segunda-feira, dezembro 06, 2010

Onirocrisia pelo Onirismo.

Quando, de olhos fechados, acordo nos meus sonhos,
Sei-me vivo.
Depois, os olhos abrem-se.
Acordo dos meus sonhos e a dúvida instala-se,
Como uma diva,
Nos luxuosos aposentos que erigiu na minha mente.

É depois de abrir os olhos que o verdadeiro sonho começa,
E tu só queres fechá-los de novo...
Eu
Só quero fechá-los...

Por que não me encontro sem ser às escuras?
Por que há-de a luz encandear-me de sonhos que não são os meus?
Serei eu um ser das trevas solto na chama do mundo,
Condenado a buscar, na escuridão,
A sombra que me embalava quando,
Há muito tempo,
Me construía no ventre cansado de um deus indemovível,
Em interminável contemplação da variedade de espécies,
Os rostos da sua presumida completude
E as armadilhas iminentes do ciclo fechado com que se realimenta de propósito?

E quando, por fim, torno a fechar os olhos,
Mostro-me a mim mesmo no espelho deformado do particular,
Enquanto ao reflexo se misturam, por vontade própria,
Fragmentos do sortido da imponderabilidade
A que chamamos vida.
No fundo, acordo apenas para tornar a adormecer,
Reiterando a alma e o cosmos
À medida do meu quinhão de vivência,
Do que experimento da extensão indizível do ser.

06/12/2010
16:31

domingo, dezembro 05, 2010

Cronografia.

Em cada minuto
A avareza do tempo faz-se notar
Sob a forma de incómodos zumbidos
Que se assomam do relógio circadiano,
Dessas varandas arruinadas das rotinas,
O som primordial repetido sem saliva
Vezes que, a conta, não se permitem,
Banal tornado, mas não menos áspero,
Pelo timbre inquieto de um grito
Paralelo à alma e, ao mesmo tempo,
Paralelo ao tempo que embala o corpo
Na dança dos dias, embriagado
Do mito de acordar.

02/12/2010
8:11

sábado, novembro 13, 2010

Biografia do Sonho.

Rosa perdida
No branco inverno
Do meu caderno
Vadio
Folha caída
Atribulada
Amarrotada
Ao frio

Pétala solta
Na ventania
Que rasga o dia
Ao meio
Sombra revolta
De um ser bravio
Que de vazio
É cheio

Vozes em coro
Entoam hinos
São pequeninos
Os sons
Olhos de choro
Seguem de perto
O rumo incerto
Dos tons

Fonte da vida
Quero beber-te
E conhecer-te
A dor
A dor despida
Que fere a gente
Constantemente
Amor

05/11/2010
2:37

quarta-feira, novembro 10, 2010

Inventário.

Quero rasgar em segredo
O tecido das vontades,
A fina seda do medo,
A lã das minhas verdades.

Quero inventar a cidade
Como invento os meus lamentos;
Só não invento a saudade:
Que o façam chuvas e ventos.

Quero perder-me contigo
No compasso da descrença,
Nos acasos do perigo,
Nas certezas da presença.

Quero achar-me diluído
Na poesia do sono:
Sonhar o tempo perdido,
Roubar o tempo sem dono.

Quero-me, assim, paralelo
Ao meu amor singular,
Que ao chão deste meu castelo
Sou já perpendicular.

22/10/2010
19:58

sábado, novembro 06, 2010

Alquimista.

Quis inventar o perfume dos deuses.
Lembrei-me de ti... à noite...
Isolei-te a essência e destilei-a,
Fraccionada em pequenos tragos da paixão
Que me guia a mão trémula
Na épica química do teu cheiro preso
À almofada.

A reacção foi efusiva:
Houve corrosão das placas de Petri
Em que te cristalizava a alma;
Novelos de fumo púrpura humedeceram-me os olhos
E sufocaram-me em soluços.
A violência do acto revelou-se
No resíduo turvo que do teu sopro restou.

Relatório experimental:
Fracasso!
O espírito rejeita extracção.

(Nota: manter o lume brando da próxima vez...)

04/11/2010
20:04

sexta-feira, novembro 05, 2010

Essay no. 1

A faceless man stares at the ruins of his own soul, shattered around a timeless vacuum.
"How can you live for half a century and feel like you've never lived a day at all?" That's the only question he could think about.
And then he saw a light.
The final light that could mean a start of an eternal memory. Maybe we can always think... What's next?
The clueless mind wanders and wonders... the world's wonders all in a glimpse of the eye that shatters the world with its empty gaze.
Why don't we manage to see the greatness of this life in every single thing we do? Why don't we manage to see the wonders of things before we lose them in most of the cases?
Because if we would, we could not continue to search for the happiness.
Happiness is the holy moment and the main god of mankind.
Let us, then, praise Him in all His glory and magnificence; let us embrace His gifts and affection; for only those who seek the truth are bound to find His bliss.

30/10/2010


(Com a estimada colaboração de Vanessa Marques, Chiara Ramberti e Catrina Capraro.)

Amor à margem.

É da margem dos conceitos que provém
Este amor que, em dimensão, tanto ultrapassa
Os limites do temor e da desgraça
E as fronteiras da virtude que contém;

De aparência, assume o que lhe convém
De tal forma que o próprio tempo estilhaça:
É um véu feito de sonhos que me abraça
Num convite para abraçar outro alguém.

É dos confins da memória que me espreita,
Dessa dimensão profunda que me habita
E que o peito tanto estica como estreita;

Como a deusa que os seus súbditos visita
Reduzindo a sua condição perfeita
À ilusão tosca de uma alma aflita.

24/10/2010
17:53

sexta-feira, outubro 22, 2010

Fresco.

Cristalizar a saudade
No âmbar do teu olhar:
Tapar a boca à verdade
Por te não poder tocar.



I
Pinto na alma despida
O sacrilégio da espera,
Este silêncio que impera
No trono da minha vida;
Com a força destemida
De quem reconta a verdade,
Pincelo a minha vontade,
Desenho, enfim, sem saber,
O capricho de poder
Cristalizar a saudade.

II
Tiara de flores te ponho
Sobre os cabelos na tela
E agito, na aguarela,
A transparência do sonho;
Enquanto arde, medonho,
O instante de recordar,
Invisto todo o vagar
Numa ousada insensatez:
Parar o tempo de vez
No âmbar do teu olhar.

III
Sou um rochedo açoitado
Pelo temporal dos dias
Que, nas suas maresias,
Cumprem, da noite, o reinado;
Sou um louco castigado
Na fúria da tempestade,
Na fúria que, assim, me invade
O espírito em vendaval
Que só deseja, afinal,
Tapar a boca à verdade.

IV
Tal a ânsia é de esconder
De mim mesmo este sufoco
Que, de enganar, ando louco,
A razão do meu viver;
Pinto à sede de beber
Dessa nascente sem par,
Boca que quero beijar
Mesmo na ausência de boca,
Alma que a minha põe louca
Por te não poder tocar.

22/10/2010
5:49

segunda-feira, outubro 18, 2010

Transdutor.

Sorvo a matéria insípida da linguagem
Por entre os lábios ressequidos;
Pasmo perante a vocabular paisagem
Que transborda entre os séculos repetidos;
Rezo a semântica em constante aprendizagem,
Recito os versículos adormecidos;
E após atingido o contorno da imagem,
Lavo o rosto aos meus dedos vencidos.

Depois recomeço outra epopeia:
A palavra na mão que golpeia,
E o golpe errante na mão que se demora
É de dentro para fora.

Reciclo o material plástico das imagens;
Reformo a prisão dos signos foscos;
Entrelaço cordas vocais, pensamentos... as mais paragens
Que dão guarida aos meus sentimentos toscos.
Elevo estes vislumbres de sentido
Ao expoente das parábolas incorpóreas:
Cometo herética convergência, divertido,
Entre os sonhos reais e as falsas memórias.

18/10/2010
13:39

sábado, outubro 02, 2010

Agora!

"Nada", disse-me o tempo entre dentes,
Do alto da sua arrogância, das profundezas do seu contínuo de incertezas,
Conhecedor das ciladas todas do colar das eras,
Pérolas pálidas presas por fio de sonho.

"Ninguém", ousou gritar-me o vento da história,
A radiação cósmica de fundo que embala os destinos
Com o seu trecho abjecto da melodia dos presentes.
Tive frio.

