quarta-feira, dezembro 30, 2009
terça-feira, dezembro 22, 2009
segunda-feira, dezembro 21, 2009
terça-feira, dezembro 15, 2009
Dilema.
Se presto tão suposta vassalagem
Ao patronato estéril que nos guia
Pesa-me a consciência, ou não seria
O meu discernimento, ampla paisagem
Capaz de abrir caminhos de coragem
E de malabarismo de alegria,
Contando que, em chegando ao fim o dia,
Atentamente o escuto em sã paragem.
Mas se hei-de equilibrar-me sem suporte
Que, estável, me aconchegue e dê estrutura
P’ra sustentar a vida antes antes da morte;
Em vão, conduzo com mão imatura
Um trapézio sem rede e posto à sorte
De dois braços que se abrem em censura.
07/12/2009
13:16
Ao patronato estéril que nos guia
Pesa-me a consciência, ou não seria
O meu discernimento, ampla paisagem
Capaz de abrir caminhos de coragem
E de malabarismo de alegria,
Contando que, em chegando ao fim o dia,
Atentamente o escuto em sã paragem.
Mas se hei-de equilibrar-me sem suporte
Que, estável, me aconchegue e dê estrutura
P’ra sustentar a vida antes antes da morte;
Em vão, conduzo com mão imatura
Um trapézio sem rede e posto à sorte
De dois braços que se abrem em censura.
07/12/2009
13:16
segunda-feira, dezembro 14, 2009
Epístola Apócrifa.
Em verdade vos digo, desolado,
Que embora minta, o meu nome é masmorra;
Sodoma é o meu corpo mutilado,
E o sangue um licor néscio de Gomorra.
Nas orações que espalho em homilias,
Disfarço o meu sadismo imaculado,
E os corações que envolvo em heresias
Remetem-se, em silêncio, ao pecado.
E segrego na fonte, em meu juízo
Quem digno for de conhecer o eterno;
Mas, só, percorro em vão o Paraíso
Enquanto invejo as glórias do Inferno.
06/12/2009
1:28
Que embora minta, o meu nome é masmorra;
Sodoma é o meu corpo mutilado,
E o sangue um licor néscio de Gomorra.
Nas orações que espalho em homilias,
Disfarço o meu sadismo imaculado,
E os corações que envolvo em heresias
Remetem-se, em silêncio, ao pecado.
E segrego na fonte, em meu juízo
Quem digno for de conhecer o eterno;
Mas, só, percorro em vão o Paraíso
Enquanto invejo as glórias do Inferno.
06/12/2009
1:28
sexta-feira, dezembro 11, 2009
História da Arte (da pintura rupestre ao surrealismo...)
Reminiscência da constante cosmológica,
Abismo em chamas de um Hades outrora vivo,
Esfera celeste, poetisa escatológica
Que afoga o tempo entristecido sem motivo.
Radiação de tanto lixo nuclear,
Mercúrio líquido, volátil e sangrento,
E a história inteira num só mantra secular
Que embala o mundo no seu tosco movimento.
Rédeas de sombra e marionetas disfarçadas,
Vozes distantes que anunciam dissabores,
Pátrias apátridas de fronteiras rasgadas
Que amparam sobras de amarguras e rancores.
Rochedo agreste no promontório dos crentes,
Armada insípida na patrulha dos medos,
Âncora frágil que entrelaça dissidentes
E outros mais que se aborrecem nos seus credos.
07/12/2009
11:13
Abismo em chamas de um Hades outrora vivo,
Esfera celeste, poetisa escatológica
Que afoga o tempo entristecido sem motivo.
Radiação de tanto lixo nuclear,
Mercúrio líquido, volátil e sangrento,
E a história inteira num só mantra secular
Que embala o mundo no seu tosco movimento.
Rédeas de sombra e marionetas disfarçadas,
Vozes distantes que anunciam dissabores,
Pátrias apátridas de fronteiras rasgadas
Que amparam sobras de amarguras e rancores.
Rochedo agreste no promontório dos crentes,
Armada insípida na patrulha dos medos,
Âncora frágil que entrelaça dissidentes
E outros mais que se aborrecem nos seus credos.
