segunda-feira, março 31, 2008

Alma Astigmata.

Treva e sede numa ferida por sarar,
Dois mutantes no palácio do rei Midas,
Aquele que tudo doura enquanto por dentro se enegrece.

A tutoria terminou,
A fábula é reiterada,
Entretanto, entre tantos
Portões de arame farpado no túnel da visão,
O oculto na minha lividez.
Sensabor, parco, atrevido em demasia,
Cobarde nas minhas herdades,
Mimético nas minhas vivendas.

O crepúsculo chega sem avisar e ensombreia os recantos;
Traz consigo uma Via Láctea de correntes,
Um ror sináptico de memórias agridoces;
Mais adiante um pássaro pousa,
Diante do adiante, coxo.
C’est rien…
O durante, talvez, durasse, não
Fora eu um ser em endurance.

Intercalados,
Os sonhos são projécteis,
Cogitam na imperfeição dos seus standards,
Refilam e perfilam-se sem burocracia,
Um mundo dentro de um mundo dentro de um mundo…
Tóquio a brilhar na minha traqueia,
E o Vesúvio a fervilhar no meu cansaço.

Respira a vida pelos poros,
E o frio inunda a minha orgânica,
Suada dos arrepios que alimento.
Dá-me a tua mão…

31/03/2008
17:28

domingo, março 30, 2008

O Inverno.

Existe sempre Inverno no planeta das ideias,
E quase todos os habitantes hibernam sob espesso manto de neve.
Acordados, ficam os gigantes e os anões,
As bestas míticas,
À espera de um tempo prometido para florescer...
Acordados, mas nem tanto,
Dormentes, entorpecidos, cabisbaixos,
A história reescrita,
Mil vezes as mesmas frases,
Sempre a inevitabilidade do ciclo,
E a turba insurrecta que calca o chão sob o qual se despem,
Criaturas sagazes, gente perpétua,
Ou que pretende à força de semblantes fazer-se perpetuar...

Existe Inverno na cidade dos sábios,
Na clareira dos apóstolos,
Na mansão da lascívia e do devaneio;
Existe frio e escuridão nos cantos imóveis de uma sala,
E o medo toma conta da virtude,
O sono vence a espada da bonança,
Querelas mortiças num subsolo cruento.
Existe Inverno nas palavras,
E repetem-se os infernos e os arco-íris,
Faz-se de conta que não se faz de conta,
E torna-se ao inescrutável silêncio da noite ébria.

O Inverno torna-se berço de canções,
E a sombra é o prenúncio de Verões;
O solstício,
Um pedaço de infinito imerso na mesma miragem...
Toma todos os teus medos e reinventa e epopeia,
Desata cordas e pula muros,
Enterra o gume na carne rubra,
Sente.

O Inverno chegou à minha aldeia...

29/03/2008
22:45

sábado, março 22, 2008

Prólogo para um romance com janelas...

