sábado, março 27, 2010

Tráfego.

Há linhas pintadas na estrada
Com tinta invisível,
Manchadas da cor combustível
Na berma entornada;
Percorre-as o ser indisposto
Do medo estampado no rosto,
Da dúvida presa, indizível
À boca fechada.

À margem tropeça a vontade
Por trilhos sem dono
E o cheiro da tinta sem sono
Polui a cidade
Das sendas, dos arruamentos;
Desvenda-se em mil cruzamentos
O reino das almas sem trono
Que a dúvida invade.

São milhas a perder de vista
De estradas abertas
No chão das escolhas incertas,
No chão da conquista,
E as horas circulam sem conta
Por todas as horas de ponta;
São sonhos em estado de alerta
Nas curvas da pista.

27/03/2010
15:15

quinta-feira, março 25, 2010

O Cabo do Coração.

Além dos sonhos devassos,
Além do tempo sozinho;
Um corpo feito em pedaços
Que amontoam nos espaços
O seu desfeito caminho.

Além-mar, além da terra,
Além da vida fechada;
Garganta que brame e que berra
No desespero da guerra
P'ra que partiu enganada.

Além dos credos da gente,
Além do véu dos segredos;
Um homem de alma temente
Reza ao destino inclemente
Com a miséria entre os dedos.

Além do pouco que sobra,
Além da própria razão;
A juventude que cobra
Uma virtude que dobra
O cabo do coração.

25/03/2010
15:03

quarta-feira, março 24, 2010

Rapina.

De nuvens trajas, altiva,
E as brisas tomas por casas
Na ventania que aviva
O bater das tuas asas.

Maruja do mar imenso,
Oceano de saudade,
Não sei se ao teu mar pertenço,
Se é tua a minha sentença,
Nem sei se ao teu mar pertença
Ou se nade em liberdade.

Das chuvas fazes teu pranto
Embalado em tempestades;
És mãe de todo o encanto
De mascaradas verdades.

Capitã desse veleiro
Que navega entre marés,
Não sei se sou verdadeiro,
Se és a condição primeira,
Nem sei se és tu verdadeira
Ou nada mais que altivez.

O horizonte profanas
Co'a tua graça menina,
E a turba toda que enganas
Sabe já que és de rapina.

És ave da rebeldia,
És senhora nas alturas,
E eu só não sei se algum dia
Virás de olhar menos frio
Encher-me o copo vazio
Só p'ra deixar-me às escuras.

24/03/2010
14:38

terça-feira, março 23, 2010

Romance.

Dissolvo a espera gritante
Que há na prisão dos teus passos
Neste licor bilioso,
Instante de dor,
No cigarro tortuoso,
Premissa de amor
Que há-de esta espera calar
Com voz de lábios e braços
E a partitura que trazes no olhar.

Devolvo ao ser indulgente
A minha voz diluída
No coro das nossas mãos,
Semente de amor,
Somos dois corpos irmãos,
Somos da mesma cor
Que há-de pintar a doçura
Desta paixão foragida
Na tela acesa da nossa loucura.

Revolvo o aroma que adoça
Boca que busca o divino
Nas ervas todas do monte
Da nossa afeição,
Bebo da água da fonte
Que entorna no chão
Aos nossos pés as promessas
Que movem sonho e destino
Para a frente e para trás e às avessas.

23/03/2010
14:55

quinta-feira, março 18, 2010

Atlântida.

Somos ruminantes de memórias,
Assolados pelas nossas próprias façanhas,
De entranhas revolvidas e infame prosápia;
Somos o cerco à cidadela, foice em seara de melindre,
Cacos dispersos na tumba dos possíveis,
Tagarelas araras que se enaltecem de imitações vazias,
Cortejo de saltimbancos sem amo,
A fácies grotesca de um demo desgovernado.

Somos ruminantes da história;
Mastigamo-la, vezes e vezes sem conta,
Uma reprodução sucessiva, incessante, de depravações mal sepultadas,
Dos mesmos trilhos viciosos hoje manchados do sangue de heróis desviados.
Somos apenas ruminantes,
Ainda que pudéssemos ir além dos quatro cascos
E galgar o tempo como suas gotas,
Ser o ar de que se nutre quando, em debandada,
Se entrega nas mãos do Mestre,
Servo e senhor fundidos num talismã de fresco embalo.

Somos ruminantes da alma,
Consumados adúlteros de amores vendados,
De olhos abertos mas vidrados,
Envenenados até ao âmago da senciência.
Somos a bestialidade dos deuses e a divindade da besta,
Encurralados entre planos que nos transcendem,
Largados sem instrução à mercê dos videntes,
E de dentes tão cruelmente desenhados para ruminar,
A fraude do pai tirano.

