domingo, abril 29, 2007

Conselho.

Enquanto estiveres à procura da felicidade, essa sensação de busca permanecerá inalterada. A felicidade não é uma meta que se atinge: a felicidade é a forma como se vive o caminho porque, chegado a uma meta, espera-nos sempre a sensação do vazio. E não tentes fazer coisas nem empregar energia para tentares ser feliz: sê feliz primeiro, e logo todas as outras coisas necessariamente surgirão à medida que fores estando preparada para as receber. Cada um cria a sua vida de acordo com o seu foco de atenção. Foca a tua atenção naquilo que pretendes trazer para a tua vida, em vez de repetires sempre as mesas coisas e te deixares prender na tua situação. E, sempre, acima de qualquer coisa, sê genuina e autêntica em todos os momentos da tua vida. A vida é demasiado preciosa para te renderes ao que esperam de ti. Sê tu mesma e vive aquilo que tens para viver.

sábado, abril 28, 2007

A natureza é mesmo assim...

A natureza é mesmo assim... Tem o encanto de um felino bravo que rasga o tempo com as suas garras, enquanto os seus olhos húmidos fitam brilhantes o horizonte. O seu pêlo é igualmente macio ao tacto, e tem um apurado sentido de alerta. Apenas esconde sob a sua máscara de selvagem beleza e exuberante requinte a sua verdadeira essência sobressaltada de algo subtilmente ameaçado e condenado a um desfecho. É um pouco diferente da matriz que compõe os homens: aliás, a história é o elo de ligação entre ambas as realidades similares. É soberba e obscura, excêntrica e sectista. É a fantástica discrepância entre felicidade descomprometida e moralidade humana. É, sem dúvida, a singularidade mais volúvel e inconstante de si própria. É o fetiche da dúvida metódica que caracteriza a consciência. E é tudo o mais que o papel e a tinta podem transmitir, e mais o que não podem.
Nós somos seus senhores e seus escravos. Exploramos a sua matéria mas devemos-lhe uma vida alugada sempre por prazo indeterminado, apenas estipulado como finito. E ela é uma cobradora insaciável, inflexível nas suas finanças. Afinal, até a natureza é economista. Só lhe falta ser banqueira.

quinta-feira, abril 26, 2007

Quadra amargurada...

Tão amargurada a despedida
Quando o adeus é certo e derradeiro
Esplendorosa luz, fonte de vida
Busco agora em vão teu paradeiro

26/04/2007
0:46

Quantos ais...?

Chovem espinhos dos meus olhos como sangue corre nas veias…
Ai, quanto dói a derradeira despedida,
O último sorriso,
Aquele agora distante suspiro que enternecia a própria ternura…
Soluços, espasmos, gritos convulsos em desesperado chamamento,
Ferramentas obsoletas quando a barreira é a eternidade…
Ai, quantos mais ais…?
Para quando o sossego?
Clamores e prantos desconsolados são agora o meu amanhecer e anoitecer,
Naqueles instantes de profunda saudade em que quase se rasga o tempo com o gume da angústia.
Ai, quantos mais prantos?
Como, o sossego?
Como, quando ao meu apelo apenas responde o inabalável silêncio e a implacável ausência?
Ai, quanto silêncio…
Quanta desilusão…
Não existe tamanha crueldade como o frio golpe do inominável,
Nem tamanha solidão como esta de afagar um rosto imaginado no ar inócuo à minha frente.
À música irreversível da existência que antes ouvia completa dentro de mim,
Falta-lhe agora um harpejo, dois, vinte, mil…
E mesmo que seja apenas um, que sentido dar aos outros nesta agora desconexa melodia,
Que chega mesmo a ser-me estranha quando outrora fora entranha?
Ai, os olhos, as mãos, os cabelos, a face,
A linda face…
Quanto tempo até tornar a ver-te?
Quantos mais ais…?

