terça-feira, dezembro 15, 2009

Dilema.

Se presto tão suposta vassalagem
Ao patronato estéril que nos guia
Pesa-me a consciência, ou não seria
O meu discernimento, ampla paisagem

Capaz de abrir caminhos de coragem
E de malabarismo de alegria,
Contando que, em chegando ao fim o dia,
Atentamente o escuto em sã paragem.

Mas se hei-de equilibrar-me sem suporte
Que, estável, me aconchegue e dê estrutura
P’ra sustentar a vida antes antes da morte;

Em vão, conduzo com mão imatura
Um trapézio sem rede e posto à sorte
De dois braços que se abrem em censura.

07/12/2009
13:16

segunda-feira, dezembro 14, 2009

Epístola Apócrifa.

Em verdade vos digo, desolado,
Que embora minta, o meu nome é masmorra;
Sodoma é o meu corpo mutilado,
E o sangue um licor néscio de Gomorra.

Nas orações que espalho em homilias,
Disfarço o meu sadismo imaculado,
E os corações que envolvo em heresias
Remetem-se, em silêncio, ao pecado.

E segrego na fonte, em meu juízo
Quem digno for de conhecer o eterno;
Mas, só, percorro em vão o Paraíso
Enquanto invejo as glórias do Inferno.

06/12/2009
1:28

sexta-feira, dezembro 11, 2009

História da Arte (da pintura rupestre ao surrealismo...)

Reminiscência da constante cosmológica,
Abismo em chamas de um Hades outrora vivo,
Esfera celeste, poetisa escatológica
Que afoga o tempo entristecido sem motivo.

Radiação de tanto lixo nuclear,
Mercúrio líquido, volátil e sangrento,
E a história inteira num só mantra secular
Que embala o mundo no seu tosco movimento.

Rédeas de sombra e marionetas disfarçadas,
Vozes distantes que anunciam dissabores,
Pátrias apátridas de fronteiras rasgadas
Que amparam sobras de amarguras e rancores.

Rochedo agreste no promontório dos crentes,
Armada insípida na patrulha dos medos,
Âncora frágil que entrelaça dissidentes
E outros mais que se aborrecem nos seus credos.

07/12/2009
11:13

quinta-feira, dezembro 10, 2009

Dias e Noites (Parte IV)

Costuma dizer-se que Deus escreve direito por linhas tortas, que é como quem diz que, embora por vezes nos pareça que a vida pratica as mais inesperadas e cruéis sabotagens, a verdade é que não podemos prever aonde esses supostos ultrajes nos conduzem. É de todo sensato que saibamos dar tempo ao tempo, que nos dispunhamos a aprender com cada adversidade que nos desafia e, ao fim de uma tortuosa caminhada, pode ser que a nossa maior bênção nos esteja reservada sob o disfarce de uma trágica contrariedade. Não há virtude comparável à da fé. E não é preciso que se venere uma qualquer divindade de concepção duvidosa, ou que se siga à risca uma doutrina alegadamente iluminada. A fé pode ser vista, em última análise, como o coração que mantém a alma nutrida, que nos movimenta para a frente, que lida com o desgosto e com o júbilo num mecanismo uno e coerente, apenas para que se não perca o rumo à primeira curva apertada. É, sem dúvida, um inabalável voto de confiança, não nas imprevisíveis Parcas e nas suas tramas e boa ou má vontade, mas sim na capacidade exemplar que todos possuímos para desfrutar desta viagem com honesta felicidade perante os mais sinistros cenários. È a nossa bússola pessoal.
Falo ainda do mistério da bênção e do poder regenerador da gratidão. Cada pessoa que nos deixa um pouco de si, cada momento em que crescemos um pouco, cada experiência que nos ensina algo novo, cada porção daquilo que somos e construímos, é manifestação da realidade na sua mais sublime forma. Desde que respiramos pela primeira vez com os nossos próprios pulmões até que exalamos o derradeiro sopro, somos constantemente agraciados por um buffet de bênçãos à quais, à medida que vamos envelhecendo e por via do hábito, vamos prestando sucessivamento menos atenção, até que simplesmente deixamos de as reconhecer. Esta tem sido a jornada do homem em direcção à superficialidade do ser, e as suas metas não se me afiguram proveitosas. No momento em que deixamos de nos sentir gratos pela simples brisa que nos refresca num dia quente, ou pelo choro inocente de uma criança que se inicia nos meandros sinuosos da sua vida, estamos a prescindir de uma fracção significativa daquilo que é essencial na nossa natureza. Não existe melhor maneira de curar uma ferida emocional do passado do que a expressão generosa do nosso reconhecimento pelas bênçãos do presente. Esta foi das maiores lições que recebi durante um dos períodos mais difíceis da minha estadia nesta Terra.

*****

Desde o meu primeiro contacto com o homem da guitarra portuguesa e dos olhos azuis e da amável e talentosa cooperação artística, tinham passado sensivelmente quatro frenéticos meses. A azáfama começara na mesma noite em que lhe propusera que me acompanhasse à guitarra e, daí em diante, a nossa parceria tinha crescido e amadurecido consideravelmente. Encetámos prontamente um projecto de fado no dia seguinte e, com a colaboração de um terceiro membro na guitarra clássica a partir o segundo mês, percorremos vários fados, desde os tradicionais aos mais modernos, organizando um reportório diversificado com vista a possíveis apresentações futuras. Curiosamente, o primeiro convite surgiria bem mais cedo do que esperávamos, durante um dos mais distintos ensaios que já vivenciei.
Como tinha sido costume desde o princípio, estávamos reunidos na casa do exímio filósofo, impecável moradia herdada de um tio que estivera emigrado na Suiça durante vinte e dois anos e que, nunca tendo experimentado a paternidade, desde cedo estimava o sobrinho como se seu filho fosse. Assim, aquando da sua desafortunada morte após anos de sofrida convivência com Alzheimer, o seu sobrinho, que sempre o tratara condignamente e com extrema afeição, descobriu, para sua surpresa, que se tornara possuidor de todos os pertences do tio, que incluíam aquela habitação admirável e todo o seu recheio de gosto sóbrio e prático, mas valioso. Mudara-se pouco depois para lá e, como vivia sozinho, concordámos que era o local indicado para fazermos a nossa música.
Como ia dizendo, estávamos os três embrenhados no nosso ensaio quando a soou a campainha. O nosso anfitrião pediu licença e deixou-nos por algum tempo, que aproveitámos para corrigir alguns pormenores na última adição ao alinhamento que estávamos a decidir, uma letra original sobre o Fado das Mágoas, de Pedro Lafões de Bragança. Quando regressou, acompanhava-o a mais inesperada visita, um homem gasto e sulcado pelo tempo, mas cuja estatura alta e robusta e os penetrantes olhos verdes mantinham a elegância e o carisma de sempre, e e ainda hoje recordo as exactas palavras com que o recebi:
- Tio!? Como é que...? Mas... Quando é que chegaste?

*****

É preciso fazer aqui um breve parêntese para explicar a minha admiração ao ver chegar o tio que os anos haviam envelhecido em terras distantes. A última vez que o vira fora sete anos antes, em circunstâncias deveras infelizes, aquando da sua súbita viuvez.
O minha tia era uma mulher extraordinária, de uma beleza feminina apuradíssima, possuidora de múltiplos talentos, e verdadeiramente inteligente. O infortúnio bateu-lhe à porta com a descoberta tardia de um cancro no pâncreas, e a progressão da doença foi fulminante. Em alguns meses, o meu tio observou de perto o desmuronamento de tudo o que a sua amada esposa fora em tempos. A sua morte foi dolorosa, e deixou no meu tio uma ferida incapaz de sarar, o que o levou a mudar-se para longe. Pouco soube do seu paradeiro desde então. Falei com ele duas vezes durante a sua ausência, num rápido telefonema de Zurique e numa carta com selo de Barcelona. Calculo que a sua mágoa o tenha conduzido por muitas outras paragens, e só Deus sabe os fantasmas que o atormentaram na sua solidão.
Com este interlúdio, poderão, pois, compreender o misto de surpresa e felicidade que me invadiu ao contemplar a sua figura envelhecida, e a minha recepção desajeitada ao tio que julgava perdido.

*****

- Sempre pensei que fosse mais difícil regressar a casa, mas à chegada apercebi-me de que não há como fugir ao passado. É preciso aprender a encontrar a paz no próprio coração, e isso pode ser feito em qualquer parte do mundo. E não há como a nossa casa, a terra que nos viu nascer e crescer e que nos abençoou de tantas maneiras diferentes. Sinto-me bem por ter voltado.
- Não imaginas como me alegram as tuas palavras. Julgava que nunca mais te veria. Já estiveste com a minha mãe?
- Na verdade, foi ela que me convenceu a voltar. Mas essa é uma história para depois. Não vim aqui para te importunar com as minhas deambulações. Tenho uma proposta para vos fazer.
- Claro, mas... Como sabias onde me encontrar?
- Mais uma vez, a tua mãe soube chamar-me à razão, e foi ela que me indicou esta morada. Disse-me que deveria passar por aqui por esta hora, que é quando se reúnem para ensaiar. Estou correcto?
- Sim, claro.
- O que me traz aqui é muito simples. Estás, com certeza, recordado do meu amigo Ernesto, que tocava guitarra portuguesa?
- Então não? As iscas que ele fazia eram tão saborosas como virtuosa era a sua guitarra em noites de Inverno junto à lareira.
- E tu nunca provaste a chanfana. Enfim... Memórias à parte, o Ernesto tinha uns dinheiros guardados para quando um dia se reformasse, o que aconteceu há seis meses atrás. Impulsivo como sempre, decidiu juntar-se com um sócio e investir numa casa de fados. A inauguração é de amanhã a quinze dias.
Por um momento, fiquei imóvel e incapaz de articular uma única sílaba. Estava incrédulo com tanta novidade simultânea, emudecido com tanta alegria, que apenas consegui erguer-me e abraçar calorosamente um tio reencontrado após sete anos de incertezas e preocupações. Naquele abraço, coloquei toda a minha afeição e toda a minha gratidão e, quando o soltei, um simples olhar bastou para que a combinação ficasse assente. Estávamos, assim, a quinze dias da nossa estreia, e ela não poderia, para mim, ter vindo de melhor maneira.

