quarta-feira, outubro 10, 2007

Dias e Noites (Parte II).

A minha vida dera uma volta de cento e oitenta graus no final do Verão seguinte, quando deixei a terra onde sempre vivera para prosseguir estudos. Após uma jigajoga de exames e candidaturas e viagens para cá e para lá e matrículas, estava agora alojado numa ruela estreita, de chão empedrado, a cinco minutos a pé da minha faculdade. A casa, visivelmente velha, erguia-se em quatro estreitos andares, ligados entre si por uma escadaria de madeira que rangia sonoramente a cada degrau que pisava, e, mais uma vez, ficara no quarto do primeiro andar. Em frente, morava uma senhora cujos anos de vida se podiam estimar pelo fino cabelo grisalho que costumava trazer solto, e pelas feições sulcadas por incontáveis rugas que, apesar de tudo, lhe conferiam uma graça muito particular. Era costume vê-la à janela a costurar, ou simplesmente com os escassos transeuntes que passavam pela ruela, alguns deles vizinhos e velhos amigos da sua geração.
Quando me via assomar à janela, o seu cumprimento era já sabido, dizendo numa voz calorosa e com pronúncia marcadamente bairrista:
- Oh meu menino! Então como está? Está tudo bem? E a maninha? E os paizinhos? E os estudos?
Eu limitava-me a responder ao que me era perguntado, sempre com um franco sorriso esboçado nos lábios, correspondido pela expressão sorridente da senhora, que devo frisar nunca ter visto de diferente forma. Vivia, deste modo, num ambiente acolhedor e quase familiar, embora fosse constante a sensação de perda que me acompanhava desde a desditosa noite…

* * * * *

Recordo-me com bastante nitidez da atarefada noite em que arrumei as minhas coisas, na véspera da minha partida para a universidade. O meu quarto parecia um cenário de guerra, com estantes vazias e pilhas de roupa espalhadas numa alternância caótica, e gavetas abertas onde já pouca coisa restava. Tinha já duas malas cheias, e ainda tanto para empacotar e acomodar noutras tantas, e no epicentro daquela custosa azáfama, lembrei-me de algo extremamente importante.
Abri a gaveta da minha mesa-de-cabeceira e vasculhei ansiosamente pela tralha acumulada: cartas avulsas; um ou dois livros de poesia; um relógio de corda de pulseira de couro preta que parara havia alguns anos; um caderno onde dava largas à criatividade nas longas noites sem dormir; o manual de instruções da minha aparelhagem; um álbum de fotos antigas… e era tudo.
Apanhado de surpresa, retirei a gaveta dos eixos e esvaziei-a em cima da cama, mas nada mais encontrei do que aquilo que já encontrara. Então percorri, uma a uma, todas as gavetas e prateleiras do quarto, todos os recantos possíveis e imagináveis, sentido um desespero crescente à medida que ficava sem opções para procurar. Mas não podia ser; todas as noites eu lia e relia aquela frase, aquelas tão vagas e distantes palavras que me ofereciam a sombra de uma esperança desalentada, e todas as noites a guardava religiosamente na gaveta agora tombada no chão sujo do quarto. E naquela noite, na véspera da talvez mais importante viagem da minha vida, da qual não regressaria tão cedo, a preciosa folha parecia ter-se evaporado.
Sentei-me, frustrado, no colchão já despido, afastando com desprezo o conteúdo despejado da gaveta, que acabou por cair igualmente no chão. Aí, senti os olhos a humedecerem-se e, com os braços cansados a pender para fora da cama, chorei.

* * * * *

Quando digo que a minha vida sofrera uma viragem de cento e oitenta graus, para além de todas as óbvias mudanças a que foi sujeita com a minha saída de casa, refiro-me em concreto ao ritual binário em que ela se havia convertido tempos antes. Agora, em vez de dias preenchidos pela magia daquela que tão impiedosamente partira, tinha noites inteiras de sonhos habitados pela sua reconfortante imagem, e que acabavam sempre por desembocar naquela clareira longínqua do mundo. Por outro lado, os meus dias eram agora caracterizados pela constante presença de gatos que vagueavam sem rumo pelas pedras toscas da minha rua, havendo um que se assemelhava assustadoramente àquele que habitualmente contemplava através da fresta agora fechada da minha janela, nas noites sem sono que faziam agora parte do passado.
A verdade é que, desde a noite na clareira e até à minha partida, nunca mais encontrara o negro felino a deambular pela rua agora deserta em frente à janela do meu antigo quarto. Era um facto extraordinário, e que permanecia no meu pensamento como um mistério inexplicável, assim como aquela noite estrelada em que me perdera na vereda a caminho da clareira e encontrara a folha de papel pregada ao tronco rugoso daquela árvore anciã, a folha cujo paradeiro me era agora desconhecido. A réstia de alento que ainda sobrava dentro de mim devia-se sobretudo à memória da mensagem implícita naquela linha escrita por mim numa serena tarde primaveril, e que reencontrara inesperadamente numa escura noite de estio.