Somos ruminantes.
Somos a escória da vida, o cancro da Terra,
A natureza virulenta da sistémica do mundo.
Somos a casta dos vampiros,
Somos todas as desgraças futuras,
Somos todas as profecias de treva,
O exército sem amo, desgovernado, ruminante,
O cortejo de saltimbancos, a foice macabra, a lâmina sedenta...
Somos um resíduo parasita, um simbionte intrincado,
A revelação inadmissível do ciclo supremo:
Não há quem nos subjugue,
Nem quem se vergue ao nosso desespero.
Somos bonecas de porcelana num palco alugado e armadilhado,
Marionetas sem cordas,
O expoente máximo do desvario da existência
Que é louca.
Louca.
Pouca...
E, em tempo devido, será rouca.

Nem ruminantes, nem simbiontes; somos o rift no abismo das ideias,
A fossa abissal das verdadeiras formas,
Os carrascos de um mundo já submerso.
Somos Atlantes, de orgulho ferido e corrompido.
Somos herdeiros da escravidão de todos os tempos,
Agrilhoados às ferragens cáusticas da nossa imensa incompletude,
Algemados uns aos outros sem inimigo comum.
Somos o augúrio da Atlântida,
Em segredo mascarados de homens e mulheres,
Guardiões da emboscada, penhores de esperanças sortidas,
E paleontólogos da vida que, sem querer, transportamos para além da vida,
Para além do tempo,
Para além de mim, de ti, de todos.

18/03/2010
15:43

quarta-feira, março 17, 2010

Oráculo do Espelho.

Sigo o movimento da página com o olhar.
Nas margens, a folha encarquilha-se ao toque.
Sinto, no seu ondear constante, letras que em breve terão morada,
Que serão povo ordeiro e sereno
E farão história das mesmas histórias que se lhes lê no ventre.
Haverá vogais devotas ao seu farto colorido, à sua promessa de voz
Na vasta imensidão, consoante a rigidez do desígnio;
Haverá outras menos capazes, talvez confusas…
Mas todas aderem à alva rugosidade com o espírito afoito do indício:
Formas ocultas na lua nova que o poeta invoca para se vestir.
Sente-se a humidade da dúvida
Que entorna a esmo todas as ideias no leito purpúreo, marmóreo,
Rio navegável só por atrevimento.
Sente-se a vontade visceral, o sentimento inegável,
A variável contínua que jorra em sentidos por sentir,
Sentidos alheios aos sentidos,
Sentidos de sentidos sem sentido,
Como jogar às escondidas com o próprio nome.

Eu sou o limbo incombustível,
A face rubra, o olhar desmaiado sobre a página
Que desinquieta as palavras e as pastoreia sem vigia;
Um nome que quer ser escrito para, enfim, ser liberto,
Ser a razão que não demora, o conto, a fábula, o mito…

A página foge sob dedos que a não sabem segurar,
Que a amarrotam em expectativa e a negligenciam.
São carrascos sem consciência, amorais,
E a sua tortura carrega o fardo da vida inteira,
Anos após anos acumulado e faminto.
Está feito o desafio: o duelo é iminente, emergente,
Como se a sua resolução fosse resposta para todos os dias,
Como se a sede que o move fosse o bastião da humanidade,
Dimensão última das tremuras que a percorre,
A derradeira contemplação na fresta humilde que nos resta.

Eu sou a gárgula, o vampiro, a quimera mais obscena,
Sou um polímero articulado, uma seiva aromática, um caudaloso ribeiro
No barranco das sentenças.
Tenho uma página que se incendeia
E um oceano de brigas para exilar nos seus desfiladeiros,
Arquipélagos de instantes que solidificam nas águas gélidas,
No frio portentoso do tempo.

17/03/2010
6:19

sábado, março 06, 2010

Quem será, serei, seremos...

Quem sou nos passos que dou,
E quem nos passos retrato
Dados nas ruas que sou
Quando não sou os meus passos,
Quando o retrato são traços
E braços ao desbarato?

Quem és nas coisas que fazes,
E quem nas coisas que são
As coisas que és e que trazes
No que não és em geral,
Te faz ser acidental
Em tantas coisas então?

Quem somos na luz difusa,
Luz fria, luz sombra oculta
Que é luz que somos, oclusa,
Luz infusa destes seres
Deuses, homens e mulheres,
Deuses, luz na sombra adulta?

Quem serão, no ser, supremos
Trovões de chamas e gumes,
Quem será, serei, seremos
Serenos seres de nada,
Corpo de gumes, espada,
E alma de chamas e lumes?

06/03/2010
11:31

quinta-feira, março 04, 2010

Improviso.

