Quando a olhei, sem qualquer reserva nem temor, olhos fixos nos seus não-olhos e um imenso abismo inescrutável nos intersticiais centímetros que nos separavam, contra todas as expectativas, até mesmo as mais favoráveis, nada aconteceu. O vento soprou da mesma forma morna e vagarosa e, da mesma forma, ao seu sabor se agitaram copas e ramagens, arbustos, estevas e silvados; o sol manteve-se firme no seu frágil zénite de inverno, e a lua espreitava, imóvel, por detrás de um canavial, ambos alheios aos volúveis destinos dos homens. O incêndio, esse lavrava o espesso mato a um ritmo estonteante, como se acordado fora de um demorado sono de abstinência e jejum e quisesse agora compensar de um tão esforçado hiato o seu voraz apetite, devorando, em labaredas frias, hectares a perder de vista de pinheiros e eucaliptos com a ligeireza de quem trinca uma maçã e sente o seu sumo a escorrer-lhe pela face, agridoce.
Olhei-a, dizia eu, desafiando tudo aquilo que representava e, repito, sem o temer, talvez à custa de fantasmas que me assombravam o discernimento ou de areias caídas de uma ampulheta já quebrada, embora ainda poderosas fossem as suas influências no marulhar indeterminado do agora. Quem teme, teme o que desconhece, o que não pode conhecer, e também aquilo que, conhecendo, não compreende; veja-se o exemplo do exemplar cristão que a Deus é temente sem que da noção do divino tenha real entendimento. Como poderia eu temer aquilo que tão intensamente conhecera e tão profundamente compreendera, ainda que na memória se materializassem todas as dores sofridas e não sofridas que a tomada de consciência acarretara, suplício de ignomínias indizíveis?
Falo-vos, pois bem, do meu duelo muito pessoal com esse inominável ceifeiro de almas que, sem prévio aviso ou abertura ao diálogo e, porventura, a uma negociação que pudesse suprir as vontades de ambas as partes, desempenha o seu singular ofício, único nos vários planos espalhados, ao longo das eras, pelas mais diversas e criativas mitologias: paraísos, infernos, purgatórios e olimpos. Versado que me considero em vocabulário menos vernáculo e em construções sintácticas de complexidade acrescida, coordenando e subordinando orações ao sabor de um bel-prazer inconstante e caprichoso, não posso, ainda assim, assegurar que o meu discurso faça verdadeira justiça às sensações e aos cenários que senti e a que assisti, indício de um não sei quê de transcendente no assunto que discorro.
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1 comentário:
"Que importa que o coração, diga que sim ou que não, se continua a viver"
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