segunda-feira, janeiro 09, 2012

Prólogo de uma aventura às avessas...

“Nada nos resta senão partir…”
Estas palavras graves, pronunciadas com a calma inquieta de quem, paradoxalmente, se dispõe a morrer para se salvar de pior destino, foram para quem as ouviu uma inevitável mas doce elegia. Mais se diria se a tal a ocasião convidasse; lembrar-se-iam de alguma trivialidade para preencher o amplo espaço que o silêncio manteve vazio; não teriam ficado a dever nada ao dever de falar agora ou para sempre se calar. A quem tais palavras escutou, faltou porém a coragem para manifestar, ainda que num suspiro apressado, o enorme terror que lhe congelava a voz e da alma se apossava; quem as disse julgou valer-lhe a sapiência de não perturbar destes silêncios com sílabas impensadas, murmúrios impertinentes que se atropelam boca fora por não mais se suportar a imposta surdez. Nesse silêncio, fez-se o que havia a fazer: arrumar o que fosse preciso, ou melhor, o que fosse verdadeiramente essencial, sobretudo as ideias dentro das respectivas cabeças; verificar, depois, as condições mecânicas do veículo que os viria a resgatar ou a sepultar, escondido na vegetação cerrada que em tempos fora belíssimo jardim, agora despromovido a uma mata informe e sem brilho; iniciar, finalmente, a sequência de arranque, contagem decrescente para uma inadiável incerteza, os dois entregues ao destino soberano de todos os destinos; e, por último, fechar os olhos com muita força ao estalar o infernal ronco já esquecido dos motores e o bater excitado dos corações. É agora.



Não que a não enxotem os espíritos acossados uma e outra vez, mas é a dúvida que insiste em lhes não dar descanso, uma e outra vez persistindo no seu impopular ofício. Tremenda é a transição do chão firme do lar de há tanto tempo para o exótico espectáculo, solene de imenso, que é vogar sem rota certa por entre a cósmica, titânica população do espaço, tão avassaladora que não podem os dois foragidos deixar de embalar-se nessa perene indagação: “Sou vivo ou morto?”. Ainda por quebrar, mas já destinado ao seu eventual colapso, até o silêncio que os acompanhou na fuga se tornava, naquele contexto, como que um fantasma que lhes assombrava ainda mais as imponderáveis questões com que se debatiam; assombrava-os por completo por ser também ele indefinição conceptualizada, indefinidos se sentindo, nem vivos nem mortos.
Aos poucos, o homem foi desentorpecendo o pensamento. Se falasse, talvez pudesse decidir de uma vez por todas que ainda vivia; poderia enfim permitir-se a um breve descanso, salvação teria e não sepulcro; ou perceber no seu engasgo que ainda não sabia o que dizer. Foi-se o silêncio sitiando por renovada inquietude, preocupações que se tornavam mais urgentes à medida que avançavam pelo véu de penumbra todo pontilhado por muitos e pequenos luzeiros. Não morrer na descolagem era estatisticamente plausível, que apesar de velho e de indeterminada origem, o equipamento fora extensivamente testado e afinado pela sua equipa de engenharia, orgulho pessoal não conquistado sem esforço ou mérito, que saudade lhe deixaria. Mas estavam então perdidos no meio de uma vastidão sideral, epicentro da sua iminente ruína, acabados de escapar de um perigo apenas para se precipitarem noutro vezes sem conta maior. A questão impunha-se: o que fazer, para onde ir daqui de onde se está, daqui deste nada, desta indefinição, deste viver cadavérico para que nos catapultamos na fuga apressada de um cadavérico desfecho.
Soube, por fim, dizê-lo, e porventura de maneira a tornar amena a tortuosa mensagem:
“Estamos vivos. Pertence-nos, por enquanto, essa riqueza. Teçamos com esse fio vivente o rumo dos nossos destinos. Cabe-nos, por agora, racionar o pouco que trouxemos, e se a mais não se dispuserem as nossas humanas capacidades, incríveis nos seus frouxos limites, esperar com dignidade pelo milagre possível.”
Nada amena, a resposta perdeu-se no vão desespero que presidia ao ser sombrio de quem assim escutava a esperança a abandonar-lhe o corpo.



“Promete-me…”
“Prometo.”
Oferecia incrível resistência aquele imperioso silêncio, resoluto na sua tarefa de entreter medos e palpitações, oculto nas sombras grotescas que se erguiam por toda a cabine, sedento do frio dos homens. Não tornou a ser quebrado por longo tempo, anos poderiam ter sido aquelas horas de alma incandescente e corpo agredido, entregues à mercê do implacável desconhecido e do pleno desconforto; quando, enfim, o foi, não o venceram palavras mas o choro adiado de uma mulher vencida que assim, naturalmente, se resignava à profunda dor que sentia. Foi nesse momento, em que a primeira lágrima arrancou o soluço entalado, que ambos se sentiram novamente humanos, com tudo o que ser humano comporta, um breve triunfo apenas sobre o silêncio. Estavam decididamente vivos, capazes de contemplar claramente a vida a perder-se de vista na vagueza de um futuro próximo. O gesto compassivo de um abraço rematou a redescoberta da sua humanidade.
“Seja o nosso destino chorarmos juntos, assim, abraçados para sempre num derradeiro desdém contra a desgraça que nos aflige. Haverá, por certo, algo de divino nesta humana maneira de viver.”
“Não nos aflige só a nós este infortúnio, pois que agora vejo o mal que fiz em te esconder o que te escondo.”
“Surgirá melhor momento para consertar os males todos do mundo do que este que nos acomete de louca lucidez?”
“A tua ternura é dádiva divina neste momento de angústia. Trago em segredo no ventre a maior bênção de todas, e que em tão má hora se resolve a nos agraciar.”
“Mas que…”
“Preciso do teu perdão.”
“Longe de mim negar-te agora o que sempre foi teu.”
“Promete-me…”
“Prometo.”
Naquele abraço, entre as lágrimas e a surpresa, entre a vida e a morte, descobria o homem que traziam consigo naquela empresa condenada ao fracasso o fruto sagrado do seu amor por aquela mulher, pequeno botão de gente concebido na fusão dos seus corpos ardentes. Sem saber escolher entre júbilo e pesar, afastou-se um pouco o homem para digerir o que se lhe revelara. Não tardou que também na sua face desenhassem linhas húmidas as poucas lágrimas a que se permitiu. Com um murro vindo sem se saber de onde, se do seu luto precoce ou de raiva acumulada, pensou aliviar-se um pouco como tantos outros antes de si que, com murros em paredes ou estômagos alheios, se iam sentido capazes de aguentar mais uma provação. Quis o destino, ou a ausência dele, que este acesso de violência fosse condão revelador de outra surpresa. À sua frente, por detrás da chapa metálica que amolgara, entrevia-se um botão luminoso que parecia chamar por si. De botão luminoso converteu-se numa autêntica explosão de luz por toda a cabine, fenómeno induzido apenas com o tiro no escuro de pressionar o que pedia para ser pressionado, sem ter como saber o que esperar como efeito.
“Ai que morremos afogados em luz…”