*****

Os dias que precederam a nossa esperada estreia foram pouco diferentes dos demais. Intensificámos os horários de ensaio, e fiz questão que o meu tio permanecesse connosco até ao dia da actuação. Inclusivamente, persuadi-o a acompanhar-me numa desgarrada como fecho do espectáculo, e foi com enorme honra que recebi resposta positiva, tal como se sentiram honrados os meus dois companheiros. De facto, estabeleceu-se desde o primeiro ensaio uma relação tão amigável e sincera entre os dois músicos e o meu tio que, no âmago do meu espírito, senti que uma mão divina no-lo trouxera como gesto de encorajamento e aprovação. Não podia ser de outro modo.
A verdadeira surpresa desses dias surgiu na véspera da estreia que, ansiosamente, aguardávamos. O ensaio correra especialmente bem, e todos nos sentíamos o mais motivados que nos era humanamente possível, pelo que o meu tio se voluntariou para nos pagar a todos umas rodadas de vinho. O entusiasmo não nos permitiu recusar tal oferta, e em vinte minutos já tinha cada um o seu copo cheio à mesa de uma taberna típica, cuja sala, rusticamente decorada e de iluminação parca, estava cheia de gente também ela típica, pessoas simples de um povo quente, trabalhador e pleno de amizade. O ambiente ali vivido rapidamente nos contagiou, e as histórias começam a revezar-se entre mãos cheias de gargalhadas e jarros de vinho que se voltavam a encher quando ficavam vazios. O tempo parecia, ali, congelado, estático, eterno.
- ...E foi assim, sem mais nem menos, que lhe espetei dois beijos na boca, ali mesmo à frente dos pais. Só me lembro de a ver vermelha como um pimento, a mandar-me aquele olhar que aprova e reprova ao mesmo tempo, sabem? E o pai? Vocês calculam a descasca que ele me queria dar? Mas eu não lhe dei hipótese. Entreguei-lhe o bilhete muito rapidamente e corri dali para fora. Nunca mais me esqueço... A rapariga era um espanto. Recordo-me perfeitamente dela: tinha uma cor morena apetitosa, uns olhos castanhos amendoados que reluziam ao sol como âmbar, caracóis pardos que trazia soltos ao vento, e movia-se com uma tal sensualidade que não deixava margem para dúvidas aos meus sentimentos. E aqueles lábios carnudos, como eu adorava beijá-los com paixão e ternura... Enfim, foi um amor adolescente que me ficou gravado a tinta permanente.
- Oh tio, e então como é que ficou a história do bilhete? Ela sempre apareceu?
- Essa é a parte trágica que não pode faltar a qualquer romance clássico de adolescentes. Nessa noite esperei por ela horas a fio junto à ponte, no mesmo banco onde hoje costuma estar o velhote das cautelas. Mas ela nunca apareceu... Na altura fiquei desolado, com toda a intensidade e, ao fim ao cabo, a efemeridade da desolação da juventude.
- Pois eu cá acho que o teu tio devia partir corações a magotes de raparigas no tempo dele. Por certo que quem ficou a perder foi ela.
- Eu não diria tanto. A verdade é que aquela rapariga era deslumbrante, especial de uma maneira muito própria. Nunca contei isto a ninguém, mas há momentos em que ainda gosto de olhar para a fotografia que ela me ofereceu.
- Não acredito! Então você ainda tem a fotografia da rapariga? Tem que no-la mostrar um dia destes.
- Isto é um tanto embaraçoso, mas posso mostrar-vos agora mesmo. Trago-a sempre na carteira, atrás das fotos dos meus filhos.
- Este tio é cheio de surpresas!
Enquanto aguardávamos expectantes, o meu tio retirou a carteira do bolso, abriu-a com cuidado e, como se manuseasse uma relíquia muito frágil, estendeu-me a pequena foto tipo passe. A minha expressão, ao contemplar o impossível, foi quase tanto de medo como de espanto. O rosto impresso naquele pedaço de papel era minuciosamente semelhante ao da rapariga que, em tempos, fizera do meu coração refém naquela longínqua clareira por onde os meus pensamentos vagueavam amiúde. Era igualzinha a ela: as mesmas feições, a mesma pose elegante, o mesmo olhar sedutor, era ela. Mas...
- Que se passa? Deixa-nos ver.
Estava boquiaberto, extasiado numa contemplação assombrosa, completamente rendido à imagem que se revelava mais e mais idêntica à figura das minhas recordações a cada segundo que passava a observá-la. E por mais voltas que desse na cabeça, por mais que procurasse, em vão, compreender o incompreensível, não conseguia desprender o olhar do pequeno rectângulo que segurava.
- Está tudo bem?
Num esforço quase sobre-humano, estendi algo relutantemente a fotografia ao meu amigo guitarrista, embora a minha expressão se tivesse mantido inalterada.
- Então, rapaz, parece que viste o Demo.
Engoli em seco. As palavras não queriam ser pronunciadas, os pensamentos não queriam abandonar o turbilhão em que se haviam precipitado, e era-me impossível reagir de forma alguma.
- Olha lá, tu já não bebes mais hoje. Desembucha, homem. Que é que tens?
- Desculpem... Eu não... Vou apanhar ar.
Foi quanto consegui dizer naquela situação. Ergui-me de forma tensa e com movimentos mal articulados, e só consegui respirar fundo depois de alguns minutos à porta da taberna, e embora os minutos continuasse a passar e eu fosse recuperando a cada um, na minha mente havia apenas lugar para ela.

*****

É preciso aqui tornar a interromper o meu relato, mais uma vez para colmatar algumas omissões, ou melhor, para melhor detalhar alguns aspectos que foram somente muito ao de leve mencionados. É certo e sabido que o meu coração vivia em cativeiro, e que a ela dedicava cada aurora que, matizada de tons amenos, me acalentava a saudade de te inundar com meus olhos e de te enredar nos meus braços. Sabe Deus, o mesmo que escreve direito por linhas tortas, quantos dias não eram eram dias sem que te tivesse antes admirado em sonhos vívidos de estonteante desejo, sem que o meu espírito vogasse ao sabor de preciosas memórias como vagas, ou sem que os fados que eu cantasse fossem hinos ao amor que de que envolvia. E é vantajoso neste ponto que se clarifique bem a questão e não mais tenha que ser frisada: por tudo e em tudo, todo eu era ebulição de sentimentos, sublimação de emoção, e um fervilhar incessante proveniente da vontade de te ter gritava o teu nome nas entranhas mais inacessíveis de mim. Ora, quem experimenta tais sensações não pode deixar de perguntar-se se algum dia terá que render-se às evidências, esquecer o que não passou de uma efémera chama de um fósforo e dar um novo rumo à sua vida. No entanto, no meu caso, as perguntas eram outras. “Onde estará? Será que algum dei voltarei a vê-la? Será que devo procurá-la? E ao encontrá-la, o que direi?”
Era um problema real. Não lhe conhecia apelidos nem morada nem familiares nem amigos nem sonhos nem medos nem algo mais do que o seu nome, a sua idade e o seu beijo avassalador. Não sabia sequer se fora para longe, se estaria ainda no país ou nalguma terra estrangeira a milhares de quilómetros de distância. Em suma, ninguém havia para me ajudar, e eu sozinho nada podia senão suspirar. Com o passar do tempo convenci-me de que, se estivéssemos realmente destinados a um reencontro, a providência o tornaria possível. Só teria que ficar atento e agarrar a primeira oportunidade.
Eis então que me deparo com tal imagem na posse do meu tio foragido, que regressa à espera de encontrar redenção e me baralha sem querer com episódios da sua paixão de tenra idade. Não havia como entender que a rapariga daquela fotografia, em tudo idêntica à minha, havia em tempos tido um relacionamento com o meu tio, e que hoje deveria quase ter idade para ser minha avó. Era com estes enigmas que me debatia enquanto contemplava o céu estrelado através de uns olhos ébrios e esperançosos. Poderia ser este o o sinal de uma providência divina?