Os acordes voavam com a fria brisa de Inverno, enternecendo, quase imperceptíveis, a multidão deambulante, absorta nas suas ocupações, alheia ao cigano que, encostado à parede amarela de um edifício visivelmente velho, os arrancava fugazes de um degradado acordeão. De olhos fechados, indumentária simples e até mesmo parca para a altura do ano, o cigano tocava com a ligeireza que o cansaço e a disposição lhe permitiam, enquanto à sua frente se desenrolava o frenesim desmesurado típico de uma rua de comércio ao Sábado à tarde. Um casal elegante entrava num pronto-a-vestir de um franchising multinacional e, enquanto a senhora da peixaria conversava calorosamente com o dono do talho, um rapaz esguio contemplava a montra exageradamente enfeitada de uma loja de instrumentos musicais, cujos olhos se tinham embasbacado com a réplica fiel de um Stradivarius fabricada artesanalmente por um desses raros mestres da manufactura tradicional.
Marcando o ritmo melancólico daquela rua mercantil, o cigano ia interpretando, uma por uma, músicas de essência marcadamente popular, misturando a natureza do fado com a simplicidade de harmonia jogral, através de um extenso reportório que mais parecia não ter fim. Cada vez que terminava uma música, e sempre com os olhos fechados, parecia fazer uma vénia a alguém que, supostamente, estaria a aplaudi-lo. Depois, ao longo de uns breves instantes sombrios, tocava cinco ou seis notas desencontradas, para logo dar início a uma nova música, que iria mostrar-se ao ouvinte atento elucidativa dessas notas prévias aparentemente desenquadradas e desarmoniosas. O ritmo, esse era sempre o mesmo.
Ao contrário de outros, que tocavam nas ruas com o intuito de pedir esmola, o cigano pretendia apenas enlevar os espíritos das pessoas que, preocupadas com os seus afazeres e com a vida desenfreada que levavam, passavam pela rua em que tocava. Não pedia qualquer remuneração, embora por vezes alguém bem intencionado fizesse voar uma moeda até aos pés do cigano, que acabava por apanhá-la e guardá-la. Não era, de modo algum, como os outros. Na sua ideia, a música não era um bem passível de ser comercializada. A música seria talvez o mais universal dos mistérios, e nunca uma verdadeira criação humana sujeitável a direitos de autor. Se era música, então não constituía pertença de ninguém, nem poderia nunca ser-lhe atribuída compositor ou intérprete. A música era, como ele, vagabunda, humilde, incompreendida, maltratada e indevidamente explorada pela sociedade.
Naquele Sábado vespertino, em que o clima tenso de humidade ameaçava culminar em portentosa trovoada, vivia-se o último estertor consumista característico do carácter materialista convenientemente associado à quadra natalícia. Aquilo que deveria ser um tempo de paz, harmonia e amor fora irreversivelmente transformado numa corrida extenuante de consumo exagerado, fonte de stress e desperdício. E era ao som rouco do acordeão que essa corrida se desenrolava, numa das muitas ruas criteriosamente preparadas para receber todos aqueles participantes na maratona de Natal. Sem blocos nem vozes de partida, todos se acotovelavam por um lugar naquela correria. E o cigano, à parte de toda a agitação, continuava a tocar as suas melodias tristes, de olhos fechados, elevado a um estado de alienação quase patológico.
A tarde estava no fim, embora sem que isso afectasse minimamente o movimento daquela rua. Apenas o cigano, cujos dedos começavam a ficar enregelados com o frio nocturno, com um semblante amargo sulcado na sua expressão pelo tempo e pela sua dura vivência e transportando o acordeão arrumado debaixo do braço direito, partia com nada mais do que quando chegara. Só agora, e dificilmente, devido à luz difusa que resulta da mistura da iluminação artificial com os derradeiros salpicos luminosos que o Sol derrama no ocaso, podia ver-se o seu olhar intenso e austero varrendo a rua com um desprezo inconcusso mas sereno, quase piedoso. E a tonalidade viva dos seus olhos, um castanho magnífico de brilho desigual, atribuía a esse olhar traços de misticismo e metafísica, e conferia um carácter único à sua fisionomia.
A correria prosseguia, e só o cigano caminhava de verdade, com a tranquilidade de quem não precisa de correr por não ter nada por que fazê-lo. No entanto, essa tranquilidade não era totalmente sincera; havia na retaguarda algum esforço para reprimir aquilo que poderia atormentá-la. E enquanto a rua se fazia encher e vazar de gente apressada, sem tempo sequer para olhá-la com olhos indiferentes, o cigano prestava atenção aos pormenores ínfimos de cada recanto mal iluminado, talvez na esperança de encontrar resposta às suas profundas interrogações, essas sombras teimosas na sua mente hiperactiva que precisavam de ser enxotadas ou confinadas a um cofre sem chave. Na verdade, podia dizer-se que não conhecia verdadeira tranquilidade desde o dia em que conhecera o seu filho.

sexta-feira, março 21, 2008

Fuga.

Um copo vazio na mesa
E uma garrafa no chão
Perdido na incerteza
De ter a vida na mão

Mais um cigarro apagado
Num cinzeiro frio e escuro
Mais um gesto improvisado
P'ra fugir ao meu futuro

De caneta presa aos dedos
E de cabelo apanhado
Fujo agora dos meus medos
P'ra não fugir do passado

E nesta fuga parada
Apenas por companhia
Tenho a página riscada
Campo de melancolia

25/09/2007
20:44

quinta-feira, março 20, 2008

A Prostituição do Dom.