"Longe", exclamou a memória em chamas,
O peito inflamado com as dores do mundo,
As chagas purulentas da gosma pútrida de todas as partículas em rota de colisão.
Cenário desolado, desoladora esperança,
A crença inconformada, desinteressada, no sistema de reciclagem dos deuses.

"Nunca", murmurou uma sombra esmorecida, caquéctica,
Um espectro policromático da fusão nuclear dos desejos,
A orbe infecta do capricho das vontades, manchada de sangue, banhada a ouro.
Fui profanado pela excentricidade das orbitais moleculares
Tecidas pelos olhares inflexíveis da Mãe,
Vendidas a retalho pelo Pai capitalista,
E pela primeira vez senti a humidade nos pulmões,
Uma vida insuflada, bombeada a alta pressão,
Directamente no tumor que, assim, deixava de ser.


"Agora!"

02/10/2010
18:51

terça-feira, setembro 28, 2010

O Cavalgar das Bestas.

Levo comigo o precipício da memória
De que me abeiro para olhar o meu reflexo
Mas vejo apenas uma sombra aleatória
Deste boneco articulado e desconexo.

Estico o baraço que me verga ao titereiro
Co'a força hercúlea das palavras mercenárias
Que andam na boca de quem se sabe carneiro
E vai matando a fome em direcções contrárias.

Desfaz-se um nó, mas estes nós são carne humana
Que, em sendo aberta, logo a fenda cicatriza:
Assim, se acaso um nó desfeito é p'la catana
Logo outros dois hábil polícia improvisa.

É, pois, ingrata esta emancipação da besta
Do jugo eterno das ilusões do zagal;
Com seu cajado, o gado guia e admoesta
Nas catacumbas do pecado original.

28/09/2010
17:39

segunda-feira, setembro 27, 2010

Cirurgia Expiatória.

Falta-me o ar nesta sala
Que cheia é de ilusões;
Oiço a voz, voz que me embala,
Que ora canta, ora me fala
Do bulício das paixões.

Estremece o crânio cansado
Dos suspiros que me vestem
Do luto negro e pesado,
Da marca do condenado,
Sem mais perdões que o contestem.

Mata-me a sede à fadiga
De ser sempre testemunha
De um passado que mitiga
E que afasta a mão amiga,
Que me dói e me estremunha.

Dá-me a palavra "perdão"
Enquanto há tempo e vontade
De erguer de novo a razão,
De olhar nos olhos a mão
Que me castiga a idade.

27/09/2010
17:22

quarta-feira, setembro 08, 2010

Piloto Automático.

Há que ajustar a lente à medida do olho míope
Para que a debandada do horizonte seja contida:
Logo à partida, chegada.

Esticas os braços ocos da madrugada para amarfanhar o tempo,
Mas quebram-se as unhas sem que se enterrem na fibra da alma,
No núcleo líquido das horas libertinas,
No fogo fátuo da divinação que paira sobre os cadáveres como os abutres.
Lanças ao vento as vozes roucas da loucura,
As poucas que ainda te restam, as que não te foram roubadas,
Aquelas escassas sílabas que te expurgam do corpo o gosto insípido,
Da sensaboria dos dias que a gente fotocopia de noite
Para tomar, de manhãzinha, ao pequeno-almoço:
Suplemento pro-biótico, dietético, apocalíptico,
Com piloto automático e apoio técnico 24 horas por dia, 7 dias por semana,
Não vá a coisa dar para o torto,
Uma carruagem que descarrila e lá se quebra a faiança toda.
Que desperdício...

08/09/2010
12:17

domingo, julho 18, 2010

Indiscrição.

Poluo a paisagem íntima da tua boca
Com o aroma entristecido do cigarro,
Mas é a palavra mágica, mais do que pouca,
Ausente das mais guerreiras em que me amarro.

Dispo o teu sangue da veia aberta que derrama
Cáusticas preces ao altar dos redimidos:
Amo-te mais durante a noite, dentro da cama,
Sem distracções que me possuam os sentidos.

18/07/2010
01:06

segunda-feira, junho 28, 2010

Janelas.