*****

Passo agora a contar como a noite que seria de estréia se tornou em noite de horrores, e perdoem-me se não me dou a grandes pormenorizações, mas prefiro fazê-lo de forma sucinta. Também não há muito que dizer acerca de um dia que começou tarde e com uma ligeira ressaca, esta última não apenas do vinho mas igualmente dos restantes acontecimentos da noite anterior, e que decorreu sem quaisquer incidentes dignos de registo. Fez-se um último ensaio durante a tarde, depois jantou-se no local da actuação, uma casa bastante típica, embora mais requintada e cuidada do que a da noite prévia, e após a refeição ainda houve tempo para duas ou três voltas de afinação. E foi então que tudo, e realço, tudo, se desmoronou. Ouviu-se um tombo violento, seguido de ruído nos degraus do pequeno palco onde deveríamos ter recebido aplausos e louvoures. Em vez disso, fomos arrastados para um vendaval de gente a correr e a soltar um grito inocente e a verificar a pulsação e a chamar uma ambulância. No chão, pálido e inerte, repousava o corpo amachucado do meu tio.

sábado, novembro 07, 2009

Trilogia.

Dois mundos que se entrelaçam dançantes,
Cientes, pois, dos furacões que encetam
Em debandada p’lo desfiladeiro;
Ruína entre o após e o pouco antes,
Dois pólos que se tentam e inquietam
Nos respectivos vícios de solteiro.

Tatuada essa voz no meu suor,
E os dedos que perdi nos teus cabelos,
E a sombra que nos rasga em mil quimeras;
Fantasmas que me levam a melhor,
Que afugento com terror de perdê-los,
Desvanecidos ecos de outras eras.

Caprichosa senhora, e sem fadiga,
Não queiras, com meu luto amplificado,
Matar anjos sem dor num grito mudo;
O leito que te rogo, mão amiga,
Um beijo entre lençóis endividado,
Concede-me esta noite o tu que és tudo.

31/10/2009
8:30

sexta-feira, novembro 06, 2009

Sonambulismo.

Abro os olhos.
Fecho os olhos.
O detestável despertador provoca terramotos no crânio.
Abro os olhos.
Fecho os olhos.
Cinco minutos passam nesse instante, e o sismógrafo dispara de novo.
Abro os olhos.
Fecho os olhos.
Ao terceiro assalto, os meus movimentos manifestam o automatismo de um electrodoméstico:
Estendo a mão e, num golpe seco, arranco a ficha da tomada.
Abro os olhos.
Fecho os olhos.
Um calafrio percorre-me a espinha,
E a janela aberta clama por intervenção urgente.
Abro os olhos.
Ergo-me sem pressa,
Caminho direito mas sem convicção,
E cerro as portadas,
Corro a persiana
E imerjo na mais corrupta escuridão.
Fecho os olhos.
O outro despertador,
Aquele que costumo programar com meia hora de diferença do primeiro
E que repousa estrategicamente fora de alcance
Agride os meus ouvidos com o seu toque estridente.
Abro os olhos.
Fecho os olhos.
A investida continua, impávida,
Até que se torna insuportável.
Abro os olhos.
Torno a levantar-me do mesmo modo insosso
E desconstruo o aparelho contra a parede mais próxima,
Sem violência sem ressentimento,
Uma simples manobra de estacionamento.
Fecho os olhos.
Um trovão atroa a atmosfera com ferocidade inigualável,
De tal modo que consigo sentir a sua força em cada célula do meu corpo.
Abro os olhos.
Fecho os olhos.

Abro os olhos, que se recusam a permanecer fechados,
Embora fechados os sinta,
Continuamente,
Ininterruptamente fechados.
E assim, de olhos abertos fechados,
Prossigo o sono agitado e assombrado a que chamo
Noite,
Enquanto na minha mente vagueiam histórias antigas acerca de uma fantástica,
Belíssima,
E nunca equiparável,
Aurora.

Quando me sentir cansado,
Voltarei a fechar os olhos.
Mas que diferença faz,
Se os olhos que julgo usar para enxergar
Em tempo algum chegam realmente a fazê-lo?
Olhos abertos, olhos fechados...
Certamente estarei a sonhar...
Acordado?

02/11/2009
9:24

quinta-feira, novembro 05, 2009

Sequela.

Invadiste o adeus inacabado
Dos ciúmes,
E entretiveste a seiva derramada
Pelo chão,
Jorrada deste nosso coração
Fermentada
Em fornalhas e alambiques e lumes
Lado a lado.

Ensinaste aos meus olhos a doutrina
Da vagueza,
E riscaste o meu nome da listagem
Dos achados,
Conspiraste ao lançar amarga os dados
E a voltagem
Consome ainda hoje esta franqueza
Em surdina.

Roçaste o teu punhal pelas gargantas
Tão doridas,
Roufenhas e entaladas como a mão
Na palmatória
Nutriste em mim um crente na memória
De um então
P’ra profanares o arsenal de feridas
Como tantas.

Decalcaste palavras indulgentes
No meu peito
E programaste os sonhos para dois
Sem calendário
E deixaste assentar pó nesse armário
P’ra depois
Desferires o teu golpe perfeito
Entre dentes.

Perdeste-me num canto acabrunhado
Entristecido
E ali fiquei prostrado em vãs esperas
Por perdão
Não foi a tua mão, foi o condão
Das primaveras
Que acalentou o desgosto embutido
Do passado.

Fizeste a tua parte e eu faço a minha,
Não me agrada
Que tanto solilóquio alimente
A minha dor
Amor, que é isso amor, não sei que amor
Tinhas em mente
É tarde, já tirei a minha espada
Da bainha.

31/10/2009
13:22

segunda-feira, novembro 02, 2009

Engenharia da percepção.

A estranha leveza de que padeço, de forma crónica e despropositada, convida ao recolhimento da alma no próprio âmago de uma individualidade una, como que uma gigante vermelha que colapsa sobre si mesma para enredar singularidades mirabolantes, que bem podem constituír berços profanos de novas cores e novas vozes, ou apenas aberrações de uma misteriosa fazenda inenarrável. Do mesmo modo podem os meus constantes acessos introspectivosverter-me numa sopa primordial imponderável ou, não tão épico, alienar-me à homogeneidade aborrecida de um Universo que se reflecte ad infinitum. Num ou noutro caso, não me compete a taxonomia do fenómeno, tarefa árdua de grandes mentes polidas, mas sim trocar-lhe o óleo ou verificar-lhe a pressão dos pneus. Como tal, poderia designar-me como um engenheiro da percepção, embora tal promiscuidade de conceitos possa pôr em causa a legitimidade de tal nomeação num tecido social de preceitos pragmatizados. Possa, em tal eventualidade, ser condescendida a minha irreverente incapacidade de não pisar os traços contínuos quando circulo atrás de um contentor ambulante a uma velocidade que dissertaria sobre aerodinâmica com uma lesma.
Entretanto, entretido nesta bizarra exposição de não sei que entidades cognitivas, discorri de tantos assuntos que me apartei da origem em movimento helicoidal. Retorno agora a pronunciar a leveza e o recolhimento, a tomar-lhes o gosto nas palavras e a encontrar os seus aromas na miríade daqueles que me rodeiam. Sou, neste momento, um receptor de mim mesmo, numa corrente circular que se realimenta positivamente até ao limite em que se esgota. Com alguma ousadia me arrisco a considerar a sexualidade intrínseca ao processo, o modo como os sentidos se afectam, o estado inebriado e efusivo, os movimentos instintivos mas eficazes, e o culminar imperioso que é porta efémera do Paraíso.
Após este momento masturbatório, permitam-me apenas que deixe assente: nenhuma outra aventura pode comparar-se à descoberta e colonização da identidade, desde os primórdios da existência até aos confins recônditos da natureza humana. Afinal, todos padecemos de uma curiosa enfermidade para a qual só se conhece uma cura: para que a vida se extinga, basta conquistar a morte.

06/10/2009
0:59

Contratempo.

Veloz, corre o meu sopro atrás de um rasto,
A ténue insinuação de um meu destino,
Meu peito exala em vão um vento casto
Cuja inocência foge em desatino.

Atrás da parca luz dos dias fora
Sigo em marcha solene esses resquícios
Que traz de um outro tempo ao tempo agora
Um bouquet de armadilhas dos meus vícios.

Travões não os conhecem os meus passos
Que em frenética dança me embaraçam,
São sombras ou miragens dos teus braços
Mitologias que entre si se abraçam.

Assim, o meu suspiro não tem porto,
Navega entre os rochedos e os escolhos
Que a minha alma povoam sem ser morto
E enxugam o silêncio dos meus olhos.

31/10/2009
13:03

quinta-feira, outubro 29, 2009

Rasga-mentes.

Trepidação,
Constipação,
E tédio vil,
Filas às mil,
Nesta prisão,
Neste covil.

Compreensão,
Habituação,
Vício atroz,
Garra feroz,
No coração
Falha-me a voz.

Interjeição,
Apreensão,
Gritos de dor,
Risos sem cor,
Na minha mão
Jaz meu amor.

Preparação,
Consternação,
Medo de dar,
Medo no olhar,
Medo de um não,
De um não amar.

A colecção,
Fados de então,
Jeito de ser
Mais um prazer,
Perco a razão,
Volto a nascer.

Um paredão
Em construção,
Uma janela,
Espreito por ela,
Morre o perdão,
Fecho a cancela.

29/10/2009
21:33

sexta-feira, outubro 16, 2009

Recado.

Nos mistérios do divino
Rondam vazios inconcretos,
Silêncios que em desatino
Vão passando a pente fino
Os rebeldes insurrectos;

Esses que buscam sem rumo
Esclarecimento profundo,
Que sem fogo não há fumo,
E sem saber não há prumo
Que seja Atlas do mundo.

