao limite em que se esgota. Com alguma ousadia me arrisco a considerar a sexualidade intrínseca ao processo, o modo como os sentidos se afectam, o estado inebriado e efusivo, os movimentos instintivos mas eficazes, e o culminar imperioso que é porta efémera do Paraíso.
Após este momento masturbatório, permitam-me apenas que deixe assente: nenhuma outra aventura pode comparar-se à descoberta e colonização da identidade, desde os primórdios da existência até aos confins recônditos da natureza humana. Afinal, todos padecemos de uma curiosa enfermidade para a qual só se conhece uma cura: para que a vida se extinga, basta conquistar a morte.

06/10/2009
0:59

Contratempo.

Veloz, corre o meu sopro atrás de um rasto,
A ténue insinuação de um meu destino,
Meu peito exala em vão um vento casto
Cuja inocência foge em desatino.

Atrás da parca luz dos dias fora
Sigo em marcha solene esses resquícios
Que traz de um outro tempo ao tempo agora
Um bouquet de armadilhas dos meus vícios.

Travões não os conhecem os meus passos
Que em frenética dança me embaraçam,
São sombras ou miragens dos teus braços
Mitologias que entre si se abraçam.

Assim, o meu suspiro não tem porto,
Navega entre os rochedos e os escolhos
Que a minha alma povoam sem ser morto
E enxugam o silêncio dos meus olhos.

31/10/2009
13:03