07/12/2009
11:13
quinta-feira, dezembro 10, 2009
Dias e Noites (Parte IV)
Costuma dizer-se que Deus escreve direito por linhas tortas, que é como quem diz que, embora por vezes nos pareça que a vida pratica as mais inesperadas e cruéis sabotagens, a verdade é que não podemos prever aonde esses supostos ultrajes nos conduzem. É de todo sensato que saibamos dar tempo ao tempo, que nos dispunhamos a aprender com cada adversidade que nos desafia e, ao fim de uma tortuosa caminhada, pode ser que a nossa maior bênção nos esteja reservada sob o disfarce de uma trágica contrariedade. Não há virtude comparável à da fé. E não é preciso que se venere uma qualquer divindade de concepção duvidosa, ou que se siga à risca uma doutrina alegadamente iluminada. A fé pode ser vista, em última análise, como o coração que mantém a alma nutrida, que nos movimenta para a frente, que lida com o desgosto e com o júbilo num mecanismo uno e coerente, apenas para que se não perca o rumo à primeira curva apertada. É, sem dúvida, um inabalável voto de confiança, não nas imprevisíveis Parcas e nas suas tramas e boa ou má vontade, mas sim na capacidade exemplar que todos possuímos para desfrutar desta viagem com honesta felicidade perante os mais sinistros cenários. È a nossa bússola pessoal.
Falo ainda do mistério da bênção e do poder regenerador da gratidão. Cada pessoa que nos deixa um pouco de si, cada momento em que crescemos um pouco, cada experiência que nos ensina algo novo, cada porção daquilo que somos e construímos, é manifestação da realidade na sua mais sublime forma. Desde que respiramos pela primeira vez com os nossos próprios pulmões até que exalamos o derradeiro sopro, somos constantemente agraciados por um buffet de bênçãos à quais, à medida que vamos envelhecendo e por via do hábito, vamos prestando sucessivamento menos atenção, até que simplesmente deixamos de as reconhecer. Esta tem sido a jornada do homem em direcção à superficialidade do ser, e as suas metas não se me afiguram proveitosas. No momento em que deixamos de nos sentir gratos pela simples brisa que nos refresca num dia quente, ou pelo choro inocente de uma criança que se inicia nos meandros sinuosos da sua vida, estamos a prescindir de uma fracção significativa daquilo que é essencial na nossa natureza. Não existe melhor maneira de curar uma ferida emocional do passado do que a expressão generosa do nosso reconhecimento pelas bênçãos do presente. Esta foi das maiores lições que recebi durante um dos períodos mais difíceis da minha estadia nesta Terra.
*****
Desde o meu primeiro contacto com o homem da guitarra portuguesa e dos olhos azuis e da amável e talentosa cooperação artística, tinham passado sensivelmente quatro frenéticos meses. A azáfama começara na mesma noite em que lhe propusera que me acompanhasse à guitarra e, daí em diante, a nossa parceria tinha crescido e amadurecido consideravelmente. Encetámos prontamente um projecto de fado no dia seguinte e, com a colaboração de um terceiro membro na guitarra clássica a partir o segundo mês, percorremos vários fados, desde os tradicionais aos mais modernos, organizando um reportório diversificado com vista a possíveis apresentações futuras. Curiosamente, o primeiro convite surgiria bem mais cedo do que esperávamos, durante um dos mais distintos ensaios que já vivenciei.
Como tinha sido costume desde o princípio, estávamos reunidos na casa do exímio filósofo, impecável moradia herdada de um tio que estivera emigrado na Suiça durante vinte e dois anos e que, nunca tendo experimentado a paternidade, desde cedo estimava o sobrinho como se seu filho fosse. Assim, aquando da sua desafortunada morte após anos de sofrida convivência com Alzheimer, o seu sobrinho, que sempre o tratara condignamente e com extrema afeição, descobriu, para sua surpresa, que se tornara possuidor de todos os pertences do tio, que incluíam aquela habitação admirável e todo o seu recheio de gosto sóbrio e prático, mas valioso. Mudara-se pouco depois para lá e, como vivia sozinho, concordámos que era o local indicado para fazermos a nossa música.
Como ia dizendo, estávamos os três embrenhados no nosso ensaio quando a soou a campainha. O nosso anfitrião pediu licença e deixou-nos por algum tempo, que aproveitámos para corrigir alguns pormenores na última adição ao alinhamento que estávamos a decidir, uma letra original sobre o Fado das Mágoas, de Pedro Lafões de Bragança. Quando regressou, acompanhava-o a mais inesperada visita, um homem gasto e sulcado pelo tempo, mas cuja estatura alta e robusta e os penetrantes olhos verdes mantinham a elegância e o carisma de sempre, e e ainda hoje recordo as exactas palavras com que o recebi:
- Tio!? Como é que...? Mas... Quando é que chegaste?
*****
É preciso fazer aqui um breve parêntese para explicar a minha admiração ao ver chegar o tio que os anos haviam envelhecido em terras distantes. A última vez que o vira fora sete anos antes, em circunstâncias deveras infelizes, aquando da sua súbita viuvez.