26/04/2007
3:48

segunda-feira, abril 23, 2007

Natureza Mística - Um encontro com a beleza na Ria de Alvor

Natureza Mística
Na apaziguadora tranquilidade da paisagem, uma beleza mágica e selvagem sobressaía. Os tons pardos da areia e do sol, mesclados com o azul das águas e do céu, e com o verde dos montes ao fundo, formavam uma miscelânea de cores que, em uníssono, constituíam a base da beleza do local. Ao longe, embarcações de diversos feitios eram como meros pontos dissonantes do resto da paisagem, embora de certa forma a embelezassem à sua muito característica maneira. Ainda mais longe, erguia-se a picaresca vila de Alvor, com a sua predominante cor branca devido às abundantes tradicionais casas caiadas. A toda a volta, uma imensidão de natureza envolvia-me com seu abraço místico e acolhedor, despertando em mim uma serenidade e uma paz interior não experimentáveis dentro da leviandade citadina. Enfim, encontrava-me num canto edénico, rasgado por esvoaçantes aves que, com as suas acrobacias aéreas e os seus gritos desarmoniosamente melódicos, completavam o deslumbrante quadro de bravio esplendor que contemplava naquele fim de tarde.
Fora justamente a um tão maravilhoso sítio em busca de inspiração. Sempre circulara poesia nas minhas veias, e desde cedo que comecei a exteriorizar tudo o que a alma sentia em forma de belos poemas. Escrevia ao sonho, escrevia à utopia, escrevia ao mundo mas, sobretudo, escrevia à beleza ao amor. E nesses versos em que escrevia à beleza ou ao amor, parecia que eram Musas a escrever pela minha mão, e a possuir o meu corpo e o meu espírito.
A ria era o meu escritório de eleição. Transmitia-me uma sensação de transe quase como se algo naquele ambiente bravo me possuísse realmente e, durante esse torpor físico, a caneta deslizava ligeira sobre as folhas brancas, enchendo-as de belíssimas rimas e profundas mensagens de amor e beleza. Depois despertava de novo em mim, e deparava-me com esses poemas que muito a custo identificava como meus.
Nesse crepúsculo, que recordo com sentida emoção, estava sentado a contemplar as águas que corriam quase imperceptíveis, embora lestas, para a foz. Estava a absorver a inspiração do local, a relaxar o corpo e a mente, e a abrir o espírito. O Sol projectava, por detrás dos montes, o seu reflexo no leito cristalino, criando um panorama de acrescida beleza.
Comecei, então, a escrever. Naquele estado alterado, as linhas fluíam tão lestas e imperceptíveis como as águas da ria. Em cinco minutos, tinha uma página escrita. Em dez minutos tinha três. Em vinte minutos tinha sete. O Sol estava já perto do ocaso, e a luz já quase não permitia que escrevesse e, no entanto, a mão continuava, sagaz, a rabiscar as folhas do caderno.
Já o Sol, com os seus derradeiros raios vermelhos, refulgia na superfície prateada da ria, quando o grito de uma gaivota atroou os ares de uma forma tão repentina que, por momentos, interrompeu a minha concentração. Olhei na direcção de onde viera o grito, e pareceu-me vislumbrar uma silhueta ao longe, sobre as águas, a pairar sombria. Ergui-me, tentando obrigar-me a perceber melhor o que observava, embora em vão. Pareceu-me, então, que a silhueta avançava, como se caminhasse pelas águas como quem caminha pelo chão. À medida que se aproximava, eu ia distinguindo mais pormenores, como o cabelo pela cintura e o vestido azul ou verde marinho. Ainda punha a hipótese de se tratar de uma visão resultante da minha transe, mas essa hipótese acabou por se desvanecer quando, subitamente, a voz mais bela que alguma vez ouvira e viria a ouvir soou na minha mente, demasiado claro para ser uma ilusão:
– Saúdo-te, jovem, e peço-te que não me temas. Não pretendo fazer-te mal!
Um nó na minha garganta inviabilizou qualquer hipótese de resposta. Estava estático, receoso, curioso, estupefacto e incrédulo ao mesmo tempo. No meu espírito, um sem número de emoções simultâneas que precisavam de ser assimiladas e processadas mantinha-me estacado e atento.
– Havia muito que não encontrava alguém que me ouvisse. Aliás, vagueio por esta ria há tantos anos que nem me consigo lembrar se já alguém me tinha ouvido. É impressionante como o ser humano é capaz de passar inúmeras vezes mesmo ao lado de certas coisas sem nunca se aperceber delas…