* * * * *

Houve, numa das noites mais frias de que tenho memória, um sonho que me deixou ao mesmo tempo confuso e confiante, como se aquilo que tinha presenciado fosse demasiado fantástico para poder ser real, embora na altura me tivesse parecido totalmente credível. Tinha-me deitado depois de uma noite no café da praça com dois colegas, e a lua ia já bem alta no céu quando cerrei os olhos cansados.
Estava a acordar após uma noite bem dormida, e espreguicei-me vigorosamente, atirando com o gesto a almofada para a alcatifa azul que cobria todo o chão do quarto. Os pequeninos orifícios na persiana mal fechada permitiam que uma diminuta réstia de claridade alumiasse fracamente o espaço contíguo da divisão. Ainda ensonado, levantei-me e abri o estore. A janela da minha idosa vizinha encontrava-se ainda fechada, pois devia ser bem cedo, tão cedo que os gatos ainda vasculhavam os recantos da rua em busca de algum resquício comestível.
Voltei para dentro e, numa rotina repetida tantas vezes, tratei de me lavar e vestir e alimentar. Terminadas essas tarefas, peguei na minha mochila e desci, sendo recebido à porta por uma aragem fresca tipicamente matutina. Algumas, mas poucas, nuvens escondiam agora o disco solar, mergulhando a rua numa imperceptível sombra matinal. Nesse momento, apercebi-me de que a porta da minha vizinha estava escancarada, embora a sua janela ainda não tivesse sido aberta em sinal de que já acordara.
Estranhando aquela mudança na rotina diária da senhora, decidi assomar-me à sua porta, chamando a meia voz pelo seu nome. Tornei a chamar e, como não obtive resposta, subi as escadas que conduziam à porta da sua cozinha. Esta encontrava-se igualmente aberta e, por isso, não antes de voltar a chamar pela senhora, entrei sem hesitação na parca divisão.

* * * * *

Sempre me intrigou a natureza dos sonhos. De tantos fenómenos naturais a que estamos sujeitos durante toda uma vida, os sonhos são, de facto, uma extraordinária manifestação cuja compreensão está longe de ser completa. Por muita teoria que se debite sobre as infindáveis ramificações desta temática, não há uma que satisfaça completamente a minha aguçada forma de entendimento. Parece que cada passo em direcção ao seu desvendar último nos deixa novamente no ponto de partida, ao sermos confrontados com determinadas situações que, simplesmente, não se encaixam.
A mim, quer-me parecer que o sonho é uma necessidade quase comparável à respiração ou à nutrição. É algo inerente à nossa natureza humana, imaginativa e invariavelmente insatisfeita. É algo que nos permite voar além das nossas barreiras, algo que nos leva muito além de qualquer limite que a realidade seca nos tente forçosamente impor. É, afinal, mais um mecanismo de escape e, ao mesmo tempo, uma forma natural de poesia, uma composição lírica que mistura desejos, medos e recordações e deles constrói uma acção animada repleta de códigos, mensagens escondidas e, ao fim ao cabo, de um pouco da nossa própria essência.
Aquele sonho foi deveras o mais fantástico de que tenho memória, e ainda hoje não tenho explicação, quer para a sua origem, quer para o que ele veio a desencadear. Mas uma coisa é certa, estar-lhe-ei eternamente grato.

