segunda-feira, junho 28, 2010

Janelas.

Era uma vez duas janelas vizinhas, muito juntinhas, num edifício antigo de uma velha cidade cheia de gente nova. Essas duas janelas foram não uma mas inúmeras vezes visitadas por uma quantidade incalculável de pessoas: gente que gostava de acordar e prontamente assomar-se àquela janela virada a oriente; gente que se entretinha a espreitar para a varanda do andar de baixo e ficar a saber do marido que espancava a mulher, dos planos suicidas do jovem estudante de Direito, ou da clientela do insuspeitável dealer que tinha uma dispensa recheada de cannabis; gente que precisava de apanhar ar depois de algumas horas intensivas de trabalho; gente que passava os dias simplesmente a contemplar a paisagem e as pessoas que passavam; ou mesmo gente que queria apenas fumar um cigarro ao ar livre sem ter que descer cinco andares até à rua povoada de pombos e respectivos dejectos. Alguém como o Damião.
O Damião era um rapaz que, como tantos outros que já haviam passado por aquela casa, não tinha dinheiro para um sítio melhor. A dita casa possuía apenas três divisões, sendo duas delas uma cozinha minúscula e uma casa de banho ainda mais pequena e a terceira aquilo a que Damião chamava “os seus aposentos”. Era nestes aposentos que Damião dormia, comia, estudava, ouvia música, jogava computador… Espera! Falta qualquer coisa. Ah, claro. Era também nestes aposentos que Damião imaginava perder a sua virgindade com a rapariga dos seus sonhos, nada mais, nada menos do que a rapariga da janela vizinha.
Era costume Damião fumar os seus cigarros debruçado na única janela da casa, e não raras vezes o fazia propositadamente quando Nadine, a rapariga, vinha pentear-se para a janela ou apenas olhar para as nuvens. Sim, porque as nuvens eram a paixão de Nadine, estudante de Meteorologia e fotógrafa amadora. Todos os dias, Damião sabia que, àquela hora, Nadine estaria a perscrutar o céu em busca de um detalhe digno de registo fotográfico, e era nessa altura que Damião acendia o cigarro e se sentava no parapeito. Assim, ao longo de semanas a fio, Damião foi conhecendo pormenorizadamente a pessoa que vivia do lado de dentro da janela vizinha e as suas rotinas. A parte mais bizarra é que, ao longo de todo esse tempo, nunca uma palavra foi dirigida entre os dois, nem sequer um simples “bom dia”. A Damião, tal aberração não passava despercebida, mas a sua incapacidade de tomar iniciativas como aquela era tão grande como pequena era a sua auto-estima, acabando por depositar todas as esperanças de, um dia, o impasse se resolver nas mãos da rapariga.
Era frequente Damião escutar as conversas que Nadine tinha ao telemóvel; ou ouvi-la a trautear uma canção enquanto olhava o horizonte; ou sentir-lhe o suspiro como se no seu próprio peito nascesse, arrepiando-se com a sua suavidade. Apesar de tudo isto, era incapaz de entabular uma conversa ou de dizer o que quer que fosse. O mais perto que estivera disso fora num dia quente de verão em que, como de costume, fumava o seu cigarro à janela. Nesse dia, a rapariga não estava em casa, mas o vício não permitia que Damião fumasse apenas aquando da presença da vizinha, pelo que lá estava ele, de cigarro preso entre os dedos e o olhar vago perdido nos confins da cidade que se avistava. Em intervalos mais ou menos regulares, sorvia o fumo por entre os lábios e expirava-o demoradamente, apreciando o complexo e dúbio prazer em que se deleitava. Naquele dia, como em tantos outros antes desse, Damião terminou o cigarro e lançou a beata pela janela, não sem antes averiguar se estaria alguém a passar que pudesse ser atingida pelo incómodo projéctil. Mas quis o destino que a coisa não ficasse por ali: levantou-se subitamente uma brisa que, perante a forma leve e propensa à resistência do ar da beata, a atrasou e desviou na sua queda, ao mesmo tempo que Nadine se aproximava a correr da porta do prédio. Damião não teve tempo de entrar em pânico antes de a beata pousar rudemente no cabelo da moça, o que resultou em dois gritos bastante distintos: um grito sonoro e agudo proveniente da rapariga sobressaltada; e um grito mudo e ensaiado repetidamente na mente do rapaz que, em resposta ao primeiro grito, teve imenso tempo para atravessar vários níveis de pânico até conseguir tornar a espreitar pela janela após ter-se acobardado e escondido no seguimento da desafortunada sequência de eventos. Viu apenas a sua beata deixada no chão, pisada e suja, e emaranhou-se num turbilhão de pensamentos interligados: “Será que ela me viu? Mesmo que não me tenha visto, deve imaginar que fui eu. Mas os vizinhos de baixo