O minha tia era uma mulher extraordinária, de uma beleza feminina apuradíssima, possuidora de múltiplos talentos, e verdadeiramente inteligente. O infortúnio bateu-lhe à porta com a descoberta tardia de um cancro no pâncreas, e a progressão da doença foi fulminante. Em alguns meses, o meu tio observou de perto o desmuronamento de tudo o que a sua amada esposa fora em tempos. A sua morte foi dolorosa, e deixou no meu tio uma ferida incapaz de sarar, o que o levou a mudar-se para longe. Pouco soube do seu paradeiro desde então. Falei com ele duas vezes durante a sua ausência, num rápido telefonema de Zurique e numa carta com selo de Barcelona. Calculo que a sua mágoa o tenha conduzido por muitas outras paragens, e só Deus sabe os fantasmas que o atormentaram na sua solidão.
Com este interlúdio, poderão, pois, compreender o misto de surpresa e felicidade que me invadiu ao contemplar a sua figura envelhecida, e a minha recepção desajeitada ao tio que julgava perdido.
*****
- Sempre pensei que fosse mais difícil regressar a casa, mas à chegada apercebi-me de que não há como fugir ao passado. É preciso aprender a encontrar a paz no próprio coração, e isso pode ser feito em qualquer parte do mundo. E não há como a nossa casa, a terra que nos viu nascer e crescer e que nos abençoou de tantas maneiras diferentes. Sinto-me bem por ter voltado.
- Não imaginas como me alegram as tuas palavras. Julgava que nunca mais te veria. Já estiveste com a minha mãe?
- Na verdade, foi ela que me convenceu a voltar. Mas essa é uma história para depois. Não vim aqui para te importunar com as minhas deambulações. Tenho uma proposta para vos fazer.
- Claro, mas... Como sabias onde me encontrar?
- Mais uma vez, a tua mãe soube chamar-me à razão, e foi ela que me indicou esta morada. Disse-me que deveria passar por aqui por esta hora, que é quando se reúnem para ensaiar. Estou correcto?
- Sim, claro.
- O que me traz aqui é muito simples. Estás, com certeza, recordado do meu amigo Ernesto, que tocava guitarra portuguesa?
- Então não? As iscas que ele fazia eram tão saborosas como virtuosa era a sua guitarra em noites de Inverno junto à lareira.
- E tu nunca provaste a chanfana. Enfim... Memórias à parte, o Ernesto tinha uns dinheiros guardados para quando um dia se reformasse, o que aconteceu há seis meses atrás. Impulsivo como sempre, decidiu juntar-se com um sócio e investir numa casa de fados. A inauguração é de amanhã a quinze dias.
Por um momento, fiquei imóvel e incapaz de articular uma única sílaba. Estava incrédulo com tanta novidade simultânea, emudecido com tanta alegria, que apenas consegui erguer-me e abraçar calorosamente um tio reencontrado após sete anos de incertezas e preocupações. Naquele abraço, coloquei toda a minha afeição e toda a minha gratidão e, quando o soltei, um simples olhar bastou para que a combinação ficasse assente. Estávamos, assim, a quinze dias da nossa estreia, e ela não poderia, para mim, ter vindo de melhor maneira.
*****
Os dias que precederam a nossa esperada estreia foram pouco diferentes dos demais. Intensificámos os horários de ensaio, e fiz questão que o meu tio permanecesse connosco até ao dia da actuação. Inclusivamente, persuadi-o a acompanhar-me numa desgarrada como fecho do espectáculo, e foi com enorme honra que recebi resposta positiva, tal como se sentiram honrados os meus dois companheiros. De facto, estabeleceu-se desde o primeiro ensaio uma relação tão amigável e sincera entre os dois músicos e o meu tio que, no âmago do meu espírito, senti que uma mão divina no-lo trouxera como gesto de encorajamento e aprovação. Não podia ser de outro modo.
A verdadeira surpresa desses dias surgiu na véspera da estreia que, ansiosamente, aguardávamos. O ensaio correra especialmente bem, e todos nos sentíamos o mais motivados que nos era humanamente possível, pelo que o meu tio se voluntariou para nos pagar a todos umas rodadas de vinho. O entusiasmo não nos permitiu recusar tal oferta, e em vinte minutos já tinha cada um o seu copo cheio à mesa de uma taberna típica, cuja sala, rusticamente decorada e de iluminação parca, estava cheia de gente também ela típica, pessoas simples de um povo quente, trabalhador e pleno de amizade. O ambiente ali vivido rapidamente nos contagiou, e as histórias começam a revezar-se entre mãos cheias de gargalhadas e jarros de vinho que se voltavam a encher quando ficavam vazios. O tempo parecia, ali, congelado, estático, eterno.