Era uma vez duas janelas vizinhas, muito juntinhas, num edifício antigo de uma velha cidade cheia de gente nova. Essas duas janelas foram não uma mas inúmeras vezes visitadas por uma quantidade incalculável de pessoas: gente que gostava de acordar e prontamente assomar-se àquela janela virada a oriente; gente que se entretinha a espreitar para a varanda do andar de baixo e ficar a saber do marido que espancava a mulher, dos planos suicidas do jovem estudante de Direito, ou da clientela do insuspeitável dealer que tinha uma dispensa recheada de cannabis; gente que precisava de apanhar ar depois de algumas horas intensivas de trabalho; gente que passava os dias simplesmente a contemplar a paisagem e as pessoas que passavam; ou mesmo gente que queria apenas fumar um cigarro ao ar livre sem ter que descer cinco andares até à rua povoada de pombos e respectivos dejectos. Alguém como o Damião.
O Damião era um rapaz que, como tantos outros que já haviam passado por aquela casa, não tinha dinheiro para um sítio melhor. A dita casa possuía apenas três divisões, sendo duas delas uma cozinha minúscula e uma casa de banho ainda mais pequena e a terceira aquilo a que Damião chamava “os seus aposentos”. Era nestes aposentos que Damião dormia, comia, estudava, ouvia música, jogava computador… Espera! Falta qualquer coisa. Ah, claro. Era também nestes aposentos que Damião imaginava perder a sua virgindade com a rapariga dos seus sonhos, nada mais, nada menos do que a rapariga da janela vizinha.
Era costume Damião fumar os seus cigarros debruçado na única janela da casa, e não raras vezes o fazia propositadamente quando Nadine, a rapariga, vinha pentear-se para a janela ou apenas olhar para as nuvens. Sim, porque as nuvens eram a paixão de Nadine, estudante de Meteorologia e fotógrafa amadora. Todos os dias, Damião sabia que, àquela hora, Nadine estaria a perscrutar o céu em busca de um detalhe digno de registo fotográfico, e era nessa altura que Damião acendia o cigarro e se sentava no parapeito. Assim, ao longo de semanas a fio, Damião foi conhecendo pormenorizadamente a pessoa que vivia do lado de dentro da janela vizinha e as suas rotinas. A parte mais bizarra é que, ao longo de todo esse tempo, nunca uma palavra foi dirigida entre os dois, nem sequer um simples “bom dia”. A Damião, tal aberração não passava despercebida, mas a sua incapacidade de tomar iniciativas como aquela era tão grande como pequena era a sua auto-estima, acabando por depositar todas as esperanças de, um dia, o impasse se resolver nas mãos da rapariga.
Era frequente Damião escutar as conversas que Nadine tinha ao telemóvel; ou ouvi-la a trautear uma canção enquanto olhava o horizonte; ou sentir-lhe o suspiro como se no seu próprio peito nascesse, arrepiando-se com a sua suavidade. Apesar de tudo isto, era incapaz de entabular uma conversa ou de dizer o que quer que fosse. O mais perto que estivera disso fora num dia quente de verão em que, como de costume, fumava o seu cigarro à janela. Nesse dia, a rapariga não estava em casa, mas o vício não permitia que Damião fumasse apenas aquando da presença da vizinha, pelo que lá estava ele, de cigarro preso entre os dedos e o olhar vago perdido nos confins da cidade que se avistava. Em intervalos mais ou menos regulares, sorvia o fumo por entre os lábios e expirava-o demoradamente, apreciando o complexo e dúbio prazer em que se deleitava. Naquele dia, como em tantos outros antes desse, Damião terminou o cigarro e lançou a beata pela janela, não sem antes averiguar se estaria alguém a passar que pudesse ser atingida pelo incómodo projéctil. Mas quis o destino que a coisa não ficasse por ali: levantou-se subitamente uma brisa que, perante a forma leve e propensa à resistência do ar da beata, a atrasou e desviou na sua queda, ao mesmo tempo que Nadine se aproximava a correr da porta do prédio. Damião não teve tempo de entrar em pânico antes de a beata pousar rudemente no cabelo da moça, o que resultou em dois gritos bastante distintos: um grito sonoro e agudo proveniente da rapariga sobressaltada; e um grito mudo e ensaiado repetidamente na mente do rapaz que, em resposta ao primeiro grito, teve imenso tempo para atravessar vários níveis de pânico até conseguir tornar a espreitar pela janela após ter-se acobardado e escondido no seguimento da desafortunada sequência de eventos. Viu apenas a sua beata deixada no chão, pisada e suja, e emaranhou-se num turbilhão de pensamentos interligados: “Será que ela me viu? Mesmo que não me tenha visto, deve imaginar que fui eu. Mas os vizinhos de baixo também fumam, podiam ter sido eles. Eles não se teriam escondido como eu. Será que devia ir pedir-lhe desculpa? O mais certo é ela estar extremamente irritada. É melhor deixar isso para amanhã. Mas como é que eu lhe explico que demorei um dia a decidir ir pedir-lhe desculpa? Ainda vai ficar mais chateada. Oh, meu deus… O que é que eu faço? Já sei! Vou fumar outro cigarro para a janela. Ela não vai pensar que fui eu se me vir a fumar agora, e eu posso perguntar-lhe sobre o grito e disfarçar.” No final, o plano correu impecavelmente, excepto na parte em que Damião perguntaria pelo grito à rapariga: essa parte nunca aconteceu, muito menos depois de Damião observar o olhar furioso da rapariga enquanto ela secava o cabelo à janela.
A questão deve estar a tomar forma nas vossas cabeças há já algum tempo: “Então e a moça também não fala?” Fica, pois, registado que Nadine falava gente de todas as idades e tamanhos e feitios, já para não mencionar que, por volta dos seus treze tenros anos, falava também com o Pilecas, o cãozinho de peluche que trazia para todo o lado. Não querendo trazer à baila assuntos mais pesarosos, deixo apenas um breve relato de como o Pilecas deixou de fazer companhia à sua insaciável dona. Foi um dia frio e invernoso; chovia granizo lá fora e Nadine estava sentada à lareira com o seu fiel companheiro. Contava-lhe as histórias que vira na televisão de manhã cedo ou que a avó lhe tinha lido para adormecer na noite anterior. Entretida com o relato de como o belo e audacioso príncipe lutara com bravura contra o enorme e temível dragão que guardava a torre onde a princesa esperava havia vários anos num cativeiro forçado e inverosímil mas que a Nadine se afigurava inevitável para que houvesse um conflito romântico na história; entretida no seu balanço perigosamente próximo das chamas, em que simulava o príncipe a brandir a espada na direcção do seu feroz oponente com o próprio Pilecas a fazer de dragão, nem conseguiu pestanejar quando empurrou o pobre bicho mesmo para o meio do fogo, tendo permanecido estática e silenciosa durante todo o tempo em que os restos mortais do seu cão de peluche crepitavam e se engelhavam e se transformavam em cinza negra. Não houve cerimónia fúnebre; apenas uma menina que via desaparecer o seu primeiro amigo e que, com isso, crescia.
Mas se Nadine falava e com os mais variados interlocutores, por que não falara ela com o vizinho uma única vez? Bem, tendo particularizado a pergunta, pode agora adiantar-se as mais incríveis hipóteses e conjecturas, mas a verdade é que todas as suspeitas são infundadas e nunca houve razão alguma para que nunca o tivesse sequer cumprimentado. São simplesmente coisas que acontecem e, para deixar uma imagem mais credível do que, no fundo, é uma mera coincidência, pode até ser referido que, nos tempos que correm, a coisa mais natural das massas urbanas é nem sequer conhecer os respectivos vizinhos, quanto mais falar com eles. Nadine e Damião não eram excepção. Aliás, voltando atrás no que foi uma observação precipitada, tudo entre os dois era excepção à excepção de não se falarem: um vinha à janela como se fosse esgueirar-se pela janela vizinha; o outro ia à janela para dali levantar voo rumo ao infinito. Podia dizer-se que estavam em oposição de fase, um oscilando sempre ao contrário do outro, numa dança muito coordenada mas completamente cega.
Depois de tanto embalo e tanta contextualização, conhecendo agora um pouco dos protagonistas deste conto, passo a relatar talvez o mais breve e incompreensível romance que alguma vez houve entre duas pessoas. Tudo aconteceu num dia imprevisível de Outono, daqueles que amanhecem solarengos, amadurecem tempestuosos e tornam a mostrar-se simpáticos ao anoitecer. Tal como descrito, o dia apresentou-se limpo e promissor quando Damião acordou de manhã; já a Nadine, a ausência total de nuvens entristecia-a. Assim, Damião veio fumar o seu cigarro à janela, na esperança de ao lado encontrar, também à janela, a mesma rapariga com quem sonhara nessa noite, ao mesmo tempo que Nadine descia as escadas do prédio. Não demorou que Damião visse a sua musa a sair pela porta da rua, seguindo, depois, rua abaixo no seu passo célere mas muito delicado. Vendo afastar-se a moça, terminou o cigarro e decidiu-se, ele mesmo, sair de casa e aproveitar o efémero sol que aquela tão inconstante estação lhe permitia, não se esquecendo de levar consigo um guarda-chuva como ditava a mais humana prudência.
Quase nem seria preciso explicar que, pouco tempo depois de o rapaz sair de casa, um vento frio começou a soprar de Norte, arrastando consigo nuvens que haviam estado a beber sofregamente dos rios que permeavam a serra; e que essas nuvens não tardaram a alcançar a abóbada da cidade, derramando a sua sombra austera sobre as ruas; e que o temporal que, de seguida, se abateu sobre os desgraçados dos transeuntes foi tal que as ruas ficaram desertas no espaço de um minuto. O que é, efectivamente, ponto fulcral nesta exposição, é que Damião era um homem prevenido, mas prevenido em condições. Não era um qualquer guarda-chuva que Damião empunhava enquanto caminhava, mas sim um verdadeiro telhado sobre a sua cabeça, bem rígido para resistir ao vento e espaçoso o suficiente para que até a mochila que trazia às costas fosse completamente resguardada de qualquer pingo de chuva, e nem mesmo o vendaval que fustigava as copas das árvores como se as quisesse despir de vez das parcas folhas amarelecidas que ainda ostentavam era adversário ao nível daquela maravilha do engenho humano. Em matéria de guarda-chuvas, aquele era um todo-o-terreno.
É, então, ver o rapaz a descer a avenida com o seu guarda-chuva à prova de todos os salpicos em simultâneo com a rapariga que a sobe apressada por não ter vindo precavida e que vinha já tão encharcada que quase não foi reconhecida quando se cruzaram. Faço questão de frisar o “quase”, já que poucos metros foram caminhados antes de ambos estacarem repentinamente o passo, um na dentro dos muros da sua fortaleza e outro abandonado à mercê dos ventos. Também não foi longa a hesitação antes de se virarem, pela primeira vez em completa e total sintonia, para que cada um fosse capaz de encontrar o olhar do outro e sentir-lhe a alma na sua. O momento foi cheio de tensão, tanta que penso ser apropriada uma descrição exacta e minuciosa da ocorrência, pelo que passo a fazê-lo num parágrafo exclusivo.
Damião foi o primeiro a encontrar os olhos de Nadine, que os tinha franzidos numa tentativa complicada de retribuir o olhar. Foram três os segundos que passaram, contados com toda a precisão na cabeça de Damião, e durante esses três segundos, houve tempo para que pela mesma cabeça passasse a seguinte ordem de pensamentos: “É ela! E agora? O que é que eu faço? Vou até lá? Será que ela me reconheceu? Será que ela me conhece, sequer? Ah! Ela está a olhar... a olhar para mim?” Passemos à cabeça da rapariga, que também ela fervilhava de pensamentos com a carga de água que lhe caía em cima, pensamentos que, durante os três segundos seguintes, foram: “Eu conheço esta cara. Hum… Ah, é o vizinho. Se calhar, devia ir lá cumprimentá-lo, mas está a chover tanto… Será que fica mal seguir caminho?” A partir deste ponto gerou-se a verdadeira hesitação da ocasião, hesitação essa que demorou uns largos quinze ou vinte segundos durante os quais os olhares nunca uma vez se desviaram. Entre os olhos de ambos estabeleceu-se uma espécie de conexão, um qualquer fluxo empático que ambos reconheceram e digeriram. Para Nadine, foi como se os seus espíritos de fundissem; como se os próprios corpos se entrelaçassem; como se as janelas das suas casas tivessem sido recolocadas frente a frente a meros milímetros de distância. Para Damião, foi como se lhe tivessem aberto um alçapão sob os seus pés; foi como se deixasse mesmo de haver chão; foi como se saísse pela sua janela, tentasse entrar pela janela vizinha, mas fosse infeliz na manobra e se precipitasse no abismo sem fundo. A razão para que tivessem tido tão díspares sensações proveio das armadilhas próprias de cada uma das almas: uma que admirava a presa de longe sabendo que nunca viria a caçá-la e outra que sonhava continuamente com um príncipe que subisse à torre e a resgatasse do seu exílio. Cada um pensou ver o outro, mas nunca além de si próprio foi capaz de enxergar, atolando-se no próprio lodo e vivendo os luares das suas mesmas almas.
Tanta tensão acumulada e a natureza volúvel da estação acabaram por fabricar automaticamente o desfecho apropriado. A chuva parou e o sol esgueirou dois ou três raios por entre a espessa camada nebulosa, cortando de rompante a comunicação que se tinha estabelecido. Nadine e Damião tornaram a ver apenas olhos e não salas cheias de espelhos da alma. Nos olhos de Nadine lia-se um “vem aqui” e nos de Damião um “tenho que ir”. Assim, enquanto a rapariga desviava pela primeira vez o olhar para tentar resgatar um vislumbre dos irreverentes raios de sol que se assomavam do céu escuro, Damião sacudiu o guarda-chuva, fechou-o e voltou-se. Acendeu um cigarro e começou a caminhar. Da rapariga, nada mais se soube. Enquanto caminhava, Damião pensou: “Que imbecil do caraças! Que vergonha! Vou ter que mudar de casa outra vez…”

