sábado, março 22, 2008

Prólogo para um romance com janelas...

Os acordes voavam com a fria brisa de Inverno, enternecendo, quase imperceptíveis, a multidão deambulante, absorta nas suas ocupações, alheia ao cigano que, encostado à parede amarela de um edifício visivelmente velho, os arrancava fugazes de um degradado acordeão. De olhos fechados, indumentária simples e até mesmo parca para a altura do ano, o cigano tocava com a ligeireza que o cansaço e a disposição lhe permitiam, enquanto à sua frente se desenrolava o frenesim desmesurado típico de uma rua de comércio ao Sábado à tarde. Um casal elegante entrava num pronto-a-vestir de um franchising multinacional e, enquanto a senhora da peixaria conversava calorosamente com o dono do talho, um rapaz esguio contemplava a montra exageradamente enfeitada de uma loja de instrumentos musicais, cujos olhos se tinham embasbacado com a réplica fiel de um Stradivarius fabricada artesanalmente por um desses raros mestres da manufactura tradicional.
Marcando o ritmo melancólico daquela rua mercantil, o cigano ia interpretando, uma por uma, músicas de essência marcadamente popular, misturando a natureza do fado com a simplicidade de harmonia jogral, através de um extenso reportório que mais parecia não ter fim. Cada vez que terminava uma música, e sempre com os olhos fechados, parecia fazer uma vénia a alguém que, supostamente, estaria a aplaudi-lo. Depois, ao longo de uns breves instantes sombrios, tocava cinco ou seis notas desencontradas, para logo dar início a uma nova música, que iria mostrar-se ao ouvinte atento elucidativa dessas notas prévias aparentemente desenquadradas e desarmoniosas. O ritmo, esse era sempre o mesmo.
Ao contrário de outros, que tocavam nas ruas com o intuito de pedir esmola, o cigano pretendia apenas enlevar os espíritos das pessoas que, preocupadas com os seus afazeres e com a vida desenfreada que levavam, passavam pela rua em que tocava. Não pedia qualquer remuneração, embora por vezes alguém bem intencionado fizesse voar uma moeda até aos pés do cigano, que acabava por apanhá-la e guardá-la. Não era, de modo algum, como os outros. Na sua ideia, a música não era um bem passível de ser comercializada. A música seria talvez o mais universal dos mistérios, e nunca uma verdadeira criação humana sujeitável a direitos de autor. Se era música, então não constituía pertença de ninguém, nem poderia nunca ser-lhe atribuída compositor ou intérprete. A música era, como ele, vagabunda, humilde, incompreendida, maltratada e indevidamente explorada pela sociedade.
Naquele Sábado vespertino, em que o clima tenso de humidade ameaçava culminar em portentosa trovoada, vivia-se o último estertor consumista característico do carácter materialista convenientemente associado à quadra natalícia. Aquilo que deveria ser um tempo de paz, harmonia e amor fora irreversivelmente transformado numa corrida extenuante de consumo exagerado, fonte de stress e desperdício. E era ao som rouco do acordeão que essa corrida se desenrolava, numa das muitas ruas criteriosamente preparadas para receber todos aqueles participantes na maratona de Natal. Sem blocos nem vozes de partida, todos se acotovelavam por um lugar naquela correria. E o cigano, à parte de toda a agitação, continuava a tocar as suas melodias tristes, de olhos fechados, elevado a um estado de alienação quase patológico.
A tarde estava no fim, embora sem que isso afectasse minimamente o movimento daquela rua. Apenas o cigano, cujos dedos começavam a ficar enregelados com o frio nocturno, com um semblante amargo sulcado na sua expressão pelo tempo e pela sua dura vivência e transportando o acordeão arrumado debaixo do braço direito, partia com nada mais do que quando chegara. Só agora, e dificilmente, devido à luz difusa que resulta da mistura da iluminação artificial com os derradeiros salpicos luminosos que o Sol derrama no ocaso, podia ver-se o seu olhar intenso e austero varrendo a rua com um desprezo inconcusso mas sereno, quase piedoso. E a tonalidade viva dos seus olhos, um castanho magnífico de brilho desigual, atribuía a esse olhar traços de misticismo e metafísica, e conferia um carácter único à sua fisionomia.
A correria prosseguia, e só o cigano caminhava de verdade, com a tranquilidade de quem não precisa de correr por não ter nada por que fazê-lo. No entanto, essa tranquilidade não era totalmente sincera; havia na retaguarda algum esforço para reprimir aquilo que poderia atormentá-la. E enquanto a rua se fazia encher e vazar de gente apressada, sem tempo sequer para olhá-la com olhos indiferentes, o cigano prestava atenção aos pormenores ínfimos de cada recanto mal iluminado, talvez na esperança de encontrar resposta às suas profundas interrogações, essas sombras teimosas na sua mente hiperactiva que precisavam de ser enxotadas ou confinadas a um cofre sem chave. Na verdade, podia dizer-se que não conhecia verdadeira tranquilidade desde o dia em que conhecera o seu filho.

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