Costuma dizer-se que Deus escreve direito por linhas tortas. Pois eu digo que Deus não é escritor, mas sim compositor: tem uma imponderável noção de ritmo, que resulta em sinfonias de andamento impecavelmente inconstante; possui um incensurável sentido de oportunidade, entrelaçando notas com a fluidez e eficácia de quem tricota uma camisola de lã; e tem acesso priveligiado a um qualquer poço de inspiração, que faz com que os momentos mais rotineiros e sóbrios da sua partitura se intercalem de forma maravilhosa com fragmentos de autêntica magia. Deste ponto de vista, poderia dizer-se que Deus compõe melodia e harmonia com a suma naturalidade de quem conhece melhor do que ninguém a intrincada natureza do ser humano e a sua necessidade de conviver com verdadeira poesia em momentos chave da sua vida. E posso afirmar, com franqueza, que o trecho dessa imensa peça cósmica que me coube, por destino ou casualidade, é indubitavelmente generoso. Tudo isto para apenas introduzir talvez o maior sinal de providência divina que alguma vez tive o prazer de experimentar.
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O Verão instalara-se, quente e abafado, havia já alguns dias. O Sol distribuia com entusiasmo a sua energia revitalizante por todo a zona ribeirinha da cidade, concentrando uma dose considerável da mesma na superfície cristalina das águas do rio, cujo caudal escoava pacientemente em direcção ao horizonte. Sentado junto à margem na relva fresca que a ladeava, contemplava com regozijo a sumptuosidade inebriante daquele contínuo fluxo de essência imaterial, havendo momentos em que arriscaria dizer que era o próprio Universo que se derramava sobre o rio, entregando-lhe sem cerimónia a história de todos os tempos, passados e vindouros. Não pude evitar sorrir.
Era época de exames, altura em que os estudantes que durante o ano se encontravam nas esplanadas para beber meia dúzia de cervejas as trocavam por um ou dois cafés e pela sebenta daquela disciplina tão chata, resignados a uma tarefa incontornável nas suas actuais carreiras. Eu não era excepção: na minha pasta, transportava alguns apontamentos arranjados à última da hora, duas ou três canetas soltas, a calculadora e provas de anos antigos. Mas não era tudo. Junto do material de estudo, repousava um caderno que, desde algum tempo, andava sempre comigo.
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O sonho em que a minha vizinha me devolvera uma relíquia que eu julgava perdida provocara em mim um irresistível impulso para escrever. Não podia ter sido meramente um devaneio nocturno como tantos outros que povoam os sonos de tanta gente. A sua razão de ser ainda me era desconhecida, mas sentia que não podia deixar de haver uma. Por isso, aceitei imediatamente que devia aproveitar o sinal e fazer alguma coisa por um outro sonho que, desde que fora para a Universidade, ficara em suspenso.
Nesse mesmo dia, fui à papelaria da faculdade depois de sair da última aula da manhã. Estranhamente, esta estava vazia. Nem a simpática empregada, de constituição pesada mas improvavelmente desenvolta e possuidora de um contagiante riso que fazia questão de oferecer a todos os clientes durante o atendimento, se avistava atrás do balcão. Em todo o caso, dirigi-me à prateleira dos cadernos, e inspeccionei-os demoradamente, aproveitando para dar tempo à senhora para que regressasse de onde quer que tivesse ido. Mas esta insistia em não aparecer, pelo que acabei por decidir regressar depois de almoço.
Quando me preparava para sair, a senhora entrou por uma porta de serviço, carregando uma pilha de cadernos cujo aspecto me chamou a atenção: eram de capa dura azul, com argolas igualmente azuis, e as páginas eram completamente brancas, exactamente iguais ao caderno que protagonizara o meu encontro com a rapariga naquela remota clareira de um tempo remoto da minha vida. Com tudo o que já acontecera, e com tudo aquilo que as circunstâncias auspiciavam, achei que aquele insignificante pormenor, aquela ínfima coincidência não poderia senão fazer parte de uma sucessão de acontecimentos coerentemente encadeados e desenhados para desembocar num desfecho memorável. Assim, movido por uma estranha certeza que me vinha não sei bem de onde, ofereci-me para ajudar a senhora a pousar a remessa no seu lugar, e retirei imediatamente o caderno que coroava a pilha. A mulher respondeu à minha prontidão com uma alegre gargalhada, acrescentando que não havia melhor qualidade num homem do que ser resoluto.
Paguei o caderno e saí com a sensação de ter estado no lugar certo à hora certa, de ter feito os movimentos precisos, e de estar um passo mais próximo do culminar de uma verdadeira aventura.