– Quem és tu?
Finalmente conseguira responder.
– Eu não sou alguém. Eu simplesmente sou. Sou o amor e sou a beleza… E tenho sido durante séculos a fio, condenada a uma dolorosa solidão.
– De onde vens?
– Sempre existi. Antes ainda de haver mundo, eu já vagueava pelas estrelas, moldando o Universo à minha maneira. Depois encontrei este planeta, cheio de vida, o que devia significar que estaria cheio de amor e beleza. Mas…
Interrompeu-se sem qualquer justificação. Estava agora muito perto de mim, na margem, e era de uma beleza transcendental, esboçada pela figura esbelta, pelos traços meigos e pelo porte donzelesco que pareciam delicadamente esculpidos na mais preciosa pedra pela própria mão de Deus. Tamanha beleza nunca antes a vira, nem mesmo na lindíssima paisagem da ria. E também nunca o meu coração palpitara tão rapidamente, galopando como um nobre corcel de sangue puro por pradarias e bosques. Naquele momento, senti-me como se estivesse perante a mais bela das musas, a mais graciosa das fadas, a mais atraente das sílfides ou mesmo perante a própria Afrodite. Um pouco sem querer, murmurei-lhe:
– Tu és… Tu és lindíssima!
Senti uma brisa marinha a desalinhar-me os cabelos soltos.
– Porque vives aqui?
– Este local é um santuário de beleza, de uma natureza fantástica como nunca encontrei em lugar algum. Neste paraíso natural encontro o bem-estar e a serenidade de que preciso para viver.
Fiquei por uns instantes a pensar no que me fora dito. O local era, de facto, de uma beleza quase divina, mas sempre crera que houvesse inúmeros locais ainda mais belos que aquele pelo mundo fora. Quase como se me tivesse adivinhado os pensamentos, a mulher respondeu-me:
– Vivo aqui não só pela beleza, mas pela energia mística que por aqui paira, muita dela contendo vestígios das pessoas que por aqui passaram, e que deste local dependeram. Os marinheiros que da foz partiram em busca do seu ganha-pão no alto-mar, ou mesmo nas terras além-mar, distantes como o fim do mundo. Os pescadores que da ria extraíam isco para o seu ofício, e que apanhavam marisco para ganharem mais algum. O suor e mesmo o sangue de homens, através dos tempos, foram derramados nestas águas portadoras das suas almas, ofertadas ao mar enquanto com o destino lutavam. Desde as eras mais remotas, vidas consumiram a ria, e por ela foram consumidas. E não só de vidas humanas se preenche este éter esotérico, mas também das almas das criaturas que povoam esta zona, e que, ainda primeiro que os homens, já nela procuravam nutrição e guarida. Espécies únicas encontram-se a esvoaçar sobre as nossas cabeças, ou mesmo a rastejar sob os nossos pés. Até a vegetação característica, que pintalga as dunas de verde, tem a sua mística. E tudo em uníssono, toda essa energia que aqui tem morada, constitui o que de mais belo há no mundo. Poucos são os locais no mundo cuja beleza e energia permanecem preservadas. Este é um local abençoado por Deus. Nunca se deveria interferir na evolução do seu ecossistema. Durante tantos anos, este paraíso terreno tem-se mantido íntegro. Não há razão que justifique a sua condenação.
O seu discurso tocou-me bem lá no fundo. Quando as coisas são ditas de um modo tão claro e directo, ninguém é capaz de ficar indiferente. De facto, agora que me fora dito, sentia essa energia, e percebi finalmente a natureza das minhas transes: era essa energia, acumulada através dos anos, que me possuía e que escrevia a sua história e os seus sentimentos através da minha mão. Era essa memória, das almas e dos seres da ria, que eu vagamente reconhecia nos meus poemas como parte de mim. Todos temos um pouco das nossas raízes, e eu compreendi que as minhas estavam enterradas naquele lugar mágico.
– Volta amanhã. Eu estarei aqui à tua espera. Agora tens que ir.
Sem sequer me dar hipótese de me despedir, desvaneceu-se à minha frente como uma nuvem de fumo. De novo, um sopro marinho trouxe-me o aroma da maresia, e de novo o grito de uma gaivota soou, agora mais longe e menos claro. Era noite.

