quinta-feira, julho 19, 2007

Desmistificação.

Gargantas de inveja num mundo de percevejos,
Com pus e sangue a brotar de inúmeras janelas róseas
Com vista para o rio.

A cidade ficou distante dos olhares indiscretos dos transeuntes,
Que já só admiram, com disfarçada consternação,
Uma ébria moldura de caixilhos pré-fabricados.

Jogos infantis pontuam as marés entre a fome e a lascívia,
Enquanto nas horas mortas as bruxas vagueiam pela ignomínia da bruma
De uma qualquer viela desfasada da contemporaneidade.

E as safiras outrora lançadas ao desalento
Perpetuam agora,
Embelezando ostensivas tiaras de inglório ensejo.

Rápido,
Porque o momento é incerto
E tudo o que não for agora jamais será ontem.

E a não ser a minha loucura,
Todas as insanidades são poeira estelar
Neste, portanto, recanto à beira do precipício.

Somos apenas suricatas;
E possuimos garras de lume
Para perseguir a vida que não existe.

19/07/2007
4:26

quarta-feira, julho 18, 2007

Indeterminações...

Gosto de rir porque os meus dedos...
Acendo duas...
Regradas ameias em que me...
Sou tanto de mim como de...
As pálidas aguarelas que...
A minha vesícula chove.

Milhafres são as duas sombras que ontem...
A paz de espírito de saber quantas...
Abcessos tumultuosos de muitas...
As vontades vertidas no vento vago e...
Chilrear como as...
Às vezes, a mais ténue sensação de...
Mas enfim, todos os felinos despojados das minhas...
Tardes em que eu...
Cardamomo e segurelha em vez de nudez.


O que...?

18/07/2007
5:48

segunda-feira, julho 16, 2007

No dia anterior...

Apetece-me abraçar o diâmetro terrestre,
Fazendo dos meus dois braços anéis como os de Saturno,
E sentir desse modo o biorritmo frenético das profundezas a repicar como um carrilhão no meu peito.


(Quando, no dia anterior, após um magnífico ocaso que o céu deixou, por alguns, breves, instantes, marchetado de invulgares tonalidades, ao contemplar o último estertor luminoso, efémero despojo de um dia como tantos outros, mas apenas igual a si próprio, uma ave cuja taxonomia me era desconhecida, de penugem macia e colorida, e que soltava despreocupadamente majestosos trinados, entrou pela minha janela entreaberta, pousou sobre o meu ombro descaído, e segredou-me, num suave murmúrio, a verdadeira beleza de ser. Depois, voou.)

16/07/2007
0:43

terça-feira, julho 10, 2007

Efeito Casimir.

No emaranhado quântico de consciências a que chamamos Universo,
A existência não é mais do que um capricho de Deus
Que um dia, farto de estar sozinho,
Bocejou despreocupadamente a realidade.

Depois, com o pulsar desmedido de inumeráveis oscilações microscópicas,
Deleitou-se com o seu reflexo no espelho da incerteza,
E assim, emudecido, se quedou por um ou dois instantes
Que mais pareceram o somatório de múltiplas putativas eternidades.

Entretanto, como era cedo, havia ainda uma subtil névoa matutina a envolver a Criação,
Impedindo que a sua mente apreendesse com clareza imaculada a natureza metafísica daquilo que brotara.

Neste impasse giratório,
Inventou o código Morse e os números primos,
E desvendou-se em ligeiras prestações ao sedento mundo que evasivamente concebera.

Quando, finalmente, se encontrou agrilhoado ao códice bolorento da história,
Mergulhou o espaço e o tempo na tinta da invisibilidade,
Para que vivêssemos sempre com a sensação de que os possuíamos mesmo sem os compreendermos na sua plenitude.

De fraque criteriosamente engomado,
Vestir-se-á amanhã para o meu funeral,
E então tudo cessará antes mesmo de ter começado,
Numa manifestação sempre latente que viveu inteiramente na minha própria latência.

10/07/2007
1:43

sexta-feira, julho 06, 2007

Dias rasgados.

Pedaços de tempo que se vão consumindo irreversivelmente...
Pedaços de vida que ardem vigorosamente enquanto o lume é forte,
E que depois se vão tornando em brandas brasas incandescentes,
Para se virem, inexoravelmente, a extinguir num derradeiro sopro de nada...
Enfim, páginas rasgadas uma a uma à bíblia da existência, até à última folha que tomba, efémera, na escuridão...
E depois disso...
O silêncio.

04/07/2007
22:22

quinta-feira, julho 05, 2007

Talvez...

Talvez seja apenas a investida constantemente revisitada do vazio...
Talvez apenas a incerteza, mácula bucólica impaciente de estertor...
Talvez verdades enleadas em folhagens agrestes, quase lúgubres...
Talvez uma inodora vertigem de adrenalina degenerada...
Talvez a respiração arfante de um andaime suspenso do chão...
Talvez a impoderável valsa das marés-vivas dos meus tornozelos...
Talvez justamente o resfolgar dos meus lençóis cor de coisas...
Talvez as vagens informes que segregam verdes bagas vermelhas...
Talvez mares de prostração impaciente e pesca desportiva...
Talvez sensações de hibridação mutagénica...
Talvez alienígenas que me raptam de onde não serei...
Talvez eu, de punhal em chamas, num areal negro e salgado, com as mãos algemadas e a corda atada ao pescoço...
Talvez eu, de punhal em chamas, me encontre ao virar da próxima esquina...
Isso, ou talvez a sombra...
Talvez...

05/07/2007
1:28

segunda-feira, julho 02, 2007

Vivendo no fado.

Dolente, a soluçar, uma guitarra,
Em notas de profundo sentimento,
Que me liberta só por um momento
Do negro pranto a que esta dor me amarra.

Acordes que ressoam aturdidos
No fundo da minh’alma dolorida
E acendem uma saudade sentida
De tempos já pelo tempo esquecidos.

É nesses sons plangentes que me escuto,
Num choro que traduzo no meu fado,
E neles evoco águas do passado
Que vogo agora em fragatas de luto.

Das cordas solta-se a voz murmurante
Que embala com brandura este meu canto;
Se apenas no fado esqueço o meu pranto,
Que eu viva, então, no fado a cada instante.

26/06/2007
5:32


(Para cantar com a música do "Fado Licas", de Armando Machado.)