Elevam-se as almas num vendaval de sombras,
Vividas vidas num tempo recorrente,
E as estrelas interrompem o fulgor dos seus lábios
Para na sua morada acolherem o sossobrar de um Quixote de remendos.
Lilás e cinzento,
Agridoce,
Solarenga vissicitude de morder os calcanhares à Grande Roda,
Enquanto por ela nos deixamos prender e arrastar e esquartejar e perecer…
A vida em trilogias,
Marte nos meus devaneios,
Plutão desolado nos olhos,
E a monarca da noite a entreter-me os sonhos.
Texturas descosidas da inocência,
Hidratos de carbono nos intervalos,
Momentos abrasivos, Ursa Maior…
O meu vôo é o do cisne,
Deneb a minha consciência,
E a lira dos meus dedos mais parece uma guilhotina,
Carrasco de todos os males,
Penhor de todos os bens.

Quando abalei, de manhã, o sol era eterno.
Agora, findo o dia, chegada a hora, à beira do teu
Precipício
(Abismo, tintura, fera…),
A tua face tem menos brilho,
Mas o teu calor é mais brando,
Tépido baluarte do Império do Vento.
Deixa-me subir àquela árvore,
Colher um dos seus rubros frutos,
Mordê-lo,
Saboreá-lo,
Mastigá-lo,
Engoli-lo…

Deves-me a vida,
Assim como eu ta devo…

20/03/2008
16:45

domingo, março 09, 2008

Tabuleiro.

A vida joga-se num tabuleiro,
Dados ao vento da Fortuna,
Peões que demandam contra o Hades,
E a carta infausta das Tormentas nas mãos cálidas de uma Musa.
Rolam-se números fortuitos que se despem de sentido,
E avança-se para nova catacumba,
Deambulando sem jeito a masmorra do Eterno.
Recua-se,
Joga-se o mundo às avessas,
Constrói-se a Torre de Marfim,
E patrocinam-se as Espadas e os Ouros.

O tabuleiro arrumado,
Peças deixadas num qualquer vácuo,
Uma vã glória no triunfo,
Mesma a vã desgraça de ser vencido,
Um bloco de notas sem dono,
E todas as transacções desmaterializadas.

Joga-se a vida,
Mas não a morte…
A morte, essa vive-se.

08/03/2008
5:16

terça-feira, março 04, 2008

Distopia.

Não sou pescador de sonhos nem caçador de fantasmas,
Mas sob o alvo júbilo de um céu estrelado,
Como eles sou pequeno.
Devia ser como dantes, noites sem máscara,
Em que deambulavam fadas e elfos por trilhos familiares;
Noite escura, noite encantada, noite brilhante na sua submissão…
Aposta-se a vida num delírio que resvala,
Joga-se a própria sede com os habitantes cautos da aurora,
Ensina-se a vitória e a derrota,
E percebe-se que a vida é sibilante.

Torturo a minha infância com mecanismos legalizados,
Legitimados pela minha cobardia,
E perco a derradeira oportunidade de dançar,
Ao luar meigo de Outono,
Com os pássaros que abalam para o horizonte,
Livres de culpas.
Ululam em chamamento as minhas penas,
Mas já vos disse:
Nem pesco sonhos, bem caço fantasmas;
Sou apenas um murmúrio que descansa sobre uma pedra de saudade,
À espera da minha Arca da Aliança.

03/03/2008
21:49

sábado, março 01, 2008

Serás tu..?

A senda que se abriu
Entre o ontem e o depois,
Jamais os olhos porosos do bolor
E as avaras mãos do esquecimento
Tocarão.
Sempre nas trevas há sementes de loucura,
E luz aos flocos como neve do Olimpo.

Viram-se as páginas quase soltas,
Algumas amarelas de vergonha,
Mas nenhuma alvura como a capitular de um reencontro
Desmascarado.

Os deuses dormem sonos inquietos,
Em velhos lençóis de tecido rarefeito...
Eu durmo enleado no secretismo escarlate
De desfolhadas,
E sonho como o livro nunca escrito,
Mas sonhado,
E que vou decorando a cada travessia descuidada do ocaso.

Serás tu a minha saga,
Odisseia do meu olhar,
Epopeia do delirante precipício
Em que tropeço de propósito para cair
Na minha Atlântida.

29/02/2008
22:10