*********

Durante algumas semanas, encontrava-me diariamente com aquela mística figura, mostrando-lhe os poemas que escrevia, e juntos aproveitávamos os últimos raios que o Sol irradiava para apreciar a maior beleza que a paisagem proporcionava. Com as suas cores esbatidas de crepúsculo, o Sol projectava uma luz que conferia à ria o seu pico de excelsa sublimidade. Durante esse tempo, que foi talvez o mais feliz de toda a minha vida, aprendi muito sobre a beleza e a energia mas, sobretudo, aprendi o que era o amor. Não esse amor mundano que se vive tão levianamente hoje em dia, mas o verdadeiro e puro amor. E o mais caricato da situação é que eu amava alguém que só eu podia ver, ouvir e sentir, e cujas verdadeiras essência e natureza me eram desconhecidas. Estaria eu apaixonado por um anjo ou divindade?

*********

Certo dia, a caminho da ria, deparei-me com a passagem vedada. Um enorme placar dava informação sobre o motivo da vedação: uma empresa de construção civil comprara a licença para construir um empreendimento turístico de luxo em ambas as margens da ria, um condomínio balnear para gente rica. Quando me apercebi do que realmente estava para acontecer, o pânico apoderou-se do meu espírito, imobilizando-me. Se essa empreitada se concretizasse, isso significaria o fim da magia daquele lugar e, mais importante que tudo, o fim dos meus encontros com aquela que eu amava.
À socapa, pulei a vedação, e corri até ao local habitual. Chamei pela minha amada aparição, embora sem obter qualquer resposta. O desespero começou a corroer-me o espírito, e senti-me sem forças, caindo sobre os meus joelhos na areia, molhada por lágrimas que tombaram dos meus olhos lacrimosos. O meu espírito era um rodopio de sentimentos dolorosos, impedindo-me de me recompor ou de me acalmar. Para mim, o sonho acabara naquele momento e, sem ele, viver deixaria de ter sentido. Senti que não valia a pena viver sem a pessoa amada, fosse ela quem fosse. Não com tanto que havia ainda por partilhar com ela. Não com tanto amor por dar e receber. Tanto que tivera, e tanto que perdera…
Não sei se por sorte ou se por azar, um homem de compostura senhorial, vestido a rigor com um fato cinzento de fazenda, e transportando uma pasta de executivo que aparentava estar carregada de papéis, aproximou-se, falando-me arrogante:
– Você não sabe ler? Não viu que isto está vedado ao público e que vai haver aqui uma obra privada?
A revolta tomou conta de mim.
– O senhor não tem o direito de fazer o que pretende. Este lugar é de todos, e a todos tem pertencido desde os tempos mais remotos.
– Mais um ambientalista não. Desculpe, mas não estou com pachorra. Eu tenho todo o direito para fazer o que bem entender. Caso tenha alguma objecção, fale com os meus advogados, que eles terão todo o gosto em mostrar-lhe as licenças. Agora, exijo que saia da minha propriedade, caso não queira que chame a autoridade.
– O senhor não compreende… Este lugar é um paraíso, e a sua energia…
– Este lugar é um antro de porcaria e bichos irritantes, e deveriam todos agradecer-me por investir o meu dinheiro para fazer desta nojice algo decente que traga turismo à zona. Agora exijo que saia daqui imediatamente.
Indignado por ter sido interrompido, encarei-o nos olhos e saí a correr. Era muita coisa em simultâneo para digerir. Quase cego pelas lágrimas que escorriam abundantes pela minha face, só parei quando alcancei a estrada. Aí, caí de bruços e chorei intensamente. Chorei tanto e durante tanto e tanto tempo que perdi a noção do próprio tempo. Quando, por fim, me levantei, sem saber o que fazer ou como reagir, pus-me a pedir boleia. Por fim, um estrangeiro simpático parou e deixou-me em casa.
Nessa noite, deitado na cama, sem conseguir dormir, com o caderno aberto sobre mim, houve um momento em que me pareceu ouvir a voz da minha amada dizer:
– Descansa. Eu ainda continuo aqui…
E, quando a ouvi, a tensão que acumulara desvaneceu-se lentamente, dando lugar a uma paz infindável, acabando eu por adormecer pouco depois.