Com tanto já desvendado,
Tanto mais por conhecer,
Deixo ao Eterno um recado:
Quem se lembrou do pecado
Bem poderia entender

Que não há espírito pleno
Sem o condão da verdade;
Por reles, tosco e pequeno,
Não há homem mais sereno
Do que aquele sem idade.

16/10/2009
1:27

segunda-feira, outubro 12, 2009

Quintilhas.

A liturgia elevada
Exponenciação da loucura
Uma utopia encarnada
Na voz do fado entoada
Fuzileira da censura

Almas vivas, desgarradas
Na complacência das musas
Nas noites mal afamadas
Um pescoço, sete espadas
E um céu de estrelas difusas

Ondulação delirante
Em espuma e ventos e lodos
Oração do nosso Infante
Jóias e sangue a montante
E a jusante os medos todos

Glórias e escuras derrotas
Inocência desculpada
Nestes jogos de batotas
Lançam-se os dados às rotas
À primeira badalada

À margem, silenciosos
Nas labaredas urdindo
Os homens audaciosos
Que se fazem poderosos
Nos cais desse mundo infindo

Na Bíblia do nosso fado
Rezam profetas ateus
Não há chão que seja errado
Porém, não esqueças cuidado
Que é certeira a mão de Deus

12/10/2009
18:50

segunda-feira, outubro 05, 2009

Apontamento.

Nunca antes conhecera saudade como esta,
Agridoce,
Que inebria o espírito e consome a mente...
É uma saudade simbiótica,
Que me encurrala em sonhos e me veste lutos insalubres,
Que arranha ao engolir
E que me perfuma a garganta com o paladar metálico do seu gume.

Saudade, que não aporta nem se abriga,
Que se entrega aos temporais desabridos da minha rejeição
E que naufraga nos meus silêncios toroidais de ciclos estéreis de mera estática.
Todos os dias me rouba um pouco,
Sem que em nada me acalente com meigos laivos consoladores;
Uma eterna dança de marés que depovoam praias
E amontoam escolhos nas profundezas
De mim...

Quem dera que um dia se gastasse essa impecável pontaria,
Ou que porventura à contemplação se rendesse,
Ou mesmo que se entregasse ao rumor crepitante do Eterno para que,
Enfim,
Repousasse.
Assim, com o paladar apurado e a textura amaciada,
Pudesse eu saboreá-la e dela nutrir o meu desalento;
Fosse eu capaz de ensiná-la a não pecar,
E seria eu o arlequim da frescura de todos os dias.

Nunca antes a saudade fora saudade...

29/09/2009
17:38

segunda-feira, julho 13, 2009

Amanhã...

Amanhã já se faz tarde
E hoje voltei a esperar...
Fui hesitante e cobarde
E amanhã não vais cá estar...
Amanhã já não me importo
Mas hoje só sei pensar
Que esta sombra que transporto,
Amanhã vai-me encontrar.

Rouco alento rasga-me as palavras por dizer,
Que talento tenho p'ra depois me arrepender;
Gozo da minha liberdade incondicional,
Erva daninha que planto bem no meu quintal.

Amanhã é outro dia
E hoje ainda sinto a dor,
Torturada companhia
De um amanhã sem sabor.
Relento na minha praça
Que amanhã será maior...
E hoje não sei o que faça
Para um amanhã melhor.

Letras vãs decrevem círculos na minha mão,
Anciãs mordaças presas ao meu coração;
Quero dobrar o infinito dentro da razão,
Mas o meu olhar perdeu-se num ido Verão...

13/07/2009
18:24

quinta-feira, julho 09, 2009

Definição.

Sou um conceito difuso,
Uma sombra diluída
Na escuridão deste inverno;
Sou pensamento recluso
A compreensão banida
De um silogismo moderno.

Sou um astro entristecido
Neste espaço sideral
Em que o silêncio perdura,
E sou lamento esquecido
De uma falha estrutural
Que me remete à loucura.

Sou um romance fortuito
Entre o destino e o acaso,
Oração de um anticristo;
Sou mero curto-circuito,
Uma aurora e um ocaso,
Um yin e yang imprevisto

Sou um gesto disfarçado
Na timidez que vagueia
Neste mundo sem idade,
E sou um mar encrespado,
Uma imensidão que ondeia
Entre paixão e saudade.

09/07/2009
22:42

sábado, junho 27, 2009

Prece.

Quando perscruto o horizonte entreaberto
Pelo sinal de uma saída de emergência,
Chegam-me apenas ecos do meu ser deserto
Que gritam alto a sua atroz resiliência.

De longe alcançam-me as histórias de um passado,
Mitos e lendas que se amontoam no pó,
E que me lembram de um destino inacabado
E dos atalhos que percorro sem estar só.

Leva-me além desta impressão de lucidez,
Concede-me asas de utopia consistente
Para que ao acordar não se apague de vez
A ténue chama que me traz incandescente.

Sábio, que abarcas os mistérios da saudade,
Diz-me que ventos são os teus, que me não soltam,
Faz-me messias e em mim desvenda a verdade,
Essa que acalme as mentes que, vãs, se revoltam.

27/06/2009
20:12

domingo, junho 21, 2009

Efusão.

O rosto entregue ao mais ingénuo desalento;
As faces entumescidas de espanto, de uma humilíssima vontade de voar com as gaivotas,
De um estertor além da competência humana,
Do negrume que embala a minha viagem,
Eu que me propago como um raio de luz vadio num maninho de incertezas,
Que estendo os braços e não abarco o axioma essencial,
A verdade das coisas inverosímeis,
A inconsciência natural de tocar no calcanhar de Deus...
Eu, que sou um compasso de espera num alegro refractário,
Um mero eco de existência incomensuravelmente curto,
Eu que alimento uma descendência de escravos,
De espantalhos,
E eu,
O mesmo que, de noite, sonha com a silhueta de um ocaso perfeito,
Que imagina o porque de todos os porquês,
Sou um recesso de uma constante universal
Que deseja o divino na sombra de cada concreto...
Gozo de uma liberdade condicional,
Pois o carcereiro não esquece nenhuma ronda,
E mesmo assim tropeço a cada trote mais ousado...
Ah, não vou,
Hoje não...
Vou deitar-me com os anjos e esquecer as palavras,
Esquecer o medo de esquecer,
Ser puro espírito num mundo de homens mudos.
Vai valer a pena,
Vou poder entregar a alma a outro demónio sem sentir a iminência da cobrança,
E galgar aos ombros de gigantes a cordilheira do sentido.

Sou um rosto entregue à mais prudente ponderação,
Perdido nos meandros da minha ingratidão,
Urgente numa busca que é como uma árvore de frutos podres.
Ai, como soube bem um dia de desembaraço...

21/06/2009
1:41

segunda-feira, junho 15, 2009

Absolvição.

Sou parteiro de enjeitadas desilusões,
Mais um espécime adúltero de um todo oco
Que se transvia acalentando os furacões,
Temíveis ventos, zéfiros do meu sufoco.

Sou regicida proscrito no próprio berço,
Um corpo apátrida enredado de si mesmo
Que se percorre nas fúteis contas de um terço
Urdido à força de um decaimento a esmo.

Sou desertor de tão deserto que me tenho,
Velho vigário de um meu eu desfalecido,
Retrato tosco e esborratado que desenho
Com o meu modo de me manter preterido.

Sou cidadela de muralhas reforçadas
Que entrecortadas entre as rochas se eternizam;
Não sabe a gente que estas almas muralhadas
Não menos penam co'as dores que as infernizam.

Sou labirinto erigido sem fundações
Que resvala sobre as areias movediças
De um coração que não conhece outras razões
Que os corações de tantas incertas premissas.

Sou todo o tempo que se arrasta em cepticismo,
Um mero sopro plagiado impunemente
Às incontáveis virtudes que, nesse abismo
Vertem os mortos-vivos deste eternamente...

15/06/2009
12:38

sexta-feira, junho 12, 2009

Contrição.

Um coração de barro
Periclitante,
Entorpecido amante
Abomivável,
O sonho não palpável
De um enjaulado
Que entretem o seu fado
Noutro cigarro
Menos bizarro.

A mão ao peito atada
Sabe gemer
O pálido querer
Que me entedia
Num vão de simetria
Tão inestética,
Num vão de dialética
Entediada:
Mão amputada.

Sou desmancha-prazeres
Torto e grosseiro,
Sou segundo ou terceiro
Nas entrelinhas,
Sou cadáver de espinhas
Que mutilado
Se encaixa em mais um fado
Nos afazeres
De tantos seres.

Falcão de olhos vendados,
Tiro certeiro;
Avanço e sou primeiro
P'ra recuar...
Uma esfera armilar
Que é demontada
Na poesia errada
De errados fados
Improvisados.

A cor que transparece
Nesta pintura
É sonolente e escura,
Quase sombria;
Maré que morre fria
Nos grãos de areia,
E um fado que permeia
A sua prece.
E não estremece...

11/06/2009
22:38

segunda-feira, junho 01, 2009

Pacificação.

