sexta-feira, novembro 07, 2014

Caixa de fósforos.

Não consigo odiar ninguém. Mesmo que por vezes, por convenção ou circunstância, tente fazê-lo, o ódio que em mim se acende é como um fósforo, efémero, uma ténue chama que se extingue ao mais leve sopro ou abanão. Mais duradouras são as cinzas que ficam, frias, gélidas, prova material da fugaz presença de uma chama que se consumiu um vão. Permanecem algum tempo no meu chão, lembrando-me o instante em que sucumbi a sentimentos aversos, mas nunca chegam a amontoar-se, pois que se a chama perece na brisa suave, também as cinzas se dispersam no vento dos dias. Vencidas assim chamas e cinzas, resta apenas frio, ou melhor, um vazio de calor, uma flutuação local, um tremor quase imperceptível mas que em certas ocasiões ressoa na minha cabeça: "Odiaste!". É esta a marca que se agarra ao próprio corpo, o sinal indelével de um acto pecaminoso, odiar, que coisa feia, sem jeito, própria de homens maus.

E, contudo, falei de convenção e de circunstância, que é o mesmo que dizer o que é suposto e o que é instintivo, que é o mesmo que dizer o ódio que os outros esperam que eu sinta e o ódio que sinto quando os outros não sentem o que eu espero. Já experimentei ambos e são ambos inúteis, absurdos, chamas vãs e cinzas frias, nada acrescentam, nada ensinam, meros espasmos de alma.

Recordo-me, e por vezes ainda me deixo apanhar nessa armadilha, de sentir ódio por todos os políticos, entretidos nas suas perfídias, nos seus golpes, no seu desdém, nessa altivez rocambolesca que ostentam na falsidade dos fatos engomados e da presença constante em horário nobre, fabulistas perversos, sofistas, sacerdotes de um templo que mostra sinais de ruína, que ameaça abater-se sob o seu próprio peso, vil, pestilento, um dos maiores cancros da humanidade. Não que os odiasse deveras, numa animosidade convicta, mas evidentemente por convenção. Fossem outros os tempos, ou fosse outra a face da moeda em que me encontro, fosse a história uma outra história, enfim, fossem os homens homens melhores e melhores seriam também os políticos, os juízes, os banqueiros, os padres, os mecânicos de automóveis, as donas de casa e os traficantes de droga. Como todas as convenções, o ódio aos políticos é uma moda dos que não o são, dos que desejam sê-lo e não são capazes, dos que não abarcam a unidade complexa da nossa existência social, dos que se sentem injustiçados, e ainda dos que simplesmente não conseguem tomar para si qualquer responsabilidade sobre o mundo em que habitam.

Lembro-me também de, quando era criança, odiar alguns rapazes mais velhos que me atormentavam esporadicamente, mas neste momento em que recordo esses mesmos episódios, não encontro dentro de mim réstia sequer de rancor, nada, mera circunstância. Sempre, que odiei, fi-lo numa de duas modalidades, nenhuma das quais me sugere que tenha odiado verdadeiramente alguém, na sua plena acepção, apenas segui convenções e impulsos. Com o passar do tempo, as convenções foram-se revelando desinteressantes e as circuntâncias irrelevantes; os fósforos que agora acendo têm a madeira encharcada, ardem mal, são abortados à nascença. Não que o escolha conscientemente, é simplesmente assim: não sei odiar, não quero odiar, não encontro sentido nem proveito no ódio. E sinto-me bem com isso.

Gostava tanto de ser capaz de escrever numa expressão matemática ou numa receita como desconstruir o instinto de odiar, para que outros encharcassem os seus fósforos e as suas chamas logo se extinguissem e as suas cinzas depressam esvoaçassem no vento dos dias e o frio que ficasse se amenizasse no contacto mornos com os demais. Não sei explicar em teoremas nem revelações proféticas, não tenho métodos certificados nem remédios milagrosos, mas tenho a experiência de que é real, de que é possível, de que é bom. Se não de explicar, que seja ao menos capaz de inspirar, de despertar outros seres para o ridículo que é odiar por convenção, para a barbaridade de odiar por circunstância, e para a desolação que imagino serem os ódios mais profundos e severos, aqueles cuja chama não será mais um fósforo mas uma tocha, uma fogueira, um incêndio que se apossa da alma inteira, e já não são umas poucas cinzas frias levadas no vento dos dias, mas um mundo demolido, carbonizado, com a vida por um fio entre escombros estéreis e inóspitos. Esse é o maior perigo dos ódios-fósforo: um dia, há um que cai ainda aceso, quente, no bosque virgem da alma, e logo o incendeia implacável.

30/10/2014
11:55