*********

Encontrava-me a pairar no vácuo, entre estrelas e outros astros. À minha frente, segurando a minha mão, seguia a minha amada, agora com traços nítidos e substanciais, em vez da suave silhueta gasosa que vislumbrava aquando dos nossos encontros na ria. Guiava-me pelo vazio, murmurando uma melodia que me acalmava e transmitia um calor reconfortante. Ia assim flutuando na imensidão do Espaço, como se não existisse tempo e da eternidade se tratasse.
Subitamente, o cenário começou a mudar, como se as estrelas e o escuro se fossem desvanecendo, para dar lugar à magnífica paisagem da ria, embora a sua consistência parecesse fantasmagórica, como a da minha amada aquando dos nossos encontros.
Parámos, e ela virou-se para mim. Com a sua voz meiga, disse:
– Preciso do teu corpo. A minha vida na Terra não é mais do que uma presença espectral. Para salvar a ria, preciso de um corpo substancial. Só tu me podes ajudar. Mas, caso me aconteça alguma coisa, tu corres o risco de morreres.
– Eu farei tudo por ti. Faz o que tens a fazer.
– Obrigado.
– Tu sabes porque o faço.
– Pois sei.
– Então desejo-te toda a sorte do mundo.
Senti algo entrar dentro de mim, e a sua voz melodiosa soou na minha cabeça, dizendo:
– Sabes, eu…
Uma pausa que pareceu uma eternidade fez-me ansiar por uma determinada resposta.
– Podes dizê-lo.
– Eu… Eu também espero que corra tudo bem. E se não nos voltarmos a ver, lembra-te sempre de mim, e protege a nossa memória e o cenário onde ela se alojará para sempre…

*********

O que verdadeiramente se passou, nunca o saberei ao certo. Sei apenas que, ao acordar, não me encontrava em casa. Aliás, fiquei de tal maneira chocado que, por momentos, pensei que tinha acordado apenas em sonhos, e que tudo aquilo não passava de uma ilusão. No entanto, sabia que essa hipótese fora por mim formulada como um modo de adiar a constatação daquilo que realmente estava a acontecer, e que eu sabia ser verdade. Algo de inexplicável acontecera depois daquele estranho sonho que tivera.
Encontrava-me numa sala desconhecida, de aspecto rude e nu. Dois sofás velhos vermelho-púrpura e uma mesinha de sala constituíam a única e rudimentar decoração daquele espaço que, na minha ideia, parecia funcionar como sala de espera. Mas o meu maior espanto foi quando reparei no objecto ao meu lado: a pasta do empreiteiro com que me cruzara na ria.
Impelido em parte pela minha curiosidade, e em parte pela minha intuição, abri-a e confirmei o que me parecera no dia anterior: a pasta estava cheia de papéis, arrumados em três capas plásticas. Retirei a primeira, e pude ler como título “Projecto Alvor Ria Club”. No seu interior, constava o projecto para a construção do tal empreendimento, em páginas infindáveis de texto e desenhos arquitectónicos. Mas as surpresas não tinham ainda terminado pois, no meio de toda aquela papelada, encontrei uma folha branca escrita numa caligrafia aprumada e arrumada, muito diferente dos gatafunhos desordenados com que os textos do projecto estavam escritos. Nessa folha, estava escrita uma carta, endereçada a mim, que dizia:
«Entrega esta pasta ao Agente Araújo. Diz-lhe que a encontraste na ria e que a abriste para ver se encontravas algum indício de quem pudesse ser o seu dono e que, ao veres que continha projectos ilegais, decidiras trazê-la para que a Polícia Judiciária investigasse o caso. Depois disso, és livre de fazeres o que quiseres, mas recorda o meu último pedido, que te fiz num sonho. Parto para outro lugar, porque a minha missão aqui foi cumprida. A ria está salva. Tenho agora que ir em busca de um outro paraíso terreno, de um outro canto de magia e beleza, para o proteger e para por ele zelar, até que um dia um jovem como tu me ouça e me ajude como tu me ajudaste. Talvez um dia eu regresse, quando a ria estiver em perigo, daqui a muitos, muitos anos. Espero que algum dia me consigas compreender. Desculpa se parto, mas comigo trarei sempre a tua memória e o teu amor.
Adeus.»
Fora ela a responsável por tudo aquilo. Ela conseguira a prova que nos permitiria salvar a ria, e deixara-ma antes de partir, para que eu terminasse o trabalho que ela tivera, e para que obtivesse eu o mérito que a ela apenas pertencia.