Deixa escorrer a areia chão das ampulhetas,
Rede que enleia o esvoaçar das borboletas,
E pelas frestas, pontas soltas no destino,
Trocam-se as voltas do seu rigor peregrino.

Faz dos buracos auto-estradas de vontade
Nas trovoadas do desejo em liberdade,
Comete o crime original de ser apenas
Essencial na espuma das coisas pequenas.

Traz na bagagem todo o verde da esperança,
Mar que se perde num horizonte que avança
E tisna os dias da brancura do sorriso
Que acende a boca em melodias de improviso.

Deixa o relógio na parede e faz-te à vida
Que a sede aguarda os rios da terra prometida;
Virá quem ouse içar a vela ao desafio
E navegar contra a corrente em novo rio.

Desata o tempo e corta amarras que as gaivotas,
Co'as suas danças, farão garras tão remotas;
Segue-se a margem inventada dos futuros
Numa parada de corações em apuros.

Dá-me uma mão, de mão em mão se asfalta o sonho;
Na mão que falta entrego a mão com que transponho
A solidão que em vez de fogo se faz vento
Que espalha sementes no chão do sentimento.

Deixa que as horas sejam horas verdadeiras,
Horas que beijam nos lábios, horas inteiras,
E que essas horas façam rir às gargalhadas
Todas as horas que hão-de vir nas horas dadas.

04/03/2010
16:31

quarta-feira, março 03, 2010

Urbanismo.

As cidades são cheias de gentes no vazio das horas;
Pelas ruas caminham, tropeçam as pernas cansadas
Dos murmúrios vencidos em esquinas de betão armadas,
Vão com rumos que não são os seus, são loucas demoras.

Edifícios erguidos à glória de um tempo em suspenso
Aos meus olhos retorquem imagens que incendeiam, vivas,
Tentações fundeadas no lodo das almas cativas
No vai-vem incessante e austero que anula o bom senso.

São semblantes vidrados, opacos às curvas e esferas;
Sonham noites e dias inteiros sem fé que os sustente;
Fazem rezas, desfiam rosários de um deus indecente,
Embalando consigo as ausências, contando as esperas.

02/03/2010
11:25

terça-feira, março 02, 2010

Andor.

Vou à boleia neste andor de imagens ocas,
Gessos sem alma, ardósias negras que amparam
Os versos toscos que nascem nas muitas bocas
Em coro abertas entre abismos que as separam.

Sigo nessa hipnose turva e peregrina
De mãos e braços enredados em peçonha,
Pérfido assombro da vontade que domina
A turba dócil que se alista por vergonha.

Segue o cortejo em vivos cânticos ao medo
Que, sem escrutínio, faz zurzir o seu chicote
E assim conduz manso rebanho ao som de um credo
Que arranca à dúvida as raízes do boicote.

Pertenço ao préstito dos fiéis complacentes
Na fila estreita que me conduz à extinção;
Serei mais uma fotocópia entre excedentes,
Ou a centelha de uma nova procissão?

Farei socalcos com meus pés noutros caminhos
Que, percorridos, sejam porto de outra costa?
No chão calcado nascem frescos burburinhos,
Na minha mão e no meu ser mora a resposta.

02/03/2010
16:07

segunda-feira, março 01, 2010

Machado de Guerra.

Tenho um machado de guerra forjado em fogo fátuo,
Resplandecente dos furores que me não deixam dormir,
Faca de mato que desarvora os sentidos,
Sabre de luz que afasta o bréu dos pensamentos.

Tenho um machado de guerra que assola mundos,
Uns fronteiriços, outros longínquos, alguns sonhados,
E do meu berço leva o sonho,
Dobra o destino
Nos seus clangores como acordes dissonantes.

Tenho um machado de guerra destemido e petulante,
Ávido das seivas viscosas que derrama,
Sangue que ferve na veia e se sublima na lâmina
Em fumarolas sulfurosas, incandescentes,
O vulcanismo da alma, a tectónica do ser.

Tenho um machado manchado da guerra,
Com cicatrizes antigas e feridas ainda abertas,
E nas suas faces, tatuado em golpes impiedosos,
Lê-se a epopeia grotesca dos dias que me precedem,
E adivinha-se,
Tantas vezes com malícia,
As noites de vigília que os versos em branco acalentam.

Tenho um machado que já foi de guerra,
Gasto em disputas frívolas, em bandeiras só de pano,
Sem dimensão,
E em campanhas de meias verdades que parasitam o meu juízo.
Escavo-lhe honroso sepulcro,
E ao lançar-lhe o último punhado de terra árida,
Enterrado o meu estertor errático, um batalhão inteiro desmantelado,
Vejo o reflexo dos meus olhos na laje polida,
E pela primeira vez reconheço-me.

Tive um machado de guerra.
Agora tenho-me a mim.

01/03/2010
15:52