sexta-feira, janeiro 24, 2014

Complicação.


Quis escrever de cabeça
Uma rima feita à pressa
Que fosse fácil de ler.
Tropecei no dicionário,
Mudei o vocabulário
P'ra me fazer entender;

Vi palavras nunca vistas
Em brochuras nem revistas
Senão das mais eruditas;
Compliquei o meu discurso
E escrevinhei com recurso
A palavras inauditas.

Densa terminologia
Examinei noite e dia
Empolgado na comédia.
'Inda o verso era um zigoto,
Faltou-me um termo mais douto:
Pesquisei na enciclopédia.

Entre epítomes sumárias
E as dissertações mais várias
Não lograva o meu contento...
Vacilei na minha astúcia;
Seria pouca a minúcia
Ou estaria eu desatento?

P'ra tornar aos meus costumes
Pus de parte esses volumes,
Abandonei a recolha.
Cândida página albina
Numa alvura cristalina,
Estava em branco a minha folha...

«O que hei-de agora fazer
Se não sei o que escrever?»
Pensei com os meus botões;
«Quis escrever sem sentir,
Chegar antes de partir,
Fui meter-me em confusões.»

Voltei atrás co'as manias
De perseguir poesias
Com desmedido artifício.
Cerrei os olhos cansados,
Dei suspiros demorados
E retornei ao início.

Na branda meditação
Julguei passar-se o serão
Em mil ideias imerso;
Quando os olhos reabri
Fitei a página e vi
Ali nascido este verso.

Se estas coisas acontecem
Que concebidas parecem
Por desígnios transcendentes,
Há que analisar a fundo
O que é decerto fecundo
Em lições convenientes:

Quando as intenções são fúteis,
Os dicionários mais úteis
Não servem senão de algemas;
Vale mais um'alma cheia
De um sentir que não falseia
Ao sublimá-lo em poemas.

24/01/2014
23:33

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