*********

Hoje, recordo com sentida emoção e profunda saudade, essa linda história que um dia vivi, e cuja memória escrevo nesta linhas portadoras do meu sentimento e da minha lembrança. Depois de ler a carta, um homem de estatura baixa, olhos muito juntos, pescoço curto, cabelo eriçado, bigode farto e porte avantajado assomou-se à porta da sala onde me encontrava, chamando por mim. Segui-o ao seu gabinete, onde reparei numa placa sobre a sua secretária onde podia ler-se “Agente Araújo”.
Depois, fiz tudo tal e qual como me fora indicado, e acabei por ser mandado para casa, com a promessa de que iriam investigar o caso. Passados cinco dias, o resultado dessas investigações rapidamente se espalhou pela cidade: o projecto era, de facto, ilícito, e as licenças tinham sido falsificadas pela empresa do empreiteiro, após o que o dito sujeito confessou ter, de facto, falsificado as licenças. Enfim, a ria fora salva, e o indivíduo acabou na prisão.
E assim acabara esta pequena história das histórias da minha vida que, apesar de breve, foi talvez a mais importante. No entanto, a minha vida não acabara ainda, nem tão pouco a minha história.

*********

Nos anos que se seguiram, fui-me tornando mais maturo, tanto a nível intelectual e social, como a nível pessoal, moral e espiritual. Conservei em mim a lição de amor que aprendera na minha convivência com aquela meiga e belíssima entidade que um dia, quando abandonar o meu corpo, espero reencontrar, num mundo onde tudo e todos forem apenas Luz. Mas até lá, continuarei a viver intensamente, guardando a recordação desse amor que um dia vivi, perante o mais fabuloso dos cenários que a minha terra tinha e tem para me oferecer: a fascinante e encantadora Ria de Alvor.

sábado, abril 21, 2007

A história da vida.

A vida é uma história
Contada pelo vento
Nas vagas da memória
Fica sempre um lamento

Por aquilo que a vida
Não nos quis relatar
Na memória perdida
Um breve murmurar

Ouço o vento e o mar
Revejo a Lua e o Céu
Perco-me a navegar
Num mundo que é só meu

E esqueço-me do mundo
Vogando entre as marés
Escondido bem no fundo
Percorro-me de lés a lés

E um grito sufocado
De uma ave que evoca
Num oceano agitado
A guarida de uma doca

31/07/2004

sexta-feira, abril 20, 2007

Sonho (voltar atrás...)

Vagamente sonho com a aurora
O nascimento de um dia risonho
Tenho este sonho pela noite fora
Tudo é verdadeiro no meu sonho

A gaivota grita e rodopia
Nadando livremente pelo vento
Num cenário sublime que anuncia
O sol despontando o firmamento

Será que foi um sonho fugaz
Ou terei deveras presenciado
Pudera eu de manhã voltar atrás
E tornar a ser maravilhado

29/01/2006
21:00

quinta-feira, abril 19, 2007

A (Re)Criação - Capítulo I

Sou um criador. Eu sou tudo o que existe e tudo o que existe vem de mim. Sou causa e efeito fundidos no mesmo ponto de luz que irradia sobre todas as coisas que não existem senão dentro dele a sua luminosidade ensurdecedora e perfeita. Sou todos os opostos mesclados numa matriz informe de sensaboria difusa. O tempo e o espaço são a minha forma de me expandir para além da unidade do ser. Não há matéria na criação que não tenha outrora sido um sussurro inaudível dos meus pensamentos, o que equivale a dizer que tudo é fruto do nada que não existe. Ao meu sinal, todas as coisas acontecem simultaneamente e num único local pontual e adimensional da ilusão de profundidade e continuidade que é a minha consciência. Sim. Consciência. O nada que não existe de onde tudo frui. Sou eu. Eu. Eu… E…u…
Vivo na intemporalidade da fronteira entre a não existência que não existe e a existência em potência que não pode deixar de existir, neste estado latente de poder tudo sem saber o que é poder, apesar de conhecer a sensação que supostamente se sente quando se conhece tudo, até o que é poder. Posso, mas não sinto poder, não sei poder, não quero poder, não quero sequer querer… Mas querer não querer é já uma forma de querer. Raios. Não é isso que interessa. Eu SOU. Tudo o resto faz parte das deambulações frenéticas e inesgotáveis desta coisa que se move na minha consciência adimensional, expandindo-se em conceitos improváveis cuja natureza, apesar de provirem de mim, não deixa de ser menos ilusória do que o resto que são todas as coisas.
Pára de dizer coisas sem sentido. Tu não és só tu. Quem julgas que és para te achares a existência em si mesma? Olha para ti.
Não sei o que é olhar.
Pois não, nem precisas. Tudo o que precisas é de tudo o resto, e da sua funcionalidade, ainda que ilusória. Achas-te isso também? Achas-te capaz de ser a multiplicidade de imagens que afirmas brotarem na tua consciência?
Eu não preciso de nada. Eu apenas preciso-me. Tudo o mais segue daí.
Olha para esse egocentrismo desmesurado, para essa presunção de omnipotência rizível e louca, para as palavras que pronuncias com lábios feitos de nada. Tu és vácuo. Tu és solidão. Não, nada unitário pode ser sozinho. Tu és pior do que isso. Sofres de uma esquizofrenia tão credível que te julgas Deus. Nada do que existe tem origem em ti. Tu, sim, tu é que provéns inevitavelmente do todo.
Basta. Sai.