Pedir desculpa por um beijo a mais
Dado à socapa numa rua estreita;
Saber de cor os pecados mortais
De uma doutrina mais vã que perfeita;

E amar todos os extremos opostos
Como as duas pontas de um nó desfeito;
E viver sorridente e bem disposto
Sem punhais que dilaceram o peito;

Desfiar as missangas coloridas
Deste meu ábaco de contar mágoas,
Como quem sara tantas mais feridas
Dessas que enlouquecem todas as águas.

E de arrancar folhas tão indiscretas
Como um vendaval que embala um junqueiro,
Tenho um ninho cheio de borboletas
Num ventre que se entrega por inteiro.

E aprender todas as lições de vida
No instante em que se decide viver,
Pois mais aprende quem não se duvida
Do que quem luta pelo seu saber.

01/06/2009
13:07

quinta-feira, maio 28, 2009

Música.

Quero fazer do meu suor
Uma paleta de cor
Pintar um mundo torturado
Na guitarra de fado
Compor a música maldita
Num compasso catita
E atear fogo verdadeiro
Num samba brasileiro

Quero entornar o Oceano
Num cante alentejano
E embalar corpos dissidentes
Num rumor entredentes
E numa outra valsa erudita
Ser a ponte interdita
Entre uma orquestra e um solista
Num palco de revista

Quero entreter a melodia
Numa canção judia
E afinar garganta e postura
Numa rumba madura
Entoar tango ao desatino
Num bordel argentino
E tecer blues improvisados
Ao relento chorados

Quero encarnar-me num piano
Ou num cantar cigano
Emaranhar-me em colectâneas
De vozes miscelâneas
Trocar colcheias entaladas
Numa ou duas baladas
E arrancar ritmos tropicais
A instrumentos banais

Quero o talento posto à prova
A jingar bossanova
Sonhar um rock inovador
Num poema de amor
E entrelaçar tantos estilos
No murmúrio dos grilos
Para que a alma prevaleça
E a música aconteça

25/05/2009
17:27

quinta-feira, maio 21, 2009

Palavreado.

Se há palavras que me enganam,
Outras há p’ra me embalar,
Mas há delas que me esganam
Sem que me possam cegar.

Há palavras moderadas,
E outras crivadas de esporas,
E há palavras bem pensadas,
Ditas bem a tempo e horas.

Há palavras tão cinzentas,
E outras tão cheias de cor,
Que até me esqueço das bentas
Palavras do meu Senhor.

E nem penso nas mais rudes,
Naquelas palavras ocas
Que julgam cantar virtudes
De vozes apenas roucas.

Tanta palavra erudita
Já me cansa. Todo o dia,
Muita palavra não dita
Melhor proveito teria.

Valem mais palavras duras
Do que palavras mesquinhas,
Que arrombam as fechaduras
De tantas portas vizinhas.

Mas se palavras abraço,
São as que fazem sorrir,
Daquelas que no regaço
Se aninham para florir.

E das palavras mais mansas
Rebenta pelas costuras
O Inferno das lembranças,
E o Paraíso às escuras.

Com tanto palavreado,
Tanha manha e tanta lábia,
Aqui me sento e aguardo
Por uma palavra sábia.

21/05/2009
18:18

terça-feira, maio 19, 2009

A Anomalia de Pioneer.

Para variar um pouco, deixo aqui o link para um trabalho de pesquisa que realizei no âmbito da cadeira de Introdução à Astrofísica, a respeito do Efeito Pioneer, um problema físico cuja resposta permanece desconhecida.

http://www.2shared.com/file/5858149/84a522e5/A_Anomalia_de_Pioneer.html

segunda-feira, maio 18, 2009

As primeiras histórias...

(Recebi hoje um e-mail da minha irmã com algumas histórias que lhe ditei entre os meus 4 e 5 anos, e a sugestão de que as publicasse neste espaço. Foi, sem dúvida, uma surpresa, daquelas extremamente divertidas, e para que se possam divertir como eu, here goes nothing...)

Era uma vez um cozinheiro. Esse cozinheiro era muito maluco e então um dia ele decidiu ir fazer uma receita. Mas fez a receita mal e depois ele ia comer a receita e vomitou. Depois foi dar um bocadinho a uma pessoa que estava no restaurante e depois essa pessoa comeu e ficou como uma bruxa. A bruxa fez mal ao cozinheiro, e este morreu. Todos da aldeia foram ao seu funeral. Ficaram todos muito tristes com a morte do cozinheiro, e viveram tristes para sempre.


15-04-94





Era uma vez uma princesa que vivia num grande palácio e então ela foi passear um dia e perdeu-se. O pai dela mandou ir à procura da princesa. E depois eles encontraram a princesa que estava escondida por trás dum caixote do lixo. E viveram felizes para sempre.


05-06-94





Eu sonhei que era uma noite muito escura, muito escura, muito escura. Que depois eu e a avó tínhamos ido viajar de comboio. E o comboio parou numa caverna muito escura e lá nessa caverna havia morcegos. E depois o Monstro desencantou-se e ficou num príncipe.

O Balu salvou o Mogli porque os macacos queriam roubá-lo.

O Muzzy contou tudo ao seu amigo do que se tinha passado. E acabou-se o sonho.


01-07-94




Era uma vez um rei e a sua mulher morreu. Então o rei andava sempre atrás da filha, e não a deixava sossegada. E uma vez a princesa ficou doente e o rei chamou os medicos, e eles cuidaram dela. Finalmente ela ficou boa e foi dar uma volta pela rua e encontrou bandidos que a raptaram. O rei mandou os empregados irem à procura dela. Depois os empregados deram volta a tudo e então os empregados encontraram a princesa. E viveram felizes para sempre.


22-08-94




Era uma vez um elefante. E então um dia a família dos elefantes foi a uma floresta. E tiveram que ir para casa. Depois alguém tinha sido afogado. A família doa elefantes foi salvar a pessoa que estava amachucada. Mas não era assim um afogado tão aflito e então a família foi ao cinema. Entretanto havia alguma comida no cinema. E então eles compraram uma caixa de pipocas e viveram felizes para sempre.


04-10-94




Era uma vez dois rapazinhos que eram muito ricos. E então um dia eles decidiram ir ao banco e o senhor do banco disse assim:

O que é que vocês querem, meninos?
E os meninos disseram:

Dinheiro.
E o senhor do banco concordou e deu-lhes uma caixa cheia de moedas e notas. E um dia eles decidiram ir comprar brinquedos. Mas quando chegaram à loja de brinquedos a porta estava fechada e os rapazinhos foram para casa. Quando o pai os viu disse:

Por que é que chegaram tão tarde a casa?
E eles lá contaram o que fizeram e o pai disse:

Todos para o quarto dos castigos.
E eles lá tiveram que ir.

Um dia eles saíram de casa e avisaram o pai e o pai ficou muito orgulhoso por eles terem avisado. E assim viveram todos para sempre felizes.


12-02-95

terça-feira, maio 12, 2009

Contrabando.

Entrego em mãos duvidosas
Que se afoitam na colecta
O meu destino profano
Em tentativas chorosas
De tornar meiga e repleta
Esta vida em desengano.

Estendendo esguios os seus dedos,
Recolhe o sopro irmanado
De versos e ladainhas;
São segredos os meus medos,
E uma guitarra de fado
Que embala dores vizinhas.

É silêncio que me espera
Do outro lado de um muro
E a quem me dou por inteiro,
E assim digo: “Quem me dera
Ser neste véu tão escuro
Um divino candeeiro.”


12/05/2009
19:42

quarta-feira, maio 06, 2009

Dias e Noites (Parte III)

Costuma dizer-se que Deus escreve direito por linhas tortas. Pois eu digo que Deus não é escritor, mas sim compositor: tem uma imponderável noção de ritmo, que resulta em sinfonias de andamento impecavelmente inconstante; possui um incensurável sentido de oportunidade, entrelaçando notas com a fluidez e eficácia de quem tricota uma camisola de lã; e tem acesso priveligiado a um qualquer poço de inspiração, que faz com que os momentos mais rotineiros e sóbrios da sua partitura se intercalem de forma maravilhosa com fragmentos de autêntica magia. Deste ponto de vista, poderia dizer-se que Deus compõe melodia e harmonia com a suma naturalidade de quem conhece melhor do que ninguém a intrincada natureza do ser humano e a sua necessidade de conviver com verdadeira poesia em momentos chave da sua vida. E posso afirmar, com franqueza, que o trecho dessa imensa peça cósmica que me coube, por destino ou casualidade, é indubitavelmente generoso. Tudo isto para apenas introduzir talvez o maior sinal de providência divina que alguma vez tive o prazer de experimentar.

*****

O Verão instalara-se, quente e abafado, havia já alguns dias. O Sol distribuia com entusiasmo a sua energia revitalizante por todo a zona ribeirinha da cidade, concentrando uma dose considerável da mesma na superfície cristalina das águas do rio, cujo caudal escoava pacientemente em direcção ao horizonte. Sentado junto à margem na relva fresca que a ladeava, contemplava com regozijo a sumptuosidade inebriante daquele contínuo fluxo de essência imaterial, havendo momentos em que arriscaria dizer que era o próprio Universo que se derramava sobre o rio, entregando-lhe sem cerimónia a história de todos os tempos, passados e vindouros. Não pude evitar sorrir.
Era época de exames, altura em que os estudantes que durante o ano se encontravam nas esplanadas para beber meia dúzia de cervejas as trocavam por um ou dois cafés e pela sebenta daquela disciplina tão chata, resignados a uma tarefa incontornável nas suas actuais carreiras. Eu não era excepção: na minha pasta, transportava alguns apontamentos arranjados à última da hora, duas ou três canetas soltas, a calculadora e provas de anos antigos. Mas não era tudo. Junto do material de estudo, repousava um caderno que, desde algum tempo, andava sempre comigo.