também fumam, podiam ter sido eles. Eles não se teriam escondido como eu. Será que devia ir pedir-lhe desculpa? O mais certo é ela estar extremamente irritada. É melhor deixar isso para amanhã. Mas como é que eu lhe explico que demorei um dia a decidir ir pedir-lhe desculpa? Ainda vai ficar mais chateada. Oh, meu deus… O que é que eu faço? Já sei! Vou fumar outro cigarro para a janela. Ela não vai pensar que fui eu se me vir a fumar agora, e eu posso perguntar-lhe sobre o grito e disfarçar.” No final, o plano correu impecavelmente, excepto na parte em que Damião perguntaria pelo grito à rapariga: essa parte nunca aconteceu, muito menos depois de Damião observar o olhar furioso da rapariga enquanto ela secava o cabelo à janela.
A questão deve estar a tomar forma nas vossas cabeças há já algum tempo: “Então e a moça também não fala?” Fica, pois, registado que Nadine falava gente de todas as idades e tamanhos e feitios, já para não mencionar que, por volta dos seus treze tenros anos, falava também com o Pilecas, o cãozinho de peluche que trazia para todo o lado. Não querendo trazer à baila assuntos mais pesarosos, deixo apenas um breve relato de como o Pilecas deixou de fazer companhia à sua insaciável dona. Foi um dia frio e invernoso; chovia granizo lá fora e Nadine estava sentada à lareira com o seu fiel companheiro. Contava-lhe as histórias que vira na televisão de manhã cedo ou que a avó lhe tinha lido para adormecer na noite anterior. Entretida com o relato de como o belo e audacioso príncipe lutara com bravura contra o enorme e temível dragão que guardava a torre onde a princesa esperava havia vários anos num cativeiro forçado e inverosímil mas que a Nadine se afigurava inevitável para que houvesse um conflito romântico na história; entretida no seu balanço perigosamente próximo das chamas, em que simulava o príncipe a brandir a espada na direcção do seu feroz oponente com o próprio Pilecas a fazer de dragão, nem conseguiu pestanejar quando empurrou o pobre bicho mesmo para o meio do fogo, tendo permanecido estática e silenciosa durante todo o tempo em que os restos mortais do seu cão de peluche crepitavam e se engelhavam e se transformavam em cinza negra. Não houve cerimónia fúnebre; apenas uma menina que via desaparecer o seu primeiro amigo e que, com isso, crescia.
Mas se Nadine falava e com os mais variados interlocutores, por que não falara ela com o vizinho uma única vez? Bem, tendo particularizado a pergunta, pode agora adiantar-se as mais incríveis hipóteses e conjecturas, mas a verdade é que todas as suspeitas são infundadas e nunca houve razão alguma para que nunca o tivesse sequer cumprimentado. São simplesmente coisas que acontecem e, para deixar uma imagem mais credível do que, no fundo, é uma mera coincidência, pode até ser referido que, nos tempos que correm, a coisa mais natural das massas urbanas é nem sequer conhecer os respectivos vizinhos, quanto mais falar com eles. Nadine e Damião não eram excepção. Aliás, voltando atrás no que foi uma observação precipitada, tudo entre os dois era excepção à excepção de não se falarem: um vinha à janela como se fosse esgueirar-se pela janela vizinha; o outro ia à janela para dali levantar voo rumo ao infinito. Podia dizer-se que estavam em oposição de fase, um oscilando sempre ao contrário do outro, numa dança muito coordenada mas completamente cega.
Depois de tanto embalo e tanta contextualização, conhecendo agora um pouco dos protagonistas deste conto, passo a relatar talvez o mais breve e incompreensível romance que alguma vez houve entre duas pessoas. Tudo aconteceu num dia imprevisível de Outono, daqueles que amanhecem solarengos, amadurecem tempestuosos e tornam a mostrar-se simpáticos ao anoitecer. Tal como descrito, o dia apresentou-se limpo e promissor quando Damião acordou de manhã; já a Nadine, a ausência total de nuvens entristecia-a. Assim, Damião veio fumar o seu cigarro à janela, na esperança de ao lado encontrar, também à janela, a mesma rapariga com quem sonhara nessa noite, ao mesmo tempo que Nadine descia as escadas do prédio. Não demorou que Damião visse a sua musa a sair pela porta da rua, seguindo, depois, rua abaixo no seu passo célere mas muito delicado. Vendo afastar-se a moça, terminou o cigarro e decidiu-se, ele mesmo, sair de casa e aproveitar o efémero sol que aquela tão inconstante estação lhe permitia, não se esquecendo de levar consigo um guarda-chuva como ditava a mais humana prudência.