quarta-feira, abril 18, 2007

Deus é a fluidez.

Desde os primórdios da história da humanidade que esta sente necessidade da existência de entidades superiores, sendo que as primeiras se relacionavam directamente com os fenómenos e os elementos da natureza, como o sol, a lua, o fogo, a chuva, etc. Isto aconteceu a partir do momento em que o homem passou a analisar o mundo exterior, afastando-se progressivamente de si mesmo. Mais tarde, com a crescente complexidade do ser humano, os deuses passaram a ser associados igualmente a valores e qualidades humanas, como a guerra, as artes ou a alegria. Depois, surgiram os primeiros sistemas religiosos monoteístas, que atribuem todas as coisas acima mencionadas e todas as outras ao mesmo ser divino como frutos da sua criação. E, desde então, o homem tem tentado definir e provar a existência de um Deus que, na verdade, não é menos válido do que os deuses da Grécia Antiga ou da Mesopotâmia: todos eles têm o mesmo intuito, e todos eles têm escrituras sagradas e fundamentos a favor e contra. O que se passa é que este Deus de que hoje se fala foi impingido às pessoas no seio do Império Romano como forma de controlo. Daí o sem número de elementos pagãos que ainda subsistem na religião cristã. Este Deus não faz, para mim, qualquer sentido. Para mim, Deus não é uma entidade ou um ser ou uma potência. Deus não é o criador de todas as coisas nem o senhor omnipotente do Universo. Deus É a própria existência das coisas, e flui livre e espontaneamente através delas, sem deliberação nem acção. Deus é a fluidez.

terça-feira, abril 17, 2007

Todos nós somos uma vida em potência...

Quando nascemos, todos nós somos uma vida em potência, um novelo de possibilidades que se vai desenrolando segundo o percurso que tomarmos...

O cotovelo descaído sobre a mesa...

Para quê rasgar-me em tantos pedaços quantos os caminhos que me apontam
De nada serve fingir
Sufocar-me de culpas e desculpas não vai resolver nada
Recortar pontos negros dispersos sem fim é como amputar uma mão só porque a outra é mais bela
E levaria todo o tempo que me cabe até a tela ser toda branca
Aí já nada teria cor
O sentido das coisas, que era vago, tornara-se vácuo
E os meus olhos chorariam uma a uma as manchas de tinta apagadas mas não anuladas

Só queria ter um lugar para me enraizar
Deixar de ser nómada e ter de passar sede por desertos e tundras
Só queria ser aceite entre vós
Sem pré-requisitos nem burocracias nem metas nem constituições
Uma amizade franca e descomprometida
Um porto e um cais onde encontrar guarida ou de onde descer a vela rumo ao infinito
Um pouco de tudo que é quase nada

Sinto-me alienado
Hoje, sou apenas o cotovelo descaído sobre a mesa
E o ar de quem julga ter perdido a sanidade das coisas
Mapeando emoções tumultuosas e convulsivas que se revezam impiedosamente
E sigo assobiando sempre a mesma melodia

20/02/2006
00:45

domingo, abril 15, 2007

Só a saudade...

