quinta-feira, abril 15, 2010

Anzol.

I

Há peixe nas redes
E os braços contorcem-se na agitação
Sem paredes
Da embarcação.
Há que tornar ao casco encharcado do navio
As peças frescas de pescado
Subtraídas ao rio.
Poderia ser um oceano interminável;
Porém, os melindres da rima
Fazem-no simples rio navegável:
Rio abaixo, rio acima,
Nesta incessante azáfama piscatória
De que não há memória canseira igual...
Afinal, na correria extenuante
Que é, da traineira, sustento,
Toda e qualquer brincadeira
É uma roleta russa que gira,
Um pontapé de bicicleta na pira no próprio umbigo.
Há perigo de aluimento
E o vento que arrasa e desfaz
Todo e qualquer incapaz
Que ouse armar-se em audaz
Num mecanismo que não compreende,
Que transcende a polpa e a culpa e o heroísmo.

II

A lota marulha, abarrota
Da fome criminosa da patrulha
Na madrugada sinuosa.
Das águas chegam marítimos
Com os seus tesouros ilegítimos,
Colhendo os louros da chacina inimputável
De que foram protagonistas,
Contrabandistas da incontestável providência das ondas,
Credores da impaciência de gentes de almas redondas,
Indistintas,
Retorcidas esporas da incerteza
De muitas horas famintas.

III

Hoje há mercado na aldeia.
Compra-se o pescado e o roubado;
A miséria regateia
E o preço oscila conforme os dentes da alcateia;
Fazem fila os clientes
E, por mais que empurrem e reclamem,
Por mais nomes que chamem e pragas que roguem,
Por mais que se afoguem e se esfolem e distribuam sabotagem,
Continuam em clara desvantagem,
E nem boicote, nem decote,
Nem ameaça, nem chicote,
Os resgata à crassa desgraça
Feita espectáculo na praça dos saltimbancos.

A garra, a presa, o tentáculo,
E o patrão do tabernáculo
Que se lambuza das mais tenras postas
Tem olhos nas costas
Se a situação é intrusa
E as chaves todas na mão
Das celas da sua prisão
E todas as velas e motores
De todos os pescadores do seu batalhão.


"Um passo em falso e sobes ao cadafalso. Palhaço! Brinquedo!
Domina o teu medo e engole o orgulho,
Ensaia o mergulho e faz-te à vida.
Não faças tanto barulho,
Não comas tanta comida.
Eu sou teu amo e senhor,
Sejas tu soberano ou pescador.
Por isso, humano, lança-me os barcos ao mar,
Aprende a navegar e faz-te alguém
Em vez de vires espalhar o teu desdém
Por quem de ti se alimenta
Por ser o rei leão desta selva
Que não conhece outra cor
Senão a cinzenta, pescador!"

IV

Tenho três filhos e uma sardinha.
Da espinha faço um caldo;
Escaldo o pão duro na água imunda do poço
E o pescoço fica para o gato
E a sua pelica e corcunda.
Três ervilhas no prato para três filhas,
E o resto do vinho para o vizinho entrevado,
Ainda ontem homem rijo
E hoje sujo e acabado,
Velho marujo atracado num esconderijo arruinado.

Vim do mercado de mãos vazias.
As bancadas frias escondiam-se para lá da multidão esfomeada,
Um regimento inteiro à procura de alimento,
Que não encontra nada
Na escura consternação, no vão lamento
Da madrugada madura.
Amanhã regresso,
Repito o processo,
Aflito da pobreza que me assombra.
Só a fé me move ainda nesta tristeza
Que chove dos olhos cansados
Em molhos de sonhos arrancados pela raiz.
Estou velho como o vizinho,
Infeliz,
Sozinho, vencido,
Parco pai e fraco marido,
Perdido num covil de feras das mais selvagens e ferozes,
Atrozes, que devoram pastagens e aldeias,
Que consomem as Primaveras alheias
E desfilam com as suas barrigas cheias.

14/04/2010
18:06

2 comentários:

Anónimo disse...

Com este anzol, nem uma alforreca pescas!!!...

Ela disse...

Já voltavas...!