quinta-feira, março 18, 2010

Atlântida.

Somos ruminantes de memórias,
Assolados pelas nossas próprias façanhas,
De entranhas revolvidas e infame prosápia;
Somos o cerco à cidadela, foice em seara de melindre,
Cacos dispersos na tumba dos possíveis,
Tagarelas araras que se enaltecem de imitações vazias,
Cortejo de saltimbancos sem amo,
A fácies grotesca de um demo desgovernado.

Somos ruminantes da história;
Mastigamo-la, vezes e vezes sem conta,
Uma reprodução sucessiva, incessante, de depravações mal sepultadas,
Dos mesmos trilhos viciosos hoje manchados do sangue de heróis desviados.
Somos apenas ruminantes,
Ainda que pudéssemos ir além dos quatro cascos
E galgar o tempo como suas gotas,
Ser o ar de que se nutre quando, em debandada,
Se entrega nas mãos do Mestre,
Servo e senhor fundidos num talismã de fresco embalo.

Somos ruminantes da alma,
Consumados adúlteros de amores vendados,
De olhos abertos mas vidrados,
Envenenados até ao âmago da senciência.
Somos a bestialidade dos deuses e a divindade da besta,
Encurralados entre planos que nos transcendem,
Largados sem instrução à mercê dos videntes,
E de dentes tão cruelmente desenhados para ruminar,
A fraude do pai tirano.

Somos ruminantes.
Somos a escória da vida, o cancro da Terra,
A natureza virulenta da sistémica do mundo.
Somos a casta dos vampiros,
Somos todas as desgraças futuras,
Somos todas as profecias de treva,
O exército sem amo, desgovernado, ruminante,
O cortejo de saltimbancos, a foice macabra, a lâmina sedenta...
Somos um resíduo parasita, um simbionte intrincado,
A revelação inadmissível do ciclo supremo:
Não há quem nos subjugue,
Nem quem se vergue ao nosso desespero.
Somos bonecas de porcelana num palco alugado e armadilhado,
Marionetas sem cordas,
O expoente máximo do desvario da existência
Que é louca.
Louca.
Pouca...
E, em tempo devido, será rouca.

Nem ruminantes, nem simbiontes; somos o rift no abismo das ideias,
A fossa abissal das verdadeiras formas,
Os carrascos de um mundo já submerso.
Somos Atlantes, de orgulho ferido e corrompido.
Somos herdeiros da escravidão de todos os tempos,
Agrilhoados às ferragens cáusticas da nossa imensa incompletude,
Algemados uns aos outros sem inimigo comum.
Somos o augúrio da Atlântida,
Em segredo mascarados de homens e mulheres,
Guardiões da emboscada, penhores de esperanças sortidas,
E paleontólogos da vida que, sem querer, transportamos para além da vida,
Para além do tempo,
Para além de mim, de ti, de todos.

18/03/2010
15:43

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