sábado, junho 05, 2010

Femme fatale.

Tem o olhar preso nas palavras por dizer,
Aquelas que o seu suspiro transpira
Nas entrelinhas do romance;
Tem a vontade dos temporais e a força das ondas
No beijo,
Lábios que imergem no espectro dos astros,
Vadios.
Tem a pulsação da infância e o semblante da idade,
A beleza do terror cristalizada no rosto,
Única e genuína femme fatale no seio da história.
Tem, nos dedos, a ebulição da treva,
O toque gélido da morte que se consome em insinuações carnais,
Fogo e gelo, o cocktail das deusas.


Atenção:
Pode conter vestígios de frutos secos de casca dura.


Traz as palavras suspensas no olhar que suspira
Romances nas entrelinhas;
O seu beijo é um temporal de vontades,
De astros que iluminam através de lábios vadios.
Tem o semblante da infância e a beleza da idade,
E a pulsação da história cristalizada no seio do rosto;
A morte nos dedos gélidos, na ebulição da carne,
Um néctar de água e fogo que se consome em insinuações divinas.
Femme fatale.


Cuidado:
Contém uma fonte de fenilalanina.


Tem o olhar preso na infância por dizer
E o suspiro amarrado às entrelinhas da idade,
A força das ondas nos lábios gélidos
E o fogo cristalizado no terror dos dedos.
É um astro vadio, palavras que transpiram da ebulição da história.
É a femme fatale disfarçada de romance
E só a vontade das trevas se insinua quando o temporal se dissipa.
Quero todo o espectro do seu beijo,
E não apenas um cadáver do divino.

Mas cuidado... atenção...
Não fumar ou foguear: perigo de morte;
Guardar no frigorífico após aberto;
Em caso de ingestão, consulte o seu médico ou farmacêutico.


Fogo e gelo...

05/06/2010
17:27

quarta-feira, junho 02, 2010

Ser ardente em turva chaga.

Levo a noite nos ouvidos,
Fera tombada na arena,
Mais do que grande, pequena
Entre os demais alaridos;
São silêncios repetidos
Das elegias que sonho,
Um brilho inerte, medonho,
De sensações peregrinas
Escondidas entre as esquinas
De um luar que, assim, transponho.

Levo o silêncio nas mãos
Fechadas contra a saudade,
Madeixas de intimidade
Soltas ao vento dos nãos.
Em pensamentos irmãos
Componho a lírica vaga
Que me acompanha e indaga
Pela noite que carrego,
Sombra de mim, do meu ego
Que me invade e que me alaga.

De um luar que, assim, transponho,
Que me invade e que me alaga;
De uma noite inteira, um sonho,
Ser ardente em turva chaga.

01/06/2010

quinta-feira, maio 27, 2010

As Raízes da Semente.

Lanço a semente da palavra em funda leira
Que a muitas vozes a mão lavra, habilidosa
Sob o sol quente que ilumina a Terra inteira
Em franjas soltas de cortina luminosa.

Em jorros frescos, fresca água se derrama
De uma frescura que é de mágoa dissipada
Alimentando mil rebentos que declama
A terra mãe dos alimentos, voz amada.

É dia, é noite, é dia novo, e a colheita
Faz-se de histórias deste povo e dos seus fados
E é só depois dos seus labores que se deita
Para sorver os mais sabores cultivados.

Conta-me a lenda verdadeira da semente
Que habita os olhos da ceifeira e do pastor;
A terra escrita nas artérias desta gente,
Palavras ricas de misérias e de amor.

Canta-me as velhas ladainhas dos avós
Tornadas novas pelas linhas desta mão,
Mão com que agarro firmemente a sua voz
E com que devolvo a semente ao mesmo chão.

03/05/2010
18:40

sábado, maio 22, 2010

Epitáfio - A Fervura das Artérias

Quando a olhei, sem qualquer reserva nem temor, olhos fixos nos seus não-olhos e um imenso abismo inescrutável nos intersticiais centímetros que nos separavam, contra todas as expectativas, até mesmo as mais favoráveis, nada aconteceu. O vento soprou da mesma forma morna e vagarosa e, da mesma forma, ao seu sabor se agitaram copas e ramagens, arbustos, estevas e silvados; o sol manteve-se firme no seu frágil zénite de inverno, e a lua espreitava, imóvel, por detrás de um canavial, ambos alheios aos volúveis destinos dos homens. O incêndio, esse lavrava o espesso mato a um ritmo estonteante, como se acordado fora de um demorado sono de abstinência e jejum e quisesse agora compensar de um tão esforçado hiato o seu voraz apetite, devorando, em labaredas frias, hectares a perder de vista de pinheiros e eucaliptos com a ligeireza de quem trinca uma maçã e sente o seu sumo a escorrer-lhe pela face, agridoce.
Olhei-a, dizia eu, desafiando tudo aquilo que representava e, repito, sem o temer, talvez à custa de fantasmas que me assombravam o discernimento ou de areias caídas de uma ampulheta já quebrada, embora ainda poderosas fossem as suas influências no marulhar indeterminado do agora. Quem teme, teme o que desconhece, o que não pode conhecer, e também aquilo que, conhecendo, não compreende; veja-se o exemplo do exemplar cristão que a Deus é temente sem que da noção do divino tenha real entendimento. Como poderia eu temer aquilo que tão intensamente conhecera e tão profundamente compreendera, ainda que na memória se materializassem todas as dores sofridas e não sofridas que a tomada de consciência acarretara, suplício de ignomínias indizíveis?
Falo-vos, pois bem, do meu duelo muito pessoal com esse inominável ceifeiro de almas que, sem prévio aviso ou abertura ao diálogo e, porventura, a uma negociação que pudesse suprir as vontades de ambas as partes, desempenha o seu singular ofício, único nos vários planos espalhados, ao longo das eras, pelas mais diversas e criativas mitologias: paraísos, infernos, purgatórios e olimpos. Versado que me considero em vocabulário menos vernáculo e em construções sintácticas de complexidade acrescida, coordenando e subordinando orações ao sabor de um bel-prazer inconstante e caprichoso, não posso, ainda assim, assegurar que o meu discurso faça verdadeira justiça às sensações e aos cenários que senti e a que assisti, indício de um não sei quê de transcendente no assunto que discorro.

quinta-feira, abril 15, 2010

Anzol.

I

Há peixe nas redes
E os braços contorcem-se na agitação
Sem paredes
Da embarcação.
Há que tornar ao casco encharcado do navio
As peças frescas de pescado
Subtraídas ao rio.
Poderia ser um oceano interminável;
Porém, os melindres da rima
Fazem-no simples rio navegável:
Rio abaixo, rio acima,
Nesta incessante azáfama piscatória
De que não há memória canseira igual...
Afinal, na correria extenuante
Que é, da traineira, sustento,
Toda e qualquer brincadeira
É uma roleta russa que gira,
Um pontapé de bicicleta na pira no próprio umbigo.
Há perigo de aluimento
E o vento que arrasa e desfaz
Todo e qualquer incapaz
Que ouse armar-se em audaz
Num mecanismo que não compreende,
Que transcende a polpa e a culpa e o heroísmo.