- ...E foi assim, sem mais nem menos, que lhe espetei dois beijos na boca, ali mesmo à frente dos pais. Só me lembro de a ver vermelha como um pimento, a mandar-me aquele olhar que aprova e reprova ao mesmo tempo, sabem? E o pai? Vocês calculam a descasca que ele me queria dar? Mas eu não lhe dei hipótese. Entreguei-lhe o bilhete muito rapidamente e corri dali para fora. Nunca mais me esqueço... A rapariga era um espanto. Recordo-me perfeitamente dela: tinha uma cor morena apetitosa, uns olhos castanhos amendoados que reluziam ao sol como âmbar, caracóis pardos que trazia soltos ao vento, e movia-se com uma tal sensualidade que não deixava margem para dúvidas aos meus sentimentos. E aqueles lábios carnudos, como eu adorava beijá-los com paixão e ternura... Enfim, foi um amor adolescente que me ficou gravado a tinta permanente.
- Oh tio, e então como é que ficou a história do bilhete? Ela sempre apareceu?
- Essa é a parte trágica que não pode faltar a qualquer romance clássico de adolescentes. Nessa noite esperei por ela horas a fio junto à ponte, no mesmo banco onde hoje costuma estar o velhote das cautelas. Mas ela nunca apareceu... Na altura fiquei desolado, com toda a intensidade e, ao fim ao cabo, a efemeridade da desolação da juventude.
- Pois eu cá acho que o teu tio devia partir corações a magotes de raparigas no tempo dele. Por certo que quem ficou a perder foi ela.
- Eu não diria tanto. A verdade é que aquela rapariga era deslumbrante, especial de uma maneira muito própria. Nunca contei isto a ninguém, mas há momentos em que ainda gosto de olhar para a fotografia que ela me ofereceu.
- Não acredito! Então você ainda tem a fotografia da rapariga? Tem que no-la mostrar um dia destes.
- Isto é um tanto embaraçoso, mas posso mostrar-vos agora mesmo. Trago-a sempre na carteira, atrás das fotos dos meus filhos.
- Este tio é cheio de surpresas!
Enquanto aguardávamos expectantes, o meu tio retirou a carteira do bolso, abriu-a com cuidado e, como se manuseasse uma relíquia muito frágil, estendeu-me a pequena foto tipo passe. A minha expressão, ao contemplar o impossível, foi quase tanto de medo como de espanto. O rosto impresso naquele pedaço de papel era minuciosamente semelhante ao da rapariga que, em tempos, fizera do meu coração refém naquela longínqua clareira por onde os meus pensamentos vagueavam amiúde. Era igualzinha a ela: as mesmas feições, a mesma pose elegante, o mesmo olhar sedutor, era ela. Mas...
- Que se passa? Deixa-nos ver.
Estava boquiaberto, extasiado numa contemplação assombrosa, completamente rendido à imagem que se revelava mais e mais idêntica à figura das minhas recordações a cada segundo que passava a observá-la. E por mais voltas que desse na cabeça, por mais que procurasse, em vão, compreender o incompreensível, não conseguia desprender o olhar do pequeno rectângulo que segurava.
- Está tudo bem?
Num esforço quase sobre-humano, estendi algo relutantemente a fotografia ao meu amigo guitarrista, embora a minha expressão se tivesse mantido inalterada.
- Então, rapaz, parece que viste o Demo.
Engoli em seco. As palavras não queriam ser pronunciadas, os pensamentos não queriam abandonar o turbilhão em que se haviam precipitado, e era-me impossível reagir de forma alguma.
- Olha lá, tu já não bebes mais hoje. Desembucha, homem. Que é que tens?
- Desculpem... Eu não... Vou apanhar ar.
Foi quanto consegui dizer naquela situação. Ergui-me de forma tensa e com movimentos mal articulados, e só consegui respirar fundo depois de alguns minutos à porta da taberna, e embora os minutos continuasse a passar e eu fosse recuperando a cada um, na minha mente havia apenas lugar para ela.
*****
É preciso aqui tornar a interromper o meu relato, mais uma vez para colmatar algumas omissões, ou melhor, para melhor detalhar alguns aspectos que foram somente muito ao de leve mencionados. É certo e sabido que o meu coração vivia em cativeiro, e que a ela dedicava cada aurora que, matizada de tons amenos, me acalentava a saudade de te inundar com meus olhos e de te enredar nos meus braços. Sabe Deus, o mesmo que escreve direito por linhas tortas, quantos dias não eram eram dias sem que te tivesse antes admirado em sonhos vívidos de estonteante desejo, sem que o meu espírito vogasse ao sabor de preciosas memórias como vagas, ou sem que os fados que eu cantasse fossem hinos ao amor que de que envolvia. E é vantajoso neste ponto que se clarifique bem a questão e não mais tenha que ser frisada: por tudo e em tudo, todo eu era ebulição de sentimentos, sublimação de emoção, e um fervilhar incessante proveniente da vontade de te ter gritava o teu nome nas entranhas mais inacessíveis de mim. Ora, quem experimenta tais sensações não pode deixar de perguntar-se se algum dia terá que render-se às evidências, esquecer o que não passou de uma efémera chama de um fósforo e dar um novo rumo à sua vida. No entanto, no meu caso, as perguntas eram outras. “Onde estará? Será que algum dei voltarei a vê-la? Será que devo procurá-la? E ao encontrá-la, o que direi?”