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Retirei o caderno azul da pasta, procurei um caneta no fundo, e com o primeiro aberto sobre as pernas cruzadas e a segunda na mão direita, fitei mais uma vez o majestoso cenário que se me expunha. Respirei fundo, talvez tentando inspirar directamente a arte que vagueava naquele lugar, empurrada por ventos e correntes e ciclos naturais num vai-vem incansável, para poder depois transcrevê-la directamente para o papel ainda vazio que ansiava por ser veículo de beleza. E, enquanto repetia esse exercício de abertura a uma forma de consciência elevada, fui distinguindo ao longe o som característico e inconfundível de uma guitarra portuguesa, colocando notas à solta no mesmo vento que me levava ao âmago o inesgotável encanto da Criação.
Agradado com a adição daquele novo elemento, deixei que também ele conduzisse o meu contacto com a fonte das ideias. Cada acorde que se sucedia numa composição extremamente harmoniosa induzia no meu espírito um nível crescente de empatia comigo mesmo e com o mundo à minha volta. E, nesta viagem interior levada ao sabor de fados aleatórios, o impensável aconteceu, deixando-me sem outra reacção que não fosse erguer-me e procurar o diligente guitarrista.
Encontrei-o quando terminava um tema bem conhecido e que me era particularmente querido, “Gaivota”, com letra do grande Alexandre O’Neil e música do genial Alain Oulman. Ele olhou para mim com uns olhos azuis que me deixaram aluído: aqueles olhos eram tão semelhantes aos olhos azuis do gato preto que não pude evitar esboçar uma denunciada expressão de espanto e perplexidade, perante um homem que aparentava ter uns trinta e poucos anos e me mirava com visível curiosidade. Tentando não o intimidar com a minha surpresa, decidi desviar o olhar do seu e, apontando para o lugar de onde me levantara, convidei-o para se juntar a mim, alegando que a vista era, sem dúvida, bem mais deslumbrante. O homem acedeu ao convite, e dentro de poucos instantes estávamos lado a lado, sentados na verdura fofa da margem do rio, apreciando a verdadeira maravilha de um pôr-do-sol estival.
Trocámos poucas palavras. O homem limitou-se a presentear-me com o seu talento na guitarra, e eu escrevi páginas e páginas que brotavam incessantemente do meu estado de espírito extasiado. Assim ficámos, partilhando simultaneamente o som e o silêncio, até que o último raio de luz encerrou o espectáculo e convidou ao recolhimento.
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Aproveito para corrigir uma lacuna que não foi, de todo, inconsciente. A verdade é que já antes vira uns olhos azuis que me tinham recordado os do misterioso gato, embora a parecença fosse mais subtil, quase imperceptível. Já adivinharam que estou a referir-me à simpática vizinha cuja idade respeitável e os indispensáveis óculos disfarçavam algo que imediatamente sobressaía assim que se conseguisse anular os seus efeitos dissimuladores, um detalhe que desmascarara assim que conseguira observar com atenção o brilho singular que o seu olhar emanava, de um azul que passeava discretamente em memórias de noites sem sono. Portanto, temos o gato preto, a senhora idosa e o jovem guitarrista, três personagens autónomas, independentes, que muito provavelmente nunca se tinha cruzado nem viriram a cruzar-se entre si, mas que partilhavam, para além dos seus distintos olhos azuis, algum momento mais ou menos místico e decisivo na minha vida.
Pode parecer que estou a tentar impingir determinada informação de natureza tendenciosa, de certa forma para vos levar a acreditar na providência, no destino, ou em qualquer outra dessas inefáveis coisas. Na verdade, apenas quero destacar que, se existe mistério na nossa vida, se há coisas que, sendo insignificantes para uns, se tornam fulcrais para outros, isso mostra que está em nós o poder de tornar cada pormenor importante, cada novo dado especial, cada pequena coincidência num leme de intenção e propósito. Todos somos deuses de nós próprios: criemos, pois, o nosso mundo, da forma mais divina possível.
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Levei o homem a jantar a minha casa, aproveitando a ausência dos meus dois co-inquilinos para estar mais à vontade. Cozinhámos em conjunto, tendo tido como resultado uma panela de fusilli de duas cores, com molho de natas, atum e cogumelos, queijo ralado e especiarias. Comemos pausadamente, aproveitando a agradável refeição para conhecermos um pouco mais sobre o outro. Falei-lhe do gato, da rapariga, do encontro na clareira, do sonho, enfim, de tudo aquilo que era preciso como introdução àquilo que me levara a procurá-lo naquela tarde junto ao rio. Ao mesmo tempo, fui sabendo que se tinha formado em Filosofia, que estava naquele momento desempregado, que se tinha divorciado havia pouco tempo e que estava a escrever um ensaio na área da Estética. A conversa foi acontecendo naturalmente, com as suas pausas, os seus picos de intensidade, as suas asserções e desentendimentos, mas tudo enquadrado numa postura de à vontade e franca vontade de partilha.