Quase nem seria preciso explicar que, pouco tempo depois de o rapaz sair de casa, um vento frio começou a soprar de Norte, arrastando consigo nuvens que haviam estado a beber sofregamente dos rios que permeavam a serra; e que essas nuvens não tardaram a alcançar a abóbada da cidade, derramando a sua sombra austera sobre as ruas; e que o temporal que, de seguida, se abateu sobre os desgraçados dos transeuntes foi tal que as ruas ficaram desertas no espaço de um minuto. O que é, efectivamente, ponto fulcral nesta exposição, é que Damião era um homem prevenido, mas prevenido em condições. Não era um qualquer guarda-chuva que Damião empunhava enquanto caminhava, mas sim um verdadeiro telhado sobre a sua cabeça, bem rígido para resistir ao vento e espaçoso o suficiente para que até a mochila que trazia às costas fosse completamente resguardada de qualquer pingo de chuva, e nem mesmo o vendaval que fustigava as copas das árvores como se as quisesse despir de vez das parcas folhas amarelecidas que ainda ostentavam era adversário ao nível daquela maravilha do engenho humano. Em matéria de guarda-chuvas, aquele era um todo-o-terreno.
É, então, ver o rapaz a descer a avenida com o seu guarda-chuva à prova de todos os salpicos em simultâneo com a rapariga que a sobe apressada por não ter vindo precavida e que vinha já tão encharcada que quase não foi reconhecida quando se cruzaram. Faço questão de frisar o “quase”, já que poucos metros foram caminhados antes de ambos estacarem repentinamente o passo, um na dentro dos muros da sua fortaleza e outro abandonado à mercê dos ventos. Também não foi longa a hesitação antes de se virarem, pela primeira vez em completa e total sintonia, para que cada um fosse capaz de encontrar o olhar do outro e sentir-lhe a alma na sua. O momento foi cheio de tensão, tanta que penso ser apropriada uma descrição exacta e minuciosa da ocorrência, pelo que passo a fazê-lo num parágrafo exclusivo.
Damião foi o primeiro a encontrar os olhos de Nadine, que os tinha franzidos numa tentativa complicada de retribuir o olhar. Foram três os segundos que passaram, contados com toda a precisão na cabeça de Damião, e durante esses três segundos, houve tempo para que pela mesma cabeça passasse a seguinte ordem de pensamentos: “É ela! E agora? O que é que eu faço? Vou até lá? Será que ela me reconheceu? Será que ela me conhece, sequer? Ah! Ela está a olhar... a olhar para mim?” Passemos à cabeça da rapariga, que também ela fervilhava de pensamentos com a carga de água que lhe caía em cima, pensamentos que, durante os três segundos seguintes, foram: “Eu conheço esta cara. Hum… Ah, é o vizinho. Se calhar, devia ir lá cumprimentá-lo, mas está a chover tanto… Será que fica mal seguir caminho?” A partir deste ponto gerou-se a verdadeira hesitação da ocasião, hesitação essa que demorou uns largos quinze ou vinte segundos durante os quais os olhares nunca uma vez se desviaram. Entre os olhos de ambos estabeleceu-se uma espécie de conexão, um qualquer fluxo empático que ambos reconheceram e digeriram. Para Nadine, foi como se os seus espíritos de fundissem; como se os próprios corpos se entrelaçassem; como se as janelas das suas casas tivessem sido recolocadas frente a frente a meros milímetros de distância. Para Damião, foi como se lhe tivessem aberto um alçapão sob os seus pés; foi como se deixasse mesmo de haver chão; foi como se saísse pela sua janela, tentasse entrar pela janela vizinha, mas fosse infeliz na manobra e se precipitasse no abismo sem fundo. A razão para que tivessem tido tão díspares sensações proveio das armadilhas próprias de cada uma das almas: uma que admirava a presa de longe sabendo que nunca viria a caçá-la e outra que sonhava continuamente com um príncipe que subisse à torre e a resgatasse do seu exílio. Cada um pensou ver o outro, mas nunca além de si próprio foi capaz de enxergar, atolando-se no próprio lodo e vivendo os luares das suas mesmas almas.
Tanta tensão acumulada e a natureza volúvel da estação acabaram por fabricar automaticamente o desfecho apropriado. A chuva parou e o sol esgueirou dois ou três raios por entre a espessa camada nebulosa, cortando de rompante a comunicação que se tinha estabelecido. Nadine e Damião tornaram a ver apenas olhos e não salas cheias de espelhos da alma. Nos olhos de Nadine lia-se um “vem aqui” e nos de Damião um “tenho que ir”. Assim, enquanto a rapariga desviava pela primeira vez o olhar para tentar resgatar um vislumbre dos irreverentes raios de sol que se assomavam do céu escuro, Damião sacudiu o guarda-chuva, fechou-o e voltou-se. Acendeu um cigarro e começou a caminhar. Da rapariga, nada mais se soube. Enquanto caminhava, Damião pensou: “Que imbecil do caraças! Que vergonha! Vou ter que mudar de casa outra vez…”