Era um problema real. Não lhe conhecia apelidos nem morada nem familiares nem amigos nem sonhos nem medos nem algo mais do que o seu nome, a sua idade e o seu beijo avassalador. Não sabia sequer se fora para longe, se estaria ainda no país ou nalguma terra estrangeira a milhares de quilómetros de distância. Em suma, ninguém havia para me ajudar, e eu sozinho nada podia senão suspirar. Com o passar do tempo convenci-me de que, se estivéssemos realmente destinados a um reencontro, a providência o tornaria possível. Só teria que ficar atento e agarrar a primeira oportunidade.
Eis então que me deparo com tal imagem na posse do meu tio foragido, que regressa à espera de encontrar redenção e me baralha sem querer com episódios da sua paixão de tenra idade. Não havia como entender que a rapariga daquela fotografia, em tudo idêntica à minha, havia em tempos tido um relacionamento com o meu tio, e que hoje deveria quase ter idade para ser minha avó. Era com estes enigmas que me debatia enquanto contemplava o céu estrelado através de uns olhos ébrios e esperançosos. Poderia ser este o o sinal de uma providência divina?
*****
Passo agora a contar como a noite que seria de estréia se tornou em noite de horrores, e perdoem-me se não me dou a grandes pormenorizações, mas prefiro fazê-lo de forma sucinta. Também não há muito que dizer acerca de um dia que começou tarde e com uma ligeira ressaca, esta última não apenas do vinho mas igualmente dos restantes acontecimentos da noite anterior, e que decorreu sem quaisquer incidentes dignos de registo. Fez-se um último ensaio durante a tarde, depois jantou-se no local da actuação, uma casa bastante típica, embora mais requintada e cuidada do que a da noite prévia, e após a refeição ainda houve tempo para duas ou três voltas de afinação. E foi então que tudo, e realço, tudo, se desmoronou. Ouviu-se um tombo violento, seguido de ruído nos degraus do pequeno palco onde deveríamos ter recebido aplausos e louvoures. Em vez disso, fomos arrastados para um vendaval de gente a correr e a soltar um grito inocente e a verificar a pulsação e a chamar uma ambulância. No chão, pálido e inerte, repousava o corpo amachucado do meu tio.
Falo ainda do mistério da bênção e do poder regenerador da gratidão. Cada pessoa que nos deixa um pouco de si, cada momento em que crescemos um pouco, cada experiência que nos ensina algo novo, cada porção daquilo que somos e construímos, é manifestação da realidade na sua mais sublime forma. Desde que respiramos pela primeira vez com os nossos próprios pulmões até que exalamos o derradeiro sopro, somos constantemente agraciados por um buffet de bênçãos à quais, à medida que vamos envelhecendo e por via do hábito, vamos prestando sucessivamento menos atenção, até que simplesmente deixamos de as reconhecer. Esta tem sido a jornada do homem em direcção à superficialidade do ser, e as suas metas não se me afiguram proveitosas. No momento em que deixamos de nos sentir gratos pela simples brisa que nos refresca num dia quente, ou pelo choro inocente de uma criança que se inicia nos meandros sinuosos da sua vida, estamos a prescindir de uma fracção significativa daquilo que é essencial na nossa natureza. Não existe melhor maneira de curar uma ferida emocional do passado do que a expressão generosa do nosso reconhecimento pelas bênçãos do presente. Esta foi das maiores lições que recebi durante um dos períodos mais difíceis da minha estadia nesta Terra.
*****
Desde o meu primeiro contacto com o homem da guitarra portuguesa e dos olhos azuis e da amável e talentosa cooperação artística, tinham passado sensivelmente quatro frenéticos meses. A azáfama começara na mesma noite em que lhe propusera que me acompanhasse à guitarra e, daí em diante, a nossa parceria tinha crescido e amadurecido consideravelmente. Encetámos prontamente um projecto de fado no dia seguinte e, com a colaboração de um terceiro membro na guitarra clássica a partir o segundo mês, percorremos vários fados, desde os tradicionais aos mais modernos, organizando um reportório diversificado com vista a possíveis apresentações futuras. Curiosamente, o primeiro convite surgiria bem mais cedo do que esperávamos, durante um dos mais distintos ensaios que já vivenciei.