*****

O sonho em que a minha vizinha me devolvera uma relíquia que eu julgava perdida provocara em mim um irresistível impulso para escrever. Não podia ter sido meramente um devaneio nocturno como tantos outros que povoam os sonos de tanta gente. A sua razão de ser ainda me era desconhecida, mas sentia que não podia deixar de haver uma. Por isso, aceitei imediatamente que devia aproveitar o sinal e fazer alguma coisa por um outro sonho que, desde que fora para a Universidade, ficara em suspenso.
Nesse mesmo dia, fui à papelaria da faculdade depois de sair da última aula da manhã. Estranhamente, esta estava vazia. Nem a simpática empregada, de constituição pesada mas improvavelmente desenvolta e possuidora de um contagiante riso que fazia questão de oferecer a todos os clientes durante o atendimento, se avistava atrás do balcão. Em todo o caso, dirigi-me à prateleira dos cadernos, e inspeccionei-os demoradamente, aproveitando para dar tempo à senhora para que regressasse de onde quer que tivesse ido. Mas esta insistia em não aparecer, pelo que acabei por decidir regressar depois de almoço.
Quando me preparava para sair, a senhora entrou por uma porta de serviço, carregando uma pilha de cadernos cujo aspecto me chamou a atenção: eram de capa dura azul, com argolas igualmente azuis, e as páginas eram completamente brancas, exactamente iguais ao caderno que protagonizara o meu encontro com a rapariga naquela remota clareira de um tempo remoto da minha vida. Com tudo o que já acontecera, e com tudo aquilo que as circunstâncias auspiciavam, achei que aquele insignificante pormenor, aquela ínfima coincidência não poderia senão fazer parte de uma sucessão de acontecimentos coerentemente encadeados e desenhados para desembocar num desfecho memorável. Assim, movido por uma estranha certeza que me vinha não sei bem de onde, ofereci-me para ajudar a senhora a pousar a remessa no seu lugar, e retirei imediatamente o caderno que coroava a pilha. A mulher respondeu à minha prontidão com uma alegre gargalhada, acrescentando que não havia melhor qualidade num homem do que ser resoluto.
Paguei o caderno e saí com a sensação de ter estado no lugar certo à hora certa, de ter feito os movimentos precisos, e de estar um passo mais próximo do culminar de uma verdadeira aventura.

*****

Retirei o caderno azul da pasta, procurei um caneta no fundo, e com o primeiro aberto sobre as pernas cruzadas e a segunda na mão direita, fitei mais uma vez o majestoso cenário que se me expunha. Respirei fundo, talvez tentando inspirar directamente a arte que vagueava naquele lugar, empurrada por ventos e correntes e ciclos naturais num vai-vem incansável, para poder depois transcrevê-la directamente para o papel ainda vazio que ansiava por ser veículo de beleza. E, enquanto repetia esse exercício de abertura a uma forma de consciência elevada, fui distinguindo ao longe o som característico e inconfundível de uma guitarra portuguesa, colocando notas à solta no mesmo vento que me levava ao âmago o inesgotável encanto da Criação.
Agradado com a adição daquele novo elemento, deixei que também ele conduzisse o meu contacto com a fonte das ideias. Cada acorde que se sucedia numa composição extremamente harmoniosa induzia no meu espírito um nível crescente de empatia comigo mesmo e com o mundo à minha volta. E, nesta viagem interior levada ao sabor de fados aleatórios, o impensável aconteceu, deixando-me sem outra reacção que não fosse erguer-me e procurar o diligente guitarrista.
Encontrei-o quando terminava um tema bem conhecido e que me era particularmente querido, “Gaivota”, com letra do grande Alexandre O’Neil e música do genial Alain Oulman. Ele olhou para mim com uns olhos azuis que me deixaram aluído: aqueles olhos eram tão semelhantes aos olhos azuis do gato preto que não pude evitar esboçar uma denunciada expressão de espanto e perplexidade, perante um homem que aparentava ter uns trinta e poucos anos e me mirava com visível curiosidade. Tentando não o intimidar com a minha surpresa, decidi desviar o olhar do seu e, apontando para o lugar de onde me levantara, convidei-o para se juntar a mim, alegando que a vista era, sem dúvida, bem mais deslumbrante. O homem acedeu ao convite, e dentro de poucos instantes estávamos lado a lado, sentados na verdura fofa da margem do rio, apreciando a verdadeira maravilha de um pôr-do-sol estival.
Trocámos poucas palavras. O homem limitou-se a presentear-me com o seu talento na guitarra, e eu escrevi páginas e páginas que brotavam incessantemente do meu estado de espírito extasiado. Assim ficámos, partilhando simultaneamente o som e o silêncio, até que o último raio de luz encerrou o espectáculo e convidou ao recolhimento.

*****

Aproveito para corrigir uma lacuna que não foi, de todo, inconsciente. A verdade é que já antes vira uns olhos azuis que me tinham recordado os do misterioso gato, embora a parecença fosse mais subtil, quase imperceptível. Já adivinharam que estou a referir-me à simpática vizinha cuja idade respeitável e os indispensáveis óculos disfarçavam algo que imediatamente sobressaía assim que se conseguisse anular os seus efeitos dissimuladores, um detalhe que desmascarara assim que conseguira observar com atenção o brilho singular que o seu olhar emanava, de um azul que passeava discretamente em memórias de noites sem sono. Portanto, temos o gato preto, a senhora idosa e o jovem guitarrista, três personagens autónomas, independentes, que muito provavelmente nunca se tinha cruzado nem viriram a cruzar-se entre si, mas que partilhavam, para além dos seus distintos olhos azuis, algum momento mais ou menos místico e decisivo na minha vida.
Pode parecer que estou a tentar impingir determinada informação de natureza tendenciosa, de certa forma para vos levar a acreditar na providência, no destino, ou em qualquer outra dessas inefáveis coisas. Na verdade, apenas quero destacar que, se existe mistério na nossa vida, se há coisas que, sendo insignificantes para uns, se tornam fulcrais para outros, isso mostra que está em nós o poder de tornar cada pormenor importante, cada novo dado especial, cada pequena coincidência num leme de intenção e propósito. Todos somos deuses de nós próprios: criemos, pois, o nosso mundo, da forma mais divina possível.

*****

Levei o homem a jantar a minha casa, aproveitando a ausência dos meus dois co-inquilinos para estar mais à vontade. Cozinhámos em conjunto, tendo tido como resultado uma panela de fusilli de duas cores, com molho de natas, atum e cogumelos, queijo ralado e especiarias. Comemos pausadamente, aproveitando a agradável refeição para conhecermos um pouco mais sobre o outro. Falei-lhe do gato, da rapariga, do encontro na clareira, do sonho, enfim, de tudo aquilo que era preciso como introdução àquilo que me levara a procurá-lo naquela tarde junto ao rio. Ao mesmo tempo, fui sabendo que se tinha formado em Filosofia, que estava naquele momento desempregado, que se tinha divorciado havia pouco tempo e que estava a escrever um ensaio na área da Estética. A conversa foi acontecendo naturalmente, com as suas pausas, os seus picos de intensidade, as suas asserções e desentendimentos, mas tudo enquadrado numa postura de à vontade e franca vontade de partilha.
A certa altura, enquanto eu lavava a loiça e o homem entoava outro dos seus maviosos fados, por sinal bastante conhecido, ergui os olhos ao alto e lancei-me num Corrido com letra de Alfredo Marceneiro, e pude constatar que, no instante em que a minha garganta soltou uma voz tímida mas determindada, ele hesitou ligeiramente, recuperando de imediato o tempo da música e esmerando-se ainda mais na sua arte. Os dois juntos agitámos cada uma das pedras da calçada da rua que se vislumbrava pela janela semicerrada, uma calçada gasta pelo tempo e repleta de histórias para contar, mas que ainda assim se enternecia perante a grandeza daquele momento. Tive até a sensação de que o vento acalmara só para que se pudesse ouvir melhor o imponente dueto entre voz e guitarra que resgatava dos confins da alma humana a expressão mais evidente do sentir português.
Ao terminar, e ainda embalado pela melodia que reverberava na minha mente, julguei vislumbrar a silhueta da minha vizinha a acenar com a cabeça em sinal de anuência. Assim que consegui mover-me, tentei confirmar a minha suspeita, apenas para me deparar com todas as janelas do edifício vizinho trancadas e de cortinas corridas. O homem acompanhou o meu movimento com o olhar e, apanhando-me virado para ele, perguntou finalmente:
- Porque me chamaste? Por que me trouxeste aqui?
Pensei para mim que aquela pergunta devia andar a ziguezaguear nos meandros dos seus pensamentos desde que eu o abordara. Limitei-me a sorrir de volta e, sem mais explicações, pedi-lhe que me acompanhasse até ao quarto.