II

A lota marulha, abarrota
Da fome criminosa da patrulha
Na madrugada sinuosa.
Das águas chegam marítimos
Com os seus tesouros ilegítimos,
Colhendo os louros da chacina inimputável
De que foram protagonistas,
Contrabandistas da incontestável providência das ondas,
Credores da impaciência de gentes de almas redondas,
Indistintas,
Retorcidas esporas da incerteza
De muitas horas famintas.

III

Hoje há mercado na aldeia.
Compra-se o pescado e o roubado;
A miséria regateia
E o preço oscila conforme os dentes da alcateia;
Fazem fila os clientes
E, por mais que empurrem e reclamem,
Por mais nomes que chamem e pragas que roguem,
Por mais que se afoguem e se esfolem e distribuam sabotagem,
Continuam em clara desvantagem,
E nem boicote, nem decote,
Nem ameaça, nem chicote,
Os resgata à crassa desgraça
Feita espectáculo na praça dos saltimbancos.

A garra, a presa, o tentáculo,
E o patrão do tabernáculo
Que se lambuza das mais tenras postas
Tem olhos nas costas
Se a situação é intrusa
E as chaves todas na mão
Das celas da sua prisão
E todas as velas e motores
De todos os pescadores do seu batalhão.


"Um passo em falso e sobes ao cadafalso. Palhaço! Brinquedo!
Domina o teu medo e engole o orgulho,
Ensaia o mergulho e faz-te à vida.
Não faças tanto barulho,
Não comas tanta comida.
Eu sou teu amo e senhor,
Sejas tu soberano ou pescador.
Por isso, humano, lança-me os barcos ao mar,
Aprende a navegar e faz-te alguém
Em vez de vires espalhar o teu desdém
Por quem de ti se alimenta
Por ser o rei leão desta selva
Que não conhece outra cor
Senão a cinzenta, pescador!"

IV

Tenho três filhos e uma sardinha.
Da espinha faço um caldo;
Escaldo o pão duro na água imunda do poço
E o pescoço fica para o gato
E a sua pelica e corcunda.
Três ervilhas no prato para três filhas,
E o resto do vinho para o vizinho entrevado,
Ainda ontem homem rijo
E hoje sujo e acabado,
Velho marujo atracado num esconderijo arruinado.

Vim do mercado de mãos vazias.
As bancadas frias escondiam-se para lá da multidão esfomeada,
Um regimento inteiro à procura de alimento,
Que não encontra nada
Na escura consternação, no vão lamento
Da madrugada madura.
Amanhã regresso,
Repito o processo,
Aflito da pobreza que me assombra.
Só a fé me move ainda nesta tristeza
Que chove dos olhos cansados
Em molhos de sonhos arrancados pela raiz.
Estou velho como o vizinho,
Infeliz,
Sozinho, vencido,
Parco pai e fraco marido,
Perdido num covil de feras das mais selvagens e ferozes,
Atrozes, que devoram pastagens e aldeias,
Que consomem as Primaveras alheias
E desfilam com as suas barrigas cheias.

14/04/2010
18:06

segunda-feira, abril 12, 2010

À Noite.

Vou destas palavras graves
Ao mar dos sons que me cantas
E ao temporal que levantas
Co'a voz do choro das aves.

Vou do meu peito deserto
Ao bosque pecaminoso
Que ao teu olhar luminoso
Se entrega aberto.

Vou neste langor estupendo
Ao cabo dos tempos por vir;
Vou sem ver que vou correndo,
Tropeço e não chego a cair.
Ergue o farol que me guia
Pois que o sol é só de dia
E a noite é tua prisioneira
Viúva e solteira
Nesta tempestade...
Que noite é a cara metade
Da tua vontade guerreira?
E em que noites se esconde a verdade?
Qual das noites de sensualidade
É noite inteira?

Vou no sabor das correntes,
Na rebentação das horas;
Sou peixe vão que devoras
Nas vagas de horas pendentes.

Vou do teu forte rochoso
Ao sal que o mar lhe conquista,
Ao limo a perder de vista
Do teu ser viscoso.

12/04/2010
15:05

sexta-feira, abril 09, 2010

Diapositivo.

Grito ao ouvido:
"Bandido
Que roubas as folhas todas de Outono
Detido em estrondo,
Redondo embalo...
Se me não calo, se não me abandono,
Se não respondo à orla dos sentidos.

Foge-te o chão dos pés descalços
(Cólera na boca,
A tíbia entalada em tectos-falsos
De louca, alucinada
E rouca, fatigada,
Pouca mas prendada
Mãe que lhe conhece o fado...)
Vendado destino que o olha de lado.

05/04/2010
22:55

sábado, março 27, 2010

Tráfego.

Há linhas pintadas na estrada
Com tinta invisível,
Manchadas da cor combustível
Na berma entornada;
Percorre-as o ser indisposto
Do medo estampado no rosto,
Da dúvida presa, indizível
À boca fechada.

À margem tropeça a vontade
Por trilhos sem dono
E o cheiro da tinta sem sono
Polui a cidade
Das sendas, dos arruamentos;
Desvenda-se em mil cruzamentos
O reino das almas sem trono
Que a dúvida invade.

São milhas a perder de vista
De estradas abertas
No chão das escolhas incertas,
No chão da conquista,
E as horas circulam sem conta
Por todas as horas de ponta;
São sonhos em estado de alerta
Nas curvas da pista.

27/03/2010
15:15

quinta-feira, março 25, 2010

O Cabo do Coração.

Além dos sonhos devassos,
Além do tempo sozinho;
Um corpo feito em pedaços
Que amontoam nos espaços
O seu desfeito caminho.

Além-mar, além da terra,
Além da vida fechada;
Garganta que brame e que berra
No desespero da guerra
P'ra que partiu enganada.

Além dos credos da gente,
Além do véu dos segredos;
Um homem de alma temente
Reza ao destino inclemente
Com a miséria entre os dedos.

Além do pouco que sobra,
Além da própria razão;
A juventude que cobra
Uma virtude que dobra
O cabo do coração.

25/03/2010
15:03

quarta-feira, março 24, 2010

Rapina.

De nuvens trajas, altiva,
E as brisas tomas por casas
Na ventania que aviva
O bater das tuas asas.

Maruja do mar imenso,
Oceano de saudade,
Não sei se ao teu mar pertenço,
Se é tua a minha sentença,
Nem sei se ao teu mar pertença
Ou se nade em liberdade.

Das chuvas fazes teu pranto
Embalado em tempestades;
És mãe de todo o encanto
De mascaradas verdades.

Capitã desse veleiro
Que navega entre marés,
Não sei se sou verdadeiro,
Se és a condição primeira,
Nem sei se és tu verdadeira
Ou nada mais que altivez.

O horizonte profanas
Co'a tua graça menina,
E a turba toda que enganas
Sabe já que és de rapina.

És ave da rebeldia,
És senhora nas alturas,
E eu só não sei se algum dia
Virás de olhar menos frio
Encher-me o copo vazio
Só p'ra deixar-me às escuras.

24/03/2010
14:38

terça-feira, março 23, 2010

Romance.

Dissolvo a espera gritante
Que há na prisão dos teus passos
Neste licor bilioso,
Instante de dor,
No cigarro tortuoso,
Premissa de amor
Que há-de esta espera calar
Com voz de lábios e braços
E a partitura que trazes no olhar.

Devolvo ao ser indulgente
A minha voz diluída
No coro das nossas mãos,
Semente de amor,
Somos dois corpos irmãos,
Somos da mesma cor
Que há-de pintar a doçura
Desta paixão foragida
Na tela acesa da nossa loucura.

Revolvo o aroma que adoça
Boca que busca o divino
Nas ervas todas do monte
Da nossa afeição,
Bebo da água da fonte
Que entorna no chão
Aos nossos pés as promessas
Que movem sonho e destino
Para a frente e para trás e às avessas.

23/03/2010
14:55

quinta-feira, março 18, 2010

Atlântida.

Somos ruminantes de memórias,
Assolados pelas nossas próprias façanhas,
De entranhas revolvidas e infame prosápia;
Somos o cerco à cidadela, foice em seara de melindre,
Cacos dispersos na tumba dos possíveis,
Tagarelas araras que se enaltecem de imitações vazias,
Cortejo de saltimbancos sem amo,
A fácies grotesca de um demo desgovernado.