Como tinha sido costume desde o princípio, estávamos reunidos na casa do exímio filósofo, impecável moradia herdada de um tio que estivera emigrado na Suiça durante vinte e dois anos e que, nunca tendo experimentado a paternidade, desde cedo estimava o sobrinho como se seu filho fosse. Assim, aquando da sua desafortunada morte após anos de sofrida convivência com Alzheimer, o seu sobrinho, que sempre o tratara condignamente e com extrema afeição, descobriu, para sua surpresa, que se tornara possuidor de todos os pertences do tio, que incluíam aquela habitação admirável e todo o seu recheio de gosto sóbrio e prático, mas valioso. Mudara-se pouco depois para lá e, como vivia sozinho, concordámos que era o local indicado para fazermos a nossa música.
Como ia dizendo, estávamos os três embrenhados no nosso ensaio quando a soou a campainha. O nosso anfitrião pediu licença e deixou-nos por algum tempo, que aproveitámos para corrigir alguns pormenores na última adição ao alinhamento que estávamos a decidir, uma letra original sobre o Fado das Mágoas, de Pedro Lafões de Bragança. Quando regressou, acompanhava-o a mais inesperada visita, um homem gasto e sulcado pelo tempo, mas cuja estatura alta e robusta e os penetrantes olhos verdes mantinham a elegância e o carisma de sempre, e e ainda hoje recordo as exactas palavras com que o recebi:
- Tio!? Como é que...? Mas... Quando é que chegaste?
*****
É preciso fazer aqui um breve parêntese para explicar a minha admiração ao ver chegar o tio que os anos haviam envelhecido em terras distantes. A última vez que o vira fora sete anos antes, em circunstâncias deveras infelizes, aquando da sua súbita viuvez.
O minha tia era uma mulher extraordinária, de uma beleza feminina apuradíssima, possuidora de múltiplos talentos, e verdadeiramente inteligente. O infortúnio bateu-lhe à porta com a descoberta tardia de um cancro no pâncreas, e a progressão da doença foi fulminante. Em alguns meses, o meu tio observou de perto o desmuronamento de tudo o que a sua amada esposa fora em tempos. A sua morte foi dolorosa, e deixou no meu tio uma ferida incapaz de sarar, o que o levou a mudar-se para longe. Pouco soube do seu paradeiro desde então. Falei com ele duas vezes durante a sua ausência, num rápido telefonema de Zurique e numa carta com selo de Barcelona. Calculo que a sua mágoa o tenha conduzido por muitas outras paragens, e só Deus sabe os fantasmas que o atormentaram na sua solidão.
Com este interlúdio, poderão, pois, compreender o misto de surpresa e felicidade que me invadiu ao contemplar a sua figura envelhecida, e a minha recepção desajeitada ao tio que julgava perdido.
*****
- Sempre pensei que fosse mais difícil regressar a casa, mas à chegada apercebi-me de que não há como fugir ao passado. É preciso aprender a encontrar a paz no próprio coração, e isso pode ser feito em qualquer parte do mundo. E não há como a nossa casa, a terra que nos viu nascer e crescer e que nos abençoou de tantas maneiras diferentes. Sinto-me bem por ter voltado.
- Não imaginas como me alegram as tuas palavras. Julgava que nunca mais te veria. Já estiveste com a minha mãe?
- Na verdade, foi ela que me convenceu a voltar. Mas essa é uma história para depois. Não vim aqui para te importunar com as minhas deambulações. Tenho uma proposta para vos fazer.
- Claro, mas... Como sabias onde me encontrar?
- Mais uma vez, a tua mãe soube chamar-me à razão, e foi ela que me indicou esta morada. Disse-me que deveria passar por aqui por esta hora, que é quando se reúnem para ensaiar. Estou correcto?
- Sim, claro.
- O que me traz aqui é muito simples. Estás, com certeza, recordado do meu amigo Ernesto, que tocava guitarra portuguesa?
- Então não? As iscas que ele fazia eram tão saborosas como virtuosa era a sua guitarra em noites de Inverno junto à lareira.
- E tu nunca provaste a chanfana. Enfim... Memórias à parte, o Ernesto tinha uns dinheiros guardados para quando um dia se reformasse, o que aconteceu há seis meses atrás. Impulsivo como sempre, decidiu juntar-se com um sócio e investir numa casa de fados. A inauguração é de amanhã a quinze dias.
Por um momento, fiquei imóvel e incapaz de articular uma única sílaba. Estava incrédulo com tanta novidade simultânea, emudecido com tanta alegria, que apenas consegui erguer-me e abraçar calorosamente um tio reencontrado após sete anos de incertezas e preocupações. Naquele abraço, coloquei toda a minha afeição e toda a minha gratidão e, quando o soltei, um simples olhar bastou para que a combinação ficasse assente. Estávamos, assim, a quinze dias da nossa estreia, e ela não poderia, para mim, ter vindo de melhor maneira.