*****

É preciso, aqui, fazer uma nota importante. Tenho, perdida nas mais longínquas das minhas memórias, a recordação de uma noite em casa de um tio, irmão da minha mãe. Era o seu aniversário e, como sempre, havia alguns convidados assíduos. Um deles, carteiro de profissão, amigo de longa data do meu tio, empunhava uma guitarra de fado, e outro, reformado da função pública, uma guitarra portuguesa. Entre eles, de olhos fechados e compleição sentida, a figura alta e robusta do meu tio completava o quadro típico de um trio de fado, interpretando de maneira irrepreensível os mais belos poemas do espólio tradicional português. Creio que esse momento tenha sido um dos meus primeiros e precoces contactos com esse género musical pelo qual me fui apaixonando de forma incontornável, primeiro pela beleza da sua sonoridade, depois pelo sentimento com que era tocado e cantado, e por fim pela sensação única que é exprimir uma alma ramificada e insaciável através de um reportório tão vasto quanto o génio humano.
Assim, elevo aqui uma ingénua homenagem ao fado e a tudo aquilo que ele comporta e representa e, já agora, àquele trio de gente simples, amadora, mas que atingia uma elevação fora do vulgar quando se reunia para erguer a voz e o trinado das guitarras ao céu.

*****

Sentámo-nos na cama, o homem ainda com uma expressão desconfiada no rosto, e retirei o caderno da pasta que repousava sobre a colcha amarrotada. Procurei a página que pretendia e, uma vez encontrada, mostrei-a ao meu amigo. Este leu-a com atenção, absorveu-a sem rodeios, depois releu-a mais detalhadamente, e em seguida pousou o caderno no meu colo, dizendo:
- É um poema muito bonito. Foste tu que escreveste?
Eu hesitei, mas acabei por responder:
- Lembras-te da rapariga de que te falei há pouco?
- Sim, com certeza.
- Quando fui atrás do gato naquela noite, encontrei uma página arrancada a um caderno igual a este. Nele estava escrito apenas o primeiro verso desse poema. No sonho de que te falei, pude ler o poema completo ainda antes de o ter escrito. Este é o poema que me surgiu em sonho, e é ele que me levará à rapariga. Tenho a certeza.
O homem soergueu o sobrolho, impressionado com a minha revelação.
- Mas então o que pretendes fazer?
Voltei a esboçar um sorriso, mas desta vez respondi com prontidão:
- Este poema é um fado. Quero pedir-te que me acompanhes com a tua guitarra.

domingo, abril 26, 2009

Muro de Lamentações.

Sei bem que possuis dois credos,
Falas bem, és perspicaz...
Sei que tens o toque de Midas nos teus lânguidos dedos,
Segredos.
Sei bem de tudo o que és capaz...

Sei que te emprestas todos os dias,
Que te alugas, que te fazes valer;
Sei que alimentas, de mãos vazias,
Entre cólicas e correrias,
Uma fraca imagem de homem ou de mulher.

Sei que vagueias sem consentimento,
Que padeces, que enlouqueces,
Que te exploram pelo teu parco sustento,
Que te esvaziam do teu frágil alento,
E que te esqueces...

Sei bem onde e de quem te refugias,
Sei tanto mais que não digo...
Conheço os arquétipos, os símbolos, as alegorias...
Fracos guias
Quando o que faz falta é apenas um sorriso amigo.

Sei que não voltas atrás:
Não podes, não há como desmaterializar a memória;
Mas não te tornes também tu num Barrabás,
Escárnio divino de um povo que não conhece paz,
Inglória vitória.

Sei que não serás vencido.
Tens um desejo? Eu to concedo.
Mas não te acanhes no pedido,
Está, desde já, concedido.
Não tenhas medo.

26/04/2009
7:32

sexta-feira, abril 10, 2009

La Rèsistance - the Dream and the Dreamer...

Um gole tépido de cafeína para desentorpecer,
Dois ou três tragos de absinto para amenizar,
E um cálice pleno de veneno que derrama nuns olhos lacrimosos,
Desfocados,
Uma catarata de atrevimento,
A alma cativa na hipnose dissimulada dos teoremas quotididanos,
De tantos temas mundanos que parasitam a aparência de conteúdo.
Desalojados, sujeitos a todos os vendavais,
Erige-se uma infinidade de cemitérios onde repousaram,
Uma vez mais reprovados no exame do reducionismo materialista,
Todos os sonhos,
Imensidão desolada de excertos deliberadamente censurados da realidade.

Por vezes, uma insignificante flor adormece sobre uma campa abandonada,
Sozinha entre uma multidão de embriões arrancados ao ventre em que cresciam,
E vocifera denúncias ferozes do ridículo genocídio da condição humana,
Brama aos sete ventos a evidente conspiração de um colectivo masoquista,
Apenas para que, exausta, roufenha,
Praticamente afónica,
Se entregue nas mãos indecisas de um Criador senil,
Imersa no desgosto execrável de ser um rebelde condenado pela propaganda de um Universo plano,
Elementar.

Chega de clorofila derramada, sem desespero, num chão que a afugenta,
Chega de aromas inebriantes desperdiçados num aterro nauseabundo
Onde apenas singra o verme necrófago e a podridão
De uma constituição perpétua,
Algema;
Unam-se sementes ao húmus fresco,
Regue-se a mistura com a mais cristalina da águas primordiais,
E em pouco tempo,
O que outrora fora um pântano inabitável,
Será o pilar de toda a ciência e majestade.

08/04/2008
15:36

quarta-feira, abril 08, 2009

Multiverso.

Tenho cadernos repletos de omissões,
Vício inflexível da minha espécie encrespada
Que emana pulsos intermitentes
De radiação mutagénica,
Faróis de nevoeiro para a neblina que, mais uma vez,
Se avizinha.
Se, porventura, me contradigo,
Não me julgai desonesto,
Ou muito menos um mero menestrel de uma corte cismada,
Escondida nas fossas abissais de um qualquer oceano lunar;
Compreendei que sou isento de objectividade,
Que me entrego a cada linha como se fosse o prometimento de um novo universo.
Dessa forma, poder-se-á alcançar esta ténue e muito tímida disputa:
Serei um desígnio inconcebível de todas as minhas palavras,
E não um autêntico demiurgo de carne e osso?

Comece-se por uma página aleatória,
Vantagem alguma pode o tempo conceder,
E vislumbre-se cada segmento de gnose como um botão de pétalas enrugadas,
Cada estância como um canteiro de vagens tenras,
Cada matéria como a flora selvagem que se estende na vastidão da Criação,
Um simpósio de liquidez, ensaio de mim mesmo para com todos os eus.
Sempre se encontrarão as ramificações mais imponderáveis,
As verdades mais indecifráveis,
As irrealidades mais eloquentes,
Um retrato desenhado de cabeça quanfo do o sujeito se mascara de passado,
Um cubismo vacilante se se disfarça de presente,
E uma pintura rupestre se acaso se assume como futuro.

Não arriscai investigar qualquer desfecho,
Aquela derradeira asserção que apazigue a adrenalina desta viagem,
Um singelo epitáfio ao eterno deleite de abraçar a sublimidade;
Não pactuai com essas Moiras insidiosas à espera de por elas ser poupados.
A alma não se extingue, nem a existência se degrada,
Antes metamorfoseia-se
Continuamente.
Estai, pois, atentos à amplitude imensa do momento,
E se fordes perseverantes,
Podereis contemplar a dissipação última de todos os bits de ser,
Apocalipse aparente,
Génesis continuamente.

07/04/2009
15:34

terça-feira, abril 07, 2009

Epónimo.

A ligeireza acabrunhada de um profeta
Que, acometido do vendaval do perdão,
Desvenda, em sonhos, o sorriso desse asceta,
Qual mercenário nos limites da visão.

Súbita a margem no precipício do ser,
Fábula escrita em letras de algodão tisnado,
Em em labaredas, colorido entardecer,
Os estuários de um coração sitiado.

Calcorreando uma improvável conivência,
A uma ingénua complacência se remete:
«A consciência, meu amor, a consciência,
Não se desvenda na razão que me promete.»


06/04/2009
19:49

domingo, abril 05, 2009

Mandala.

Tenho o estigma das areias
Movediças;
Na mão que dá, o sangue das ideias,
E outra mão que arrecada os seus mutilados membros,
Carcaças só de cinza e suco gástrico.

O paladar dos signos preso ao céu da boca,
Como uma pastilha elástica à sola do sapato,
E falas como quem tropeça,
E foges como quem galga o vento,
Árido desfiladeiro que se faz transportar às costas do teu lamento...
Conta os passos ímpares da tua impaciência,
Insolência, insolvência,
E joga-mos em cara numa chuva de estrelas,
Fogo de artifício.
Uma agulha sem seringa,
Um néctar inanimado por assimilar,
A página solta-se, finalmente, do teu livrinho de bolso,
E ficas nua, perplexa, sob uma cascata de cores ebúrneas,
O corpo que trepida a caminho de mais um fôlego,
E uma mente esburacada que se evade a mais um disparo.

Entretanto, eu com sede e tu em chamas,
Copiosa coreografia concebemos,
Rastos de joelhos que se arrastam,
Marcados, velhos,
Velhíssimos...
Um atractor estranho de singular natureza,
O plano de Poincarè corrompido na sua irrevogável premissa.