A certa altura, enquanto eu lavava a loiça e o homem entoava outro dos seus maviosos fados, por sinal bastante conhecido, ergui os olhos ao alto e lancei-me num Corrido com letra de Alfredo Marceneiro, e pude constatar que, no instante em que a minha garganta soltou uma voz tímida mas determindada, ele hesitou ligeiramente, recuperando de imediato o tempo da música e esmerando-se ainda mais na sua arte. Os dois juntos agitámos cada uma das pedras da calçada da rua que se vislumbrava pela janela semicerrada, uma calçada gasta pelo tempo e repleta de histórias para contar, mas que ainda assim se enternecia perante a grandeza daquele momento. Tive até a sensação de que o vento acalmara só para que se pudesse ouvir melhor o imponente dueto entre voz e guitarra que resgatava dos confins da alma humana a expressão mais evidente do sentir português.
Ao terminar, e ainda embalado pela melodia que reverberava na minha mente, julguei vislumbrar a silhueta da minha vizinha a acenar com a cabeça em sinal de anuência. Assim que consegui mover-me, tentei confirmar a minha suspeita, apenas para me deparar com todas as janelas do edifício vizinho trancadas e de cortinas corridas. O homem acompanhou o meu movimento com o olhar e, apanhando-me virado para ele, perguntou finalmente:
- Porque me chamaste? Por que me trouxeste aqui?
Pensei para mim que aquela pergunta devia andar a ziguezaguear nos meandros dos seus pensamentos desde que eu o abordara. Limitei-me a sorrir de volta e, sem mais explicações, pedi-lhe que me acompanhasse até ao quarto.
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É preciso, aqui, fazer uma nota importante. Tenho, perdida nas mais longínquas das minhas memórias, a recordação de uma noite em casa de um tio, irmão da minha mãe. Era o seu aniversário e, como sempre, havia alguns convidados assíduos. Um deles, carteiro de profissão, amigo de longa data do meu tio, empunhava uma guitarra de fado, e outro, reformado da função pública, uma guitarra portuguesa. Entre eles, de olhos fechados e compleição sentida, a figura alta e robusta do meu tio completava o quadro típico de um trio de fado, interpretando de maneira irrepreensível os mais belos poemas do espólio tradicional português. Creio que esse momento tenha sido um dos meus primeiros e precoces contactos com esse género musical pelo qual me fui apaixonando de forma incontornável, primeiro pela beleza da sua sonoridade, depois pelo sentimento com que era tocado e cantado, e por fim pela sensação única que é exprimir uma alma ramificada e insaciável através de um reportório tão vasto quanto o génio humano.
Assim, elevo aqui uma ingénua homenagem ao fado e a tudo aquilo que ele comporta e representa e, já agora, àquele trio de gente simples, amadora, mas que atingia uma elevação fora do vulgar quando se reunia para erguer a voz e o trinado das guitarras ao céu.
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Sentámo-nos na cama, o homem ainda com uma expressão desconfiada no rosto, e retirei o caderno da pasta que repousava sobre a colcha amarrotada. Procurei a página que pretendia e, uma vez encontrada, mostrei-a ao meu amigo. Este leu-a com atenção, absorveu-a sem rodeios, depois releu-a mais detalhadamente, e em seguida pousou o caderno no meu colo, dizendo:
- É um poema muito bonito. Foste tu que escreveste?
Eu hesitei, mas acabei por responder:
- Lembras-te da rapariga de que te falei há pouco?
- Sim, com certeza.
- Quando fui atrás do gato naquela noite, encontrei uma página arrancada a um caderno igual a este. Nele estava escrito apenas o primeiro verso desse poema. No sonho de que te falei, pude ler o poema completo ainda antes de o ter escrito. Este é o poema que me surgiu em sonho, e é ele que me levará à rapariga. Tenho a certeza.
O homem soergueu o sobrolho, impressionado com a minha revelação.
- Mas então o que pretendes fazer?
Voltei a esboçar um sorriso, mas desta vez respondi com prontidão:
- Este poema é um fado. Quero pedir-te que me acompanhes com a tua guitarra.
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1 comentário:
Estarei sempre à tua espera
Enquanto houver Primavera
Nos interstícios da lua
E nos Verões mais submissos
Esperarei os teus feitiços
Na esquina de qualquer rua
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