Somos ruminantes da história;
Mastigamo-la, vezes e vezes sem conta,
Uma reprodução sucessiva, incessante, de depravações mal sepultadas,
Dos mesmos trilhos viciosos hoje manchados do sangue de heróis desviados.
Somos apenas ruminantes,
Ainda que pudéssemos ir além dos quatro cascos
E galgar o tempo como suas gotas,
Ser o ar de que se nutre quando, em debandada,
Se entrega nas mãos do Mestre,
Servo e senhor fundidos num talismã de fresco embalo.

Somos ruminantes da alma,
Consumados adúlteros de amores vendados,
De olhos abertos mas vidrados,
Envenenados até ao âmago da senciência.
Somos a bestialidade dos deuses e a divindade da besta,
Encurralados entre planos que nos transcendem,
Largados sem instrução à mercê dos videntes,
E de dentes tão cruelmente desenhados para ruminar,
A fraude do pai tirano.

Somos ruminantes.
Somos a escória da vida, o cancro da Terra,
A natureza virulenta da sistémica do mundo.
Somos a casta dos vampiros,
Somos todas as desgraças futuras,
Somos todas as profecias de treva,
O exército sem amo, desgovernado, ruminante,
O cortejo de saltimbancos, a foice macabra, a lâmina sedenta...
Somos um resíduo parasita, um simbionte intrincado,
A revelação inadmissível do ciclo supremo:
Não há quem nos subjugue,
Nem quem se vergue ao nosso desespero.
Somos bonecas de porcelana num palco alugado e armadilhado,
Marionetas sem cordas,
O expoente máximo do desvario da existência
Que é louca.
Louca.
Pouca...
E, em tempo devido, será rouca.

Nem ruminantes, nem simbiontes; somos o rift no abismo das ideias,
A fossa abissal das verdadeiras formas,
Os carrascos de um mundo já submerso.
Somos Atlantes, de orgulho ferido e corrompido.
Somos herdeiros da escravidão de todos os tempos,
Agrilhoados às ferragens cáusticas da nossa imensa incompletude,
Algemados uns aos outros sem inimigo comum.
Somos o augúrio da Atlântida,
Em segredo mascarados de homens e mulheres,
Guardiões da emboscada, penhores de esperanças sortidas,
E paleontólogos da vida que, sem querer, transportamos para além da vida,
Para além do tempo,
Para além de mim, de ti, de todos.

18/03/2010
15:43

quarta-feira, março 17, 2010

Oráculo do Espelho.

Sigo o movimento da página com o olhar.
Nas margens, a folha encarquilha-se ao toque.
Sinto, no seu ondear constante, letras que em breve terão morada,
Que serão povo ordeiro e sereno
E farão história das mesmas histórias que se lhes lê no ventre.
Haverá vogais devotas ao seu farto colorido, à sua promessa de voz
Na vasta imensidão, consoante a rigidez do desígnio;
Haverá outras menos capazes, talvez confusas…
Mas todas aderem à alva rugosidade com o espírito afoito do indício:
Formas ocultas na lua nova que o poeta invoca para se vestir.
Sente-se a humidade da dúvida
Que entorna a esmo todas as ideias no leito purpúreo, marmóreo,
Rio navegável só por atrevimento.
Sente-se a vontade visceral, o sentimento inegável,
A variável contínua que jorra em sentidos por sentir,
Sentidos alheios aos sentidos,
Sentidos de sentidos sem sentido,
Como jogar às escondidas com o próprio nome.

Eu sou o limbo incombustível,
A face rubra, o olhar desmaiado sobre a página
Que desinquieta as palavras e as pastoreia sem vigia;
Um nome que quer ser escrito para, enfim, ser liberto,
Ser a razão que não demora, o conto, a fábula, o mito…

A página foge sob dedos que a não sabem segurar,
Que a amarrotam em expectativa e a negligenciam.
São carrascos sem consciência, amorais,
E a sua tortura carrega o fardo da vida inteira,
Anos após anos acumulado e faminto.
Está feito o desafio: o duelo é iminente, emergente,
Como se a sua resolução fosse resposta para todos os dias,
Como se a sede que o move fosse o bastião da humanidade,
Dimensão última das tremuras que a percorre,
A derradeira contemplação na fresta humilde que nos resta.

Eu sou a gárgula, o vampiro, a quimera mais obscena,
Sou um polímero articulado, uma seiva aromática, um caudaloso ribeiro
No barranco das sentenças.
Tenho uma página que se incendeia
E um oceano de brigas para exilar nos seus desfiladeiros,
Arquipélagos de instantes que solidificam nas águas gélidas,
No frio portentoso do tempo.

17/03/2010
6:19

sábado, março 06, 2010

Quem será, serei, seremos...

Quem sou nos passos que dou,
E quem nos passos retrato
Dados nas ruas que sou
Quando não sou os meus passos,
Quando o retrato são traços
E braços ao desbarato?

Quem és nas coisas que fazes,
E quem nas coisas que são
As coisas que és e que trazes
No que não és em geral,
Te faz ser acidental
Em tantas coisas então?

Quem somos na luz difusa,
Luz fria, luz sombra oculta
Que é luz que somos, oclusa,
Luz infusa destes seres
Deuses, homens e mulheres,
Deuses, luz na sombra adulta?

Quem serão, no ser, supremos
Trovões de chamas e gumes,
Quem será, serei, seremos
Serenos seres de nada,
Corpo de gumes, espada,
E alma de chamas e lumes?

06/03/2010
11:31

quinta-feira, março 04, 2010

Improviso.

Deixa escorrer a areia chão das ampulhetas,
Rede que enleia o esvoaçar das borboletas,
E pelas frestas, pontas soltas no destino,
Trocam-se as voltas do seu rigor peregrino.

Faz dos buracos auto-estradas de vontade
Nas trovoadas do desejo em liberdade,
Comete o crime original de ser apenas
Essencial na espuma das coisas pequenas.

Traz na bagagem todo o verde da esperança,
Mar que se perde num horizonte que avança
E tisna os dias da brancura do sorriso
Que acende a boca em melodias de improviso.

Deixa o relógio na parede e faz-te à vida
Que a sede aguarda os rios da terra prometida;
Virá quem ouse içar a vela ao desafio
E navegar contra a corrente em novo rio.

Desata o tempo e corta amarras que as gaivotas,
Co'as suas danças, farão garras tão remotas;
Segue-se a margem inventada dos futuros
Numa parada de corações em apuros.

Dá-me uma mão, de mão em mão se asfalta o sonho;
Na mão que falta entrego a mão com que transponho
A solidão que em vez de fogo se faz vento
Que espalha sementes no chão do sentimento.

Deixa que as horas sejam horas verdadeiras,
Horas que beijam nos lábios, horas inteiras,
E que essas horas façam rir às gargalhadas
Todas as horas que hão-de vir nas horas dadas.

04/03/2010
16:31

quarta-feira, março 03, 2010

Urbanismo.

As cidades são cheias de gentes no vazio das horas;
Pelas ruas caminham, tropeçam as pernas cansadas
Dos murmúrios vencidos em esquinas de betão armadas,
Vão com rumos que não são os seus, são loucas demoras.

Edifícios erguidos à glória de um tempo em suspenso
Aos meus olhos retorquem imagens que incendeiam, vivas,
Tentações fundeadas no lodo das almas cativas
No vai-vem incessante e austero que anula o bom senso.

São semblantes vidrados, opacos às curvas e esferas;
Sonham noites e dias inteiros sem fé que os sustente;
Fazem rezas, desfiam rosários de um deus indecente,
Embalando consigo as ausências, contando as esperas.

02/03/2010
11:25

terça-feira, março 02, 2010

Andor.

Vou à boleia neste andor de imagens ocas,
Gessos sem alma, ardósias negras que amparam
Os versos toscos que nascem nas muitas bocas
Em coro abertas entre abismos que as separam.

Sigo nessa hipnose turva e peregrina
De mãos e braços enredados em peçonha,
Pérfido assombro da vontade que domina
A turba dócil que se alista por vergonha.

Segue o cortejo em vivos cânticos ao medo
Que, sem escrutínio, faz zurzir o seu chicote
E assim conduz manso rebanho ao som de um credo
Que arranca à dúvida as raízes do boicote.