Chamamo-nos todos os nomes,
Nenhum que faça verdadeiro jus àquilo que nos supomos,
E enquanto as palavras estéreis se coleccionam no álbum de família,
Nova sessão de acupunctura sobre uma laje de magma.
A pressão aumenta, transborda, inunda todo o tempo a consumar-se,
Mas não importa,
(Nada importa...),
Não é apenas mais uma derrota simbiótica:
É o chão que engole mais um pretérito,
O pântano que se consome e adormece,
Uma insuspeita, mas muito estreita
Mandala.

02/04/2009
08:04

sábado, abril 04, 2009

Nota Solta.

Vacilante entre o sonho e a sensatez,
Dois versos de uma página sagaz,
Uma vida, como qualquer, fugaz
Alento que se patrocina à vez.

Pergunto o que se viu ao que se fez
Mergulhado em rastilhos de lilás;
Pergunto o que se vê do que se faz
E acato, do meu eu, a pequenez.

Rudimentar muralha, que erigida
À minha volta, embrenha o meu castigo,
Um soluço engasgado à despedida...

Embalo, assim, de mim para comigo
Os vôos aliterados de vida,
O sentimento amado do perigo.

11/12/2008
01:56

segunda-feira, março 30, 2009

Marginal.

Podia dedicar-vos todos os poemas escritos,
Vislumbres de mentes pueris que se aventuram a espreitar portas infames,
Mecanismos catárticos de excelência inegável,
Frutos maduros, parras verdes,
Ou uma mera roleta russa de um espírito pululante.
Dedicar-vos a poesia do mundo seria como abençoar um pecado,
Curva fechada sobre si mesmo, espiralada
Contra o seu centro.

O contrário de muitas palavras não tem vida própria,
Mas a desenvoltura com que se contraria a natureza do corpo é quase tão enfadonha
Como a naturalidade com que se escarnece da alma.
Por tudo isto, deixo um poema marginal,
Uma salvaguarda a esse sacrílego ritual,
Uma excepção à loucura que se gatafunha nestes dias.


P.S.
A dedicatória vai em branco,
Mas que não vos apoquente:
É para ti, como para toda a gente...

11/03/2009
07:10

domingo, março 15, 2009

Magnésia de Âmbar.

Um clarão profuso no campo de visão,
Uma atípica integridade que se arremessa contra os muros,
E lembrar-me, enevoado, de um tal sabor ou da palidez de um rosto enviesado,
A cor dos dias vista à lupa, rastreada,
Um recenseamento eficaz de toda a flacidez espasmódica ao meu redor.
Tréguas de luz no abandono do refúgio,
Contenho os olhos, as pálpebras estremecem,
Mas inundo-me, uma vez mais,
E o metrónomo precipita-se no exangue falatório do costume:
Sem que a ninguém se dirija, a todos convence;
Sem mencionar o meu nome, eis-me cativo e em fila.

Conheço quem me não negue nem tão pouco estime;
Lascas de uma madeira ainda em bruto,
Amontoada como tantas outras no armazém comunitário da Rua dos Medos,
Valores inacabados, começos interrompidos, ruptura,
Luxo moderno.
Faça-se o rio transbordar ainda mais,
Preencham-se as lacunas com as fezes dos seus subsidiários,
Lavemos o lodo das margens como o lodo que nasce do fundo,
Leito escorrido, leito vazio...

Lembro-me bem dos teus abraços.
Conheço-lhes o cheiro e a textura, tonalidades,
A sua banda sonora;
Sei o seu timing, os instantes de contacto,
As esperas, os ritmos,
Lábios que se amam, línguas que se ferem,
E um fio de lava que escorre nas veias e se entrega ao chão.
Conheço a fonte e o jusante,
E as velas de cheiro e os despertadores;
Sei-os, como tu, melhor do que ninguém...
Mas há vontades que não são nossas,
Alugadas há tanto tempo num beco pirata,
Velas desfraldadas,
Navio de conformidade.

Dispenso.
(Por agora...)

11/03/2009
06:56

quinta-feira, fevereiro 12, 2009

Glosas.

Testemunhas incompletas,
De curvas oficiosas,
Tangem odes circunspectas
Nas nossas almas rochosas.

I
Interjeição que se afoita
Por capricho delicado;
Um falsete inacabado
Que na calçada pernoita;
A tempestade que açoita,
Na sinapse dos poetas,
Circunferências secretas
De contextos vanguardistas,
Compõe na voz dos fadistas
Testemunhas incompletas.

II
Véu de tecido vincado
Que encobre ternos ditongos,
Disciplinados e longos
Dedos que pintam no fado
Cores "vizinhas do lado"
Entumescidas, vaidosas,
Colinas silenciosas
De onde a melodia emana
Numa geometria plana
De curvas oficiosas.

III
Indiferente se deita,
Todo livre de embaraços,
No calor dos seus abraços
De concepção imperfeita;
Um rodízio que se enfeita
De sensações indiscretas,
Um concílio de profetas
Com insinuações voláteis
Que, nas suas prosas tácteis,
Tangem odes circunspectas.

IV
Ilimitada ternura,
Transparente à ousadia,
Alheada à cobardia,
Percorre o tempo e perdura;
Requinte, amor e frescura
Em miscelâneas jocosas
De relíquias preciosas,
Pétalas párias, apenas
Desvendam-se almas serenas
Nas nossas almas rochosas.

11/02/2009
2:30

quarta-feira, fevereiro 11, 2009

Ensaio.

Divagação processual, em código binário,
Renderizada sem pixelagem amorfa num volume incendiado,
E o colimador regulado para máxima difracção.
Estamos, portanto, a postos para digerir o horizonte, colapso de sedimentos,
E o cadinho precipita-se entre dois espaços ortogonais,
Rumores de uma singularidade que se extingue enquanto nasce.
As tabelas prontificam-se a dar respostas de incerteza,
E os diagramas vomitam sempre os mesmos corolários,
Mas a viagem que se experimenta a cada expressão caótica do substrato é sedutora;
Enverga no regaço um sustenido improvável,
Que galanteia o intelecto numa dança perpétua e extasiante,
Todas as danças fossem no corpo como um colóide imaterial de existencialismo,
E a superfície diferencial do nosso colectivo, desintegrada,
Ressurgiria sem nome.

Agora fotocopia este livro,
Massifica os provérbios originais num qualquer palco apoteótico,
Assola o chão de todas as vidas com a sua dúvida miriápode,
Goza de um breve rasgão no esgar envelhecido da tua estática:
Em breve, entropia e utopia serão de novo o teu tumulto,
E a queda roubar-te-á o pouco sono que te resta nas noites foragidas,
Incestuosas,
Das nossas fronteiras.

11/02/2009
20:42

terça-feira, fevereiro 10, 2009

Plêiade.

Doem-me os olhos de tanto rir sem gargalhadas.
Parece até que os ímpios laivos de congruência
Na minha ausência de languidez comportamental
Se delineiam obliquamente numa lousa informe,
Tomando formas,
Escassez de salmos jucundos que alijem a própria consternação de me ser.
Na dor se aglomeram artificiosos bramidos,
Veleidades a que o grémio da objectividade se consente,
Urdidas em mérulas roucas deslembradas do seu tão patente crime de anacronismo.

O padecimento é, em qualquer género, inadequado,
Um maquinismo tosco que infama a cada diligência singular a compleição magistral,
Sustentáculo do real, plêiade de intenções,
Que por Todo-Poderoso designamos.

Sobeja, enfim, um vestígio de sobriedade,
Mas ministre-se o cálice transbordante do capricho,
E ei-la a dissolver-se, quase irreversível, na frívola teimosia do conforto.

10/02/2009
02:36

segunda-feira, fevereiro 09, 2009

Fractal.

Desdobro em mil o mundo que me encerra
Em palavras que rangem de cansaço;
Na minha mão semeio a nova guerra
Para colher co'a outra o novo abraço.

De cáusticas imagens me alimento
Miragens que se amontoam p'lo chão,
Que as dádivas de outrora, pelo vento
Trazidas e levadas sempre são.

Canto ao luar um fado murmurante,
Enlutado repique desse sino,
No campanário do meu ser errante,
Na dimensão fractal do meu destino.

28/01/2009
05:27

quinta-feira, janeiro 08, 2009

Dissertação Estrelada.

Nada descreve melhor os meandros pantanosos da linguagem como as tenazes monstruosas com que componho a lareira dos meus pensamentos, que ardem e se reduzem, não sem antes crocitarem em estalidos inconstantes o sufoco que é morrer ainda antes de ter entreaberto os olhos desfocados, a um punhado de cinzas mornas, que mais tarde se tornarão frias por via da termodinâmica tosca com que, no final, exalo uma palavra tímida, um pincelada grotesca, uma nota dissonante, ou apenas o olhar meigo de quem se ama e se despede. Afinal, todo o final tem um começo, e toda a origem um destino, sendo que, em última análise, ambos se confundem e entrelaçam num marulhar rarefeito entre uns instantes prévios e outros que ainda pairam nas inconcebíveis marés do céu, firmamento. E a verdade é que, com tudo isto, a manhã se faz tardia, a alvorada se faz ocaso, e todas as vénias e bocejos e contorções desoladas que povoam os humanos cometem suicídio. Com tantas palavras ditas, outras escritas, e algumas apenas sonhadas, ou desenhadas em papel onírico, vou acabar de calcetar esta avenida, para que as ideias circulem sem tropeções nem acidentes de percurso, num corropio que é inteiro, visceral e inconcusso.

19/12/2008
5:22