* * * * *

Lancei um relance rápido à divisão criteriosamente arrumada e asseada, não observando nada fora do vulgar. Sobre o fogão ainda quente, mas desligado, um grande púcaro de alumínio gasto fumegava, exalando um agradável e muito estimulante aroma a ervas e limão. Sobre a mesa, duas chávenas de chá, certamente pintadas à mão, repousavam vazias nos respectivos pires de barro vidrado. Um açucareiro e um frasco de mel de rosmaninho completavam o espólio, todo assente sobre uma toalha de linho com acabamentos bordados, cujas franjas caíam no assento das duas cadeiras de madeira envernizada que assinalavam os lugares à mesa.
Atraído pela familiar apresentação, espreitei para dentro da chaleira ainda a escalda, e reconheci imediatamente o aroma: bela-luísa e camomila. Sem saber bem porquê, peguei-lhe e verti o líquido generosamente para as duas chávenas, pousando o púcaro numa base de azulejo que também se encontrava sobre a mesa. Depois, sentei-me numa das cadeiras, coloquei duas colheres de mel na chávena à minha frente, e ali fiquei, absorto em pensamentos diversos, a mexer cuidadosamente o aromático chá.
Nem me apercebi quando a senhora entrou na cozinha, o belo cabelo atado numa trança que lhe chegava quase a meio das costas. Só a vi quando se sentou à minha frente e, num gesto tão gracioso quanto a sua idade lhe permitia, colocou duas colheres de açúcar na sua chávena. De seguida, levou-a à boca, dizendo:
- Mas que delícia…
Aparentemente, a minha presença não surtira qualquer surpresa na senhora, que continuou a bebericar a saborosa infusão alheia a tudo o resto. Só quando na sua chávena sobrava apenas um resto irrisório de líquido e se levantou para verter mais um pouco é que se dirigiu a mim, falando numa voz terna e suave:
- Então, meu menino, está tudo bem?
Um pouco embaraçado, respondi numa voz rouca de quem acordara havia pouco tempo:
- Oh, sim, está tudo bem, obrigado. Desculpe ter entrado assim sem avisar, mas vi a porta aberta e pensei…
- Não faz mal. Estava à sua espera. Tenho uma coisa para si.
- Para mim?
Sem responder, acabou de verter o chá e saiu. Demorou cerca de dois minutos, durante os quais fiquei nervosamente sentado, com a chávena fumegante ainda cheia sobre a mesa. Quando voltou, trazia na mão um caderno de capa preta e aspecto bastante usado. Tinha posto os óculos de massa escura, que trazia caracteristicamente quase à ponta do nariz. Sentou-se de novo à minha frente e perguntou:
- Então não bebe o chazinho? Está tão bom… Faz muito bem à garganta e ao estômago.
- Bebo sim, obrigado. Estou só à espera que arrefeça mais um pouco.
- Mas olhe que o chazinho quentinho é que faz bem.
Olhei a superfície límpida do líquido e levei-o aos lábios, sentindo uma sensação revigorante de calor a confortar-me por dentro. Dei dois ou três goles, pousando em seguida a chávena sobre o pires morno. Fiquei, então, a fitar os olhos pequenos e luzidios da senhora, azuis como o oceano profundo. Então, estendeu-me o caderno, e fiquei abismado ao reconhecê-lo. Aquele caderno, onde escrevera tantas cartas e poemas de amor, e que ficara perdido na clareira perto da minha casa até àquele momento. Mas como podia ser?
Como que adivinhando a minha incredulidade, a senhora replicou:
- É seu, não é? Devia ter mais cuidado com essas coisas.
Estava demasiado atónito para poder articular qualquer resposta. Desfolhei-o rapidamente, parando numa página que me deixou incalculavelmente mais estupefacto. Estava escrita a tinta azul, numa caligrafia mais ou menos aprumada, e podia ler-se na primeira linha: «Estarei sempre à tua espera». Olhei a senhora com um ar inquiridor, ao que ela prontamente respondeu:
- Esse poema é muito bonito. É para alguém especial, não é?
Aquilo era demais para a minha frágil estrutura, demais para a minha limitada compreensão. Que sentido, por mais remoto que fosse, poderia aquilo fazer? Interrompendo-me os pensamentos, que voavam apressados num remoinho de ideias tolas e inconsistentes, a idosa senhora ergueu-se da cadeira, dirigiu-se até junto de mim e, com as suas mãos nas minhas, fechou o caderno no meu colo e disse, fitando-me com os seus intensos olhos vítreos:
- O meu menino devia mostrar esse poema à menina para quem o escreveu. Tenho a certeza que ela ia gostar muito.
Nesse momento, um ruído estranho àquele cenário soou na minha cabeça. Aí, percebi tudo, ao reconhecer o toque inconveniente do meu despertador. Tudo não passava de um magnífico sonho do qual não tardaria a acordar. “Que pena”, pensei, “estava a ser tão bom…”
Já só tive tempo de ouvir algumas palavras antes de acordar e desligar resignadamente o despertador, e foram elas:- Olhe que eu já vivi muito, e sei o que digo: um amor assim é difícil de encontrar. Vá em frente com coragem, meu menino. Força.

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