Pertenço ao préstito dos fiéis complacentes
Na fila estreita que me conduz à extinção;
Serei mais uma fotocópia entre excedentes,
Ou a centelha de uma nova procissão?

Farei socalcos com meus pés noutros caminhos
Que, percorridos, sejam porto de outra costa?
No chão calcado nascem frescos burburinhos,
Na minha mão e no meu ser mora a resposta.

02/03/2010
16:07

segunda-feira, março 01, 2010

Machado de Guerra.

Tenho um machado de guerra forjado em fogo fátuo,
Resplandecente dos furores que me não deixam dormir,
Faca de mato que desarvora os sentidos,
Sabre de luz que afasta o bréu dos pensamentos.

Tenho um machado de guerra que assola mundos,
Uns fronteiriços, outros longínquos, alguns sonhados,
E do meu berço leva o sonho,
Dobra o destino
Nos seus clangores como acordes dissonantes.

Tenho um machado de guerra destemido e petulante,
Ávido das seivas viscosas que derrama,
Sangue que ferve na veia e se sublima na lâmina
Em fumarolas sulfurosas, incandescentes,
O vulcanismo da alma, a tectónica do ser.

Tenho um machado manchado da guerra,
Com cicatrizes antigas e feridas ainda abertas,
E nas suas faces, tatuado em golpes impiedosos,
Lê-se a epopeia grotesca dos dias que me precedem,
E adivinha-se,
Tantas vezes com malícia,
As noites de vigília que os versos em branco acalentam.

Tenho um machado que já foi de guerra,
Gasto em disputas frívolas, em bandeiras só de pano,
Sem dimensão,
E em campanhas de meias verdades que parasitam o meu juízo.
Escavo-lhe honroso sepulcro,
E ao lançar-lhe o último punhado de terra árida,
Enterrado o meu estertor errático, um batalhão inteiro desmantelado,
Vejo o reflexo dos meus olhos na laje polida,
E pela primeira vez reconheço-me.

Tive um machado de guerra.
Agora tenho-me a mim.

01/03/2010
15:52

sexta-feira, fevereiro 26, 2010

Contrição.

Quando estiver farto de enxergar
E as pupilas se contraírem diante de um Sol consumido,
Com as minhas próprias mãos arrancarei os olhos,
À vista assim negando o seu deleite nos horizontes.
Cansado de todo o ruído,
Farei dos tímpanos peneiras sangrentas,
E a surdez entoará elegias ao canto morno das sereias.
Quando os meus pés forem apenas mais uns pés,
Que aqui repousam e ali caminham
E a lado nenhum se encaminham,
Que abrem feridas na terra e sulcam chagas inúteis nas solas,
Quando esses pés me atrasarem,
Deles farei repasto para algum antropófago indigente,
E das pernas pedigree para bestas,
E dos joelhos ração para o gado,
E das coxas, bem...
Das coxas farei torresmos.

Resta-me um tronco, com ramos e folhas,
Amarelecidas e caducas mas ainda folhas,
E não mais capaz de movimentar-me,
Resigno-me numa espera cega,
Numa surda emboscada,
Por uma ventania de Outono que mas arraste pelos ares,
Que me dispa o castanho rugoso desses apenas enfeites.
Afinal de contas, ainda não é Natal...
Falta pelo menos um mês,
E antecipar tais veleidades é simplesmente idiota.

Depois vem uma brisa,
Vai uma folha,
Vem uma aragem,
Vai outra folha,
E em poucos assaltos tudo o que me resta de nada me serve.
Nem tão pouco o arrependimento...
Que faço com ele agora?

Mais vale acabar com isto.

26/02/2010
9:34

terça-feira, fevereiro 02, 2010

Metadiegese.

Escrever é haurir o bafo panteísta impregnado nas palavras,
A libação da alma incasta,
Que se presta à descoberta no planisfério turvo da existência
De uma forma incipiente de amar.
Os dedos coordenam a torrente que lhes chega
Amotinada e sem contorno
Da esfera inconscienciosa, útero de linhas curvas
De genealogia promíscua e bizarra,
Emaranhada de sílabas trôpegas e inascíveis por mero capricho;
É preciso moldar o barro em bruto do pensamento,
Conferir-lhe inteligibilidade e soprar-lhe a vida directamente nos pulmões,
Mapear-lhe a estrada sinuosa, provê-lo de alimento,
E ensinar-lhe os silêncios de que se pontua,
Olaria no frenesim da gestação.

Escrever é projectar o templo da novidade,
Regar a sede dos desassossegados,
A derrota da legislação universal, regicídio
Na decorrência das epopeias do ser por refinar.
O trono é devolvido ao justo ocupante
Que de espectador se assume divindade, força motriz,
Propulsor a jacto na atmosfera rarefeita da beleza.

Mas escrever acerca do escrever,
Ponderar as anfibologias alquímicas do literato, sem litígio,
E palpar o corpo obsceno da locução
No estudo embriológico do esboço,
É louca prova da natureza reflexa que nos ocupa,
Que possui o corpo que cremos pertencer-nos...
Rendo-me à subtil evidência de que sou eu dentro de mim,
E dentro de mim,
São as palavras,
Que me veneram com ídolos de ouro fundido e sacrifícios de sangue,
Que me operam profético e transcendente.
Sem mim,
Sem elas,
Seria apenas a vã caverna do eterno que está para vir.

02/02/2010
6:19

Clamor.

Não gastes os nomes na languidez amorfa da esperança
Nem roubes à idade o delírio colectivo,
Alvoroço de sensações que te navega as veias
E que te inunda as polpas da malícia crédula de emendas
Talhadas em toros incorpóreos de madeiras obsolescentes,
Tanto as emendas como as polpas.
Não te vendas no mercado dos vulgares,
O respeito próprio penhorado pelas primícias de uma lavoura
Que se sustenta do estrume que o espelho te indicia,
Sensualidade e lascívia servidas na mesma macilenta bandeja
E um copo de veneno que se entorna,
Lívido na devoção dos seus sorumbáticos fiéis,
Sobre uma refeição de estulta ostentação que se havia
De matar a fome aos indigentes,
Sufoca, de obesidade mórbida, o egotismo do mundo.
Não sejas mais do que te coube, nem menos,
Não corras atrás de miragens, esvoaça,
Nem te acorrentes à obra diabólica, mais vale a heresia
De ser quimérico, poeta em noite de facas longas,
O manifesto anti-mim, a denúncia do nosso eu,
Ergue o estandarte em chamas e exclama:
"Obriga-me à grei que extorques, lucra, faz-me teu servo.
Ou morre a tentar!"

02/02/2010
2:53

quinta-feira, janeiro 28, 2010

Polímata.

Prolífico vaticínio de encruzilhadas,
De índole vagamente lícita e irrecusável talento,
Devolve com seu hálito sempre fresco
Ao mundo a legítima formosura,
Enredada nas volúpias intransigentes
Urgentes dos seus resolutos intentos,
Ainda que em fracas silhuetas se dissipem no estertor último
Da vagueza do tempo.
Com seu condão de atrevimento, volante de sonhos singulares
No pluralismo báquico, orgia, avalanche ascendente,
Contraria a gravidade e esboça a verticalidade da alma,
As linhas de força vergadas à mera sugestão de imortalidade.
Sem compadrio nem mecenas, é verdadeiramente,
Ou tanto quanto possível,
A liberdade manifesta, inventiva,
Que ecoa e ressoa e se despe da concepção rígida;
Mergulha no viço instável dos potenciais do vácuo
E de cabeça reescreve o mantra original.
Esta aventura que, de mítica, de mística,
Desmistifica a semântica do Universo,
Vai para além do real sem dele chegar a partir,
Circum-navegação da hiperesfera, multiverso,
Construção de dimensões ortogonais ao próprio espaço,
Conquista da última fronteira de lídimo nome.


Aqui jaz a genialidade anónima,
A mestria inigualável,
Um autêntico polímata disfarçado de humano.

29/01/2010
15:58

sábado, janeiro 23, 2010

Regresso.