Não há amor
Nem dor
Como a saudade…

Não há luz
Nem cruz
Como a saudade…

Não há sentimento
Nem lamento
Como a saudade…

Não há vida
Nem ferida
Como a saudade…

Não há sal
Não há mal
Não há sequer paixão
Desilusão
Não há catarse
Como a saudade…

Não há idade
Nem verdade
Sem saudade…

Não há borboletas
Nem violetas
Sem saudade…

Não há rosto
Nem desgosto
Sem saudade…

Não há como a saudade…
Não há, sem saudade…
Não há amor
Nem sequer dor
Como a saudade…

Não há mar
Não há céu
Não há tu nem eu
Nem sonhar
Não há sorrir
Não há sentir
Como a saudade,
Sem a saudade…
Só a saudade.

15/04/2007
18:41

quinta-feira, abril 12, 2007

Sê apenas, sem princípio nem fim...

O que é o fim? É apenas mais uma artimanha para nos prender à dualidade. Na unidade, não há princípio nem fim: há apenas meio, há apenas infinito. Mas, mesmo que vivamos e vejamos o mundo segundo uma perspectiva dual, devemos ter presente que o fim é apenas mais um processo. É apenas mais um passo…
Quando algo acaba, como, por exemplo, num caso extremo, a morte de alguém, é comum gerar-se tristeza e remorso entre os que ficam. É natural, mas não deixa de ser evitável. O fim é apenas isso: mais um passo para a eternidade. Mais um processo evolutivo na vida, que nos ajuda a definir o nosso caminho. Um sinal de que algo já não estava a funcionar. E, como tal, essa decisão de terminar, deve ser respeitada.
Por que adoramos o princípio e choramos o fim, em vez de simplesmente nos contentarmos com o meio? Se dermos demasiada importância aos extremos duais, neste caso o princípio e o fim, estamos a afastar-nos da nossa verdadeira natureza, e corremos o risco de nos perdermos por completo, e não mais poder regressar. Celebramos nascimentos e choramos mortes, mas esquecemos vidas. São as vidas que vivem, e não os extremos duais… Sê apenas, sem princípio nem fim…

sábado, abril 07, 2007

Saudade...

Faço todas as coisas invisíveis parecerem azuis
Sempre que acordo com o calor do sol a invadir-me o espírito filtrado pela cortina gentil.
Guardados no meu coração estão todos os provérbios sábios que um dia mos disseram os meus avós.
Ah, como recordar os momentos felizes sem ser indecentemente assaltado por lágrimas inconscientes e saudosas que varrem o meu rosto em suaves riscos húmidos de natureza metafórica?
Ser feliz com a memória do passado é como descobrir que a vida é uma encenação quase irrepreensível dos caprichos insondáveis e intangíveis de um qualquer sujeito incorpóreo e místico que nega aos seus fantoches a verdadeira experiência de ser por pura malícia.
Belos os olhos verdes que vejo tão nitidamente no fundo das minhas recordações, e as mãos engelhadas que transportavam mais sabedoria do que rugas, e o falar terno que ainda ouço uma ou outra vez quando me sinto sozinho e desamparado.
Será justo não existir justiça na condição humana de vida?
O que virá depois de tudo isto?
Quantas exclamações de saudade serão precisas para que tudo volte à sua origem, e quantos serão os prantos necessários para que os rios sequem de vez?
A verdade é que só existe vida porque não nos importamos de morrer.
Sempre valem a pena todos os choros inconsolados e todas as batalhas absurdas com que nos deparamos ao longo do tempo.
Um dia tudo vai mudar… E nesse dia…
Tudo regressará à sua condição original de luz.
Luz.

08/11/2006
18:25

sexta-feira, abril 06, 2007

I have this dream...

I just don't seem to fit in like all the rest
I look around and I see few like me
I don't know if I'm the worst or the best
It's been like this since I have come to be

We all have our differences
But I seem like an outsider
Like the last visionary rider

Is it me or we're all fighting each other
Am I the only one who really cares
Is it true that no one seems to bother
They're all too busy with their own affairs

I'll try some few advances
Suggesting some new things
But they forgot they too once had wings

Where have been hidden all the possibilities
Is this our ultimate arrival
Does anyone care about our true abilities
There's much more besides mere survival

I've stumbled upon some answers
But no one's willing to try
I guess attempting would make this system die

What if the war could be over in a handshake
What if we could at least forgive our parents
What if we could learn from an earthquake