*****
Os dias que precederam a nossa esperada estreia foram pouco diferentes dos demais. Intensificámos os horários de ensaio, e fiz questão que o meu tio permanecesse connosco até ao dia da actuação. Inclusivamente, persuadi-o a acompanhar-me numa desgarrada como fecho do espectáculo, e foi com enorme honra que recebi resposta positiva, tal como se sentiram honrados os meus dois companheiros. De facto, estabeleceu-se desde o primeiro ensaio uma relação tão amigável e sincera entre os dois músicos e o meu tio que, no âmago do meu espírito, senti que uma mão divina no-lo trouxera como gesto de encorajamento e aprovação. Não podia ser de outro modo.
A verdadeira surpresa desses dias surgiu na véspera da estreia que, ansiosamente, aguardávamos. O ensaio correra especialmente bem, e todos nos sentíamos o mais motivados que nos era humanamente possível, pelo que o meu tio se voluntariou para nos pagar a todos umas rodadas de vinho. O entusiasmo não nos permitiu recusar tal oferta, e em vinte minutos já tinha cada um o seu copo cheio à mesa de uma taberna típica, cuja sala, rusticamente decorada e de iluminação parca, estava cheia de gente também ela típica, pessoas simples de um povo quente, trabalhador e pleno de amizade. O ambiente ali vivido rapidamente nos contagiou, e as histórias começam a revezar-se entre mãos cheias de gargalhadas e jarros de vinho que se voltavam a encher quando ficavam vazios. O tempo parecia, ali, congelado, estático, eterno.
- ...E foi assim, sem mais nem menos, que lhe espetei dois beijos na boca, ali mesmo à frente dos pais. Só me lembro de a ver vermelha como um pimento, a mandar-me aquele olhar que aprova e reprova ao mesmo tempo, sabem? E o pai? Vocês calculam a descasca que ele me queria dar? Mas eu não lhe dei hipótese. Entreguei-lhe o bilhete muito rapidamente e corri dali para fora. Nunca mais me esqueço... A rapariga era um espanto. Recordo-me perfeitamente dela: tinha uma cor morena apetitosa, uns olhos castanhos amendoados que reluziam ao sol como âmbar, caracóis pardos que trazia soltos ao vento, e movia-se com uma tal sensualidade que não deixava margem para dúvidas aos meus sentimentos. E aqueles lábios carnudos, como eu adorava beijá-los com paixão e ternura... Enfim, foi um amor adolescente que me ficou gravado a tinta permanente.
- Oh tio, e então como é que ficou a história do bilhete? Ela sempre apareceu?
- Essa é a parte trágica que não pode faltar a qualquer romance clássico de adolescentes. Nessa noite esperei por ela horas a fio junto à ponte, no mesmo banco onde hoje costuma estar o velhote das cautelas. Mas ela nunca apareceu... Na altura fiquei desolado, com toda a intensidade e, ao fim ao cabo, a efemeridade da desolação da juventude.
- Pois eu cá acho que o teu tio devia partir corações a magotes de raparigas no tempo dele. Por certo que quem ficou a perder foi ela.
- Eu não diria tanto. A verdade é que aquela rapariga era deslumbrante, especial de uma maneira muito própria. Nunca contei isto a ninguém, mas há momentos em que ainda gosto de olhar para a fotografia que ela me ofereceu.
- Não acredito! Então você ainda tem a fotografia da rapariga? Tem que no-la mostrar um dia destes.
- Isto é um tanto embaraçoso, mas posso mostrar-vos agora mesmo. Trago-a sempre na carteira, atrás das fotos dos meus filhos.
- Este tio é cheio de surpresas!
Enquanto aguardávamos expectantes, o meu tio retirou a carteira do bolso, abriu-a com cuidado e, como se manuseasse uma relíquia muito frágil, estendeu-me a pequena foto tipo passe. A minha expressão, ao contemplar o impossível, foi quase tanto de medo como de espanto. O rosto impresso naquele pedaço de papel era minuciosamente semelhante ao da rapariga que, em tempos, fizera do meu coração refém naquela longínqua clareira por onde os meus pensamentos vagueavam amiúde. Era igualzinha a ela: as mesmas feições, a mesma pose elegante, o mesmo olhar sedutor, era ela. Mas...
- Que se passa? Deixa-nos ver.