Regresso, ainda antes da aurora, à concha frágil que me serve
De refúgio.
Venho do desfile carnavalesco, quotidiano, implausível
Dos afazeres;
Da espuma decrépita da nossa agitação caótica,
Patética,
Frenética de todos os nortes, sequiosa.
Regresso com música nos ouvidos e correntes ao pescoço,
Refém das escolhas tomadas e dos desejos renegados,
Baluarte dos afugentados, estandarte dos esquecidos
Prefeitos de uma ousadia emergente,
Incidente mas não acidente,
A transcendência do destino nas palmas suadas de um menino.
Regresso de olhos postos no horizonte,
Montanha intransponível de tempos que se baralham,
Confusa sobreposição de curvas vizinhas,
Trajectória maleável de resultado sublime,
O brilho do olhar reflectido na memória e difundido no sono,
Caravela para o depois, coche do entretanto ao tão longínquo,
Viajem onírica mas não menos verídica.
Regresso com pena do que deixo para ontem,
Assustado com esta impaciente forma de desconhecer o inevitável,
Obstáculo involuntário à ambivalência do determinismo,
Talvez até inimigo do Universo,
Ou apenas cidadão de alma estrangeira na metrópole cósmica,
Motor da diáspora enlouquecida do esclarecimento,
Ou engrenagem ferrugenta no mecanismo da Criação.
Regresso à origem,
Despojado, embora pleno, dual.
Arrasto comigo a história inteira,
Precedente mal assimilado, procedente intangível,
Perdido neste limbo virtual, litúrgico,
Eu, apenas, sem nome nem idade, absorto no vazio de que emano.


E depois, torno a partir…
Basta ir,
O resto é retórica.
Mas não ir como quem fica:
Renunciar ao perecível e abalar sem constrangimentos,
Dormir à luz das estrelas como se delas me enamorasse,
Percorrer caminhos de bestas como se neles repousassem
Raízes e alicerces,
E abraçar o frio da noite como se fosse mãe dos meus sonhos,
Beijar os raios de sol como se nele residisse o espírito que me guia,
E amar.

21/01/2010
2:57

domingo, janeiro 17, 2010

Cadência.

Instrumento subversivo,
Comportamento evasivo,
Razão de ser insolente,
Motivo fraco, impotente,
Dicionário de feitiços,
Enciclopédia de enguiços,
Trepidação libertina,
Caça furtiva, felina,
Rastilhos do fogo posto,
Água pura feita em mosto,
Ração de parco sustento,
Nascimento, aleitamento,
Polícia atenta ao delito,
Baptismo, namoro, grito,
Lanterna das ilusões,
Caverna das tentações,
Rumo ao desígnio divino,
Rumo, sem mapa, ao destino,
Aguilhoado aos desejos,
Ferido, morto com beijos,
Renascido em tiranias,
Feito a luz dos próprios dias,
Quebrado em cacos, largado
E ao vento crespo açoitado,
Ângulo raso, indiscreto,
Hipotenusa e cateto,
Imponderabilidade,
Insolvência da saudade,
Restos, possibilidades,
Prova real, amizades,
Volta a ser recipiente,
Torna a taça inconsciente,
Fecha-se o ciclo das almas,
E aguardam-se horas mais calmas.

15/01/2010
23:37

sexta-feira, janeiro 15, 2010

Desvario.

Devoramos os gomos sumarentos da palavra
E repartimos em talhadas a complacência;
Os histogramas falsificam paradoxos e silogismos,
E os códigos de barras aprofundam o abismo
Estendido, fendido, fundido,
Aparecido aos solavancos na esfera do corpo.
Na ribalta soam aflitos, malditos, desentendidos,
Interferências incontroláveis, impressões ingénuas,
Impressos
Nas gavetas, nos armários do sonho.
Logística deficiente, trincheira do burocrata petulante,
Pretendente aos tronos todos do mundo,
Suficiente e arrogante,
Compreensão estocástica do parto do que aí vem,
Do que se avizinha e nunca chega,
Do que espreita e se aproxima e quase, quase
Que termina.

Lançamos dardos envenenados,
Comemos do pão dos deuses e asfixiamos,
Lavamos os olhos num projector de cinema e regressamos
De rabo entre as pernas, de asas partidas,
De cócoras entre os abutres.
Travessia do oceano, circulação sanguínea, osmose,
Valentia tornada vanglória tornada poeira,
Valor feito em lendas de heroísmo,
Cinismo,
Anais que se arquivam para referência futura,
Demência, loucura revivida,
Corrida de cavalos selvagens, indomáveis,
Prisão domiciliária, malária, vícios urbanos,
E todos os anos, reveillon.

Roubamos a chave do abrigo, pilhamos,
Compramos cadeados, inventamos o perigo,
E sentamo-nos à sombra de uma laranjeira amarga
Que nos devolve o fel às entranhas,
Teias de aranha, lençol de seda rasgado,
Tisnado, corrupto, desmentido,
Forca para os nossos crimes,
Afago para a infância do ser.
De um trago, bebemos o barulho e o silêncio,
As realidades emaranhadas, a ficção dos nossos peitos,
E contrafeitos, rarefeitos, quase desfeitos,
Tornamos a içar velas, a afinar os sextantes,
Somos eternos amantes do desvario.

15/01/2010
20:05

quinta-feira, janeiro 14, 2010

Pressentimento.

Trevas no meu pensamento
De cores vestidas,
Roubadas ao firmamento
Que as pintou à mão
Nas telas desimpedidas
Da nossa incauta paixão;
Tecem nas malhas do amor
Nós que não desatam
Envolvidos no torpor
Das esperas frias,
São navalhadas que matam
À nascença novos dias.

Como a voz desajeitada
Que derramo, e o peito ardente,
À noitinha, p'la calada,
De manhã, ao sol bem quente,
Perdido em toda a chegada,
Chegado num corpo ausente
Que de tanto se fez nada
No seu canto penitente.

Pensamento circular
Às voltas na mão,
Se esta paixão se acabar,
Se me acaba a dor,
Ficarei eu neste chão,
Rogarei em teu favor;
Pois se acaso me liberto,
Desta vez não vou
Dar-te o amor como certo,
Desta vez recuso
Dar aquilo que eu não sou,
Ser uma roca sem fuso.

Como história repetida,
Embrulhada, emaranhada
Numa teia mal tecida,
Uma história mal contada,
Numa palavra vencida,
Numa boca derrotada,
Na batalha destemida,
No gesto da derrocada,
Na palavra concedida,
Na palavra torturada,
Em palavras dito a vida
À vida despedaçada,
No estertor da despedida,
No deserto da calçada,
Na fogueira desmedida
A palavra incinerada,
Em cinzas feita e vivida,
Fogueira enfim apagada.

14/01/2010
8:20

segunda-feira, janeiro 11, 2010

Carta para um desconhecido...

Deflagravam ilusões, no banco do terraço molhado pela chuva das camélias…

Fazes ideia de onde venho? Ou para onde vou?

Não sabes, mas cuidavas de mim e eu de ti. Só assim podia ser…

Sou um anjo ilusionista que observa o teu rosto. Não queiras adivinhar mais…

Vê o que és para mim. Não me conheces?

Não me conheces ainda mais?



(Por Vanessa Marques.)

quinta-feira, janeiro 07, 2010

Colectânea Proverbial.

Um Deus que tanto esbanja como poupa,
Sem consideração p'los seus clientes,
Não pode dar o frio conforme a roupa
Pois dá Deus nozes a quem não tem dentes.

Sabes que o dinheiro custa a ganhar
Mas não vale um amigo verdadeiro;
Não sei o que este povo quer pensar
Quando enfim se diz que o tempo é dinheiro.

Que feche a porta quem vier atrás,
Cantando o espírito se ergue e se eleva,
Pois sempre pouco e em paz muito se faz
Já que quem à guerra vai, dá e leva.

São tantas lições que o senso comum
Vai ensinando e a gente 'inda se indaga;
Por mim já posso passar ao jejum:
Já sei que amor com mais amor se paga.

07/01/2009
19:01

quarta-feira, janeiro 06, 2010

Eisegese.

Em conversa com os deuses mais notáveis
Que a singela humanidade, à sua imagem
Concebeu, lancei-me em ousada abordagem
Hermenêutica de planos insondáveis;

Encetei-a com dissertações saudáveis
Respeitantes aos limites da linguagem:
Por que aos homens vedas a real mensagem
Encerrada em acepções impermeáveis?

Desta forma interpeladas, divindades
De diversas confissões e qualidades
Ao silêncio sobranceiro se remetem;

Pois assim desprezo os lustres que prometem,
Que se fiquem com os dogmas que submetem
Que eu cá fico co'as minhas próprias verdades.


Se acaso havia de voltar-me p'r'a escritura,
Passo os meus termos pelos de outra criatura.

07/01/2010
0:12