sexta-feira, outubro 22, 2010

Fresco.

Cristalizar a saudade
No âmbar do teu olhar:
Tapar a boca à verdade
Por te não poder tocar.



I
Pinto na alma despida
O sacrilégio da espera,
Este silêncio que impera
No trono da minha vida;
Com a força destemida
De quem reconta a verdade,
Pincelo a minha vontade,
Desenho, enfim, sem saber,
O capricho de poder
Cristalizar a saudade.

II
Tiara de flores te ponho
Sobre os cabelos na tela
E agito, na aguarela,
A transparência do sonho;
Enquanto arde, medonho,
O instante de recordar,
Invisto todo o vagar
Numa ousada insensatez:
Parar o tempo de vez
No âmbar do teu olhar.

III
Sou um rochedo açoitado
Pelo temporal dos dias
Que, nas suas maresias,
Cumprem, da noite, o reinado;
Sou um louco castigado
Na fúria da tempestade,
Na fúria que, assim, me invade
O espírito em vendaval
Que só deseja, afinal,
Tapar a boca à verdade.

IV
Tal a ânsia é de esconder
De mim mesmo este sufoco
Que, de enganar, ando louco,
A razão do meu viver;
Pinto à sede de beber
Dessa nascente sem par,
Boca que quero beijar
Mesmo na ausência de boca,
Alma que a minha põe louca
Por te não poder tocar.

22/10/2010
5:49

segunda-feira, outubro 18, 2010

Transdutor.

Sorvo a matéria insípida da linguagem
Por entre os lábios ressequidos;
Pasmo perante a vocabular paisagem
Que transborda entre os séculos repetidos;
Rezo a semântica em constante aprendizagem,
Recito os versículos adormecidos;
E após atingido o contorno da imagem,
Lavo o rosto aos meus dedos vencidos.

Depois recomeço outra epopeia:
A palavra na mão que golpeia,
E o golpe errante na mão que se demora
É de dentro para fora.

Reciclo o material plástico das imagens;
Reformo a prisão dos signos foscos;
Entrelaço cordas vocais, pensamentos... as mais paragens
Que dão guarida aos meus sentimentos toscos.
Elevo estes vislumbres de sentido
Ao expoente das parábolas incorpóreas:
Cometo herética convergência, divertido,
Entre os sonhos reais e as falsas memórias.

18/10/2010
13:39

sábado, outubro 02, 2010

Agora!

"Nada", disse-me o tempo entre dentes,
Do alto da sua arrogância, das profundezas do seu contínuo de incertezas,
Conhecedor das ciladas todas do colar das eras,
Pérolas pálidas presas por fio de sonho.

"Ninguém", ousou gritar-me o vento da história,
A radiação cósmica de fundo que embala os destinos
Com o seu trecho abjecto da melodia dos presentes.
Tive frio.

"Longe", exclamou a memória em chamas,
O peito inflamado com as dores do mundo,
As chagas purulentas da gosma pútrida de todas as partículas em rota de colisão.
Cenário desolado, desoladora esperança,
A crença inconformada, desinteressada, no sistema de reciclagem dos deuses.

"Nunca", murmurou uma sombra esmorecida, caquéctica,
Um espectro policromático da fusão nuclear dos desejos,
A orbe infecta do capricho das vontades, manchada de sangue, banhada a ouro.
Fui profanado pela excentricidade das orbitais moleculares
Tecidas pelos olhares inflexíveis da Mãe,
Vendidas a retalho pelo Pai capitalista,
E pela primeira vez senti a humidade nos pulmões,
Uma vida insuflada, bombeada a alta pressão,
Directamente no tumor que, assim, deixava de ser.


"Agora!"

02/10/2010
18:51