quarta-feira, março 17, 2010

Oráculo do Espelho.

Sigo o movimento da página com o olhar.
Nas margens, a folha encarquilha-se ao toque.
Sinto, no seu ondear constante, letras que em breve terão morada,
Que serão povo ordeiro e sereno
E farão história das mesmas histórias que se lhes lê no ventre.
Haverá vogais devotas ao seu farto colorido, à sua promessa de voz
Na vasta imensidão, consoante a rigidez do desígnio;
Haverá outras menos capazes, talvez confusas…
Mas todas aderem à alva rugosidade com o espírito afoito do indício:
Formas ocultas na lua nova que o poeta invoca para se vestir.
Sente-se a humidade da dúvida
Que entorna a esmo todas as ideias no leito purpúreo, marmóreo,
Rio navegável só por atrevimento.
Sente-se a vontade visceral, o sentimento inegável,
A variável contínua que jorra em sentidos por sentir,
Sentidos alheios aos sentidos,
Sentidos de sentidos sem sentido,
Como jogar às escondidas com o próprio nome.

Eu sou o limbo incombustível,
A face rubra, o olhar desmaiado sobre a página
Que desinquieta as palavras e as pastoreia sem vigia;
Um nome que quer ser escrito para, enfim, ser liberto,
Ser a razão que não demora, o conto, a fábula, o mito…

A página foge sob dedos que a não sabem segurar,
Que a amarrotam em expectativa e a negligenciam.
São carrascos sem consciência, amorais,
E a sua tortura carrega o fardo da vida inteira,
Anos após anos acumulado e faminto.
Está feito o desafio: o duelo é iminente, emergente,
Como se a sua resolução fosse resposta para todos os dias,
Como se a sede que o move fosse o bastião da humanidade,
Dimensão última das tremuras que a percorre,
A derradeira contemplação na fresta humilde que nos resta.

Eu sou a gárgula, o vampiro, a quimera mais obscena,
Sou um polímero articulado, uma seiva aromática, um caudaloso ribeiro
No barranco das sentenças.
Tenho uma página que se incendeia
E um oceano de brigas para exilar nos seus desfiladeiros,
Arquipélagos de instantes que solidificam nas águas gélidas,
No frio portentoso do tempo.

17/03/2010
6:19

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