Estava boquiaberto, extasiado numa contemplação assombrosa, completamente rendido à imagem que se revelava mais e mais idêntica à figura das minhas recordações a cada segundo que passava a observá-la. E por mais voltas que desse na cabeça, por mais que procurasse, em vão, compreender o incompreensível, não conseguia desprender o olhar do pequeno rectângulo que segurava.
- Está tudo bem?
Num esforço quase sobre-humano, estendi algo relutantemente a fotografia ao meu amigo guitarrista, embora a minha expressão se tivesse mantido inalterada.
- Então, rapaz, parece que viste o Demo.
Engoli em seco. As palavras não queriam ser pronunciadas, os pensamentos não queriam abandonar o turbilhão em que se haviam precipitado, e era-me impossível reagir de forma alguma.
- Olha lá, tu já não bebes mais hoje. Desembucha, homem. Que é que tens?
- Desculpem... Eu não... Vou apanhar ar.
Foi quanto consegui dizer naquela situação. Ergui-me de forma tensa e com movimentos mal articulados, e só consegui respirar fundo depois de alguns minutos à porta da taberna, e embora os minutos continuasse a passar e eu fosse recuperando a cada um, na minha mente havia apenas lugar para ela.
*****
É preciso aqui tornar a interromper o meu relato, mais uma vez para colmatar algumas omissões, ou melhor, para melhor detalhar alguns aspectos que foram somente muito ao de leve mencionados. É certo e sabido que o meu coração vivia em cativeiro, e que a ela dedicava cada aurora que, matizada de tons amenos, me acalentava a saudade de te inundar com meus olhos e de te enredar nos meus braços. Sabe Deus, o mesmo que escreve direito por linhas tortas, quantos dias não eram eram dias sem que te tivesse antes admirado em sonhos vívidos de estonteante desejo, sem que o meu espírito vogasse ao sabor de preciosas memórias como vagas, ou sem que os fados que eu cantasse fossem hinos ao amor que de que envolvia. E é vantajoso neste ponto que se clarifique bem a questão e não mais tenha que ser frisada: por tudo e em tudo, todo eu era ebulição de sentimentos, sublimação de emoção, e um fervilhar incessante proveniente da vontade de te ter gritava o teu nome nas entranhas mais inacessíveis de mim. Ora, quem experimenta tais sensações não pode deixar de perguntar-se se algum dia terá que render-se às evidências, esquecer o que não passou de uma efémera chama de um fósforo e dar um novo rumo à sua vida. No entanto, no meu caso, as perguntas eram outras. “Onde estará? Será que algum dei voltarei a vê-la? Será que devo procurá-la? E ao encontrá-la, o que direi?”
Era um problema real. Não lhe conhecia apelidos nem morada nem familiares nem amigos nem sonhos nem medos nem algo mais do que o seu nome, a sua idade e o seu beijo avassalador. Não sabia sequer se fora para longe, se estaria ainda no país ou nalguma terra estrangeira a milhares de quilómetros de distância. Em suma, ninguém havia para me ajudar, e eu sozinho nada podia senão suspirar. Com o passar do tempo convenci-me de que, se estivéssemos realmente destinados a um reencontro, a providência o tornaria possível. Só teria que ficar atento e agarrar a primeira oportunidade.
Eis então que me deparo com tal imagem na posse do meu tio foragido, que regressa à espera de encontrar redenção e me baralha sem querer com episódios da sua paixão de tenra idade. Não havia como entender que a rapariga daquela fotografia, em tudo idêntica à minha, havia em tempos tido um relacionamento com o meu tio, e que hoje deveria quase ter idade para ser minha avó. Era com estes enigmas que me debatia enquanto contemplava o céu estrelado através de uns olhos ébrios e esperançosos. Poderia ser este o o sinal de uma providência divina?
*****
Passo agora a contar como a noite que seria de estréia se tornou em noite de horrores, e perdoem-me se não me dou a grandes pormenorizações, mas prefiro fazê-lo de forma sucinta. Também não há muito que dizer acerca de um dia que começou tarde e com uma ligeira ressaca, esta última não apenas do vinho mas igualmente dos restantes acontecimentos da noite anterior, e que decorreu sem quaisquer incidentes dignos de registo. Fez-se um último ensaio durante a tarde, depois jantou-se no local da actuação, uma casa bastante típica, embora mais requintada e cuidada do que a da noite prévia, e após a refeição ainda houve tempo para duas ou três voltas de afinação. E foi então que tudo, e realço, tudo, se desmoronou. Ouviu-se um tombo violento, seguido de ruído nos degraus do pequeno palco onde deveríamos ter recebido aplausos e louvoures. Em vez disso, fomos arrastados para um vendaval de gente a correr e a soltar um grito inocente e a verificar a pulsação e a chamar uma ambulância. No chão, pálido e inerte, repousava o corpo amachucado do meu tio.
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