sábado, junho 05, 2010

Femme fatale.

Tem o olhar preso nas palavras por dizer,
Aquelas que o seu suspiro transpira
Nas entrelinhas do romance;
Tem a vontade dos temporais e a força das ondas
No beijo,
Lábios que imergem no espectro dos astros,
Vadios.
Tem a pulsação da infância e o semblante da idade,
A beleza do terror cristalizada no rosto,
Única e genuína femme fatale no seio da história.
Tem, nos dedos, a ebulição da treva,
O toque gélido da morte que se consome em insinuações carnais,
Fogo e gelo, o cocktail das deusas.


Atenção:
Pode conter vestígios de frutos secos de casca dura.


Traz as palavras suspensas no olhar que suspira
Romances nas entrelinhas;
O seu beijo é um temporal de vontades,
De astros que iluminam através de lábios vadios.
Tem o semblante da infância e a beleza da idade,
E a pulsação da história cristalizada no seio do rosto;
A morte nos dedos gélidos, na ebulição da carne,
Um néctar de água e fogo que se consome em insinuações divinas.
Femme fatale.


Cuidado:
Contém uma fonte de fenilalanina.


Tem o olhar preso na infância por dizer
E o suspiro amarrado às entrelinhas da idade,
A força das ondas nos lábios gélidos
E o fogo cristalizado no terror dos dedos.
É um astro vadio, palavras que transpiram da ebulição da história.
É a femme fatale disfarçada de romance
E só a vontade das trevas se insinua quando o temporal se dissipa.
Quero todo o espectro do seu beijo,
E não apenas um cadáver do divino.

Mas cuidado... atenção...
Não fumar ou foguear: perigo de morte;
Guardar no frigorífico após aberto;
Em caso de ingestão, consulte o seu médico ou farmacêutico.


Fogo e gelo...

05/06/2010
17:27

quarta-feira, junho 02, 2010

Ser ardente em turva chaga.

Levo a noite nos ouvidos,
Fera tombada na arena,
Mais do que grande, pequena
Entre os demais alaridos;
São silêncios repetidos
Das elegias que sonho,
Um brilho inerte, medonho,
De sensações peregrinas
Escondidas entre as esquinas
De um luar que, assim, transponho.

Levo o silêncio nas mãos
Fechadas contra a saudade,
Madeixas de intimidade
Soltas ao vento dos nãos.
Em pensamentos irmãos
Componho a lírica vaga
Que me acompanha e indaga
Pela noite que carrego,
Sombra de mim, do meu ego
Que me invade e que me alaga.

De um luar que, assim, transponho,
Que me invade e que me alaga;
De uma noite inteira, um sonho,
Ser ardente em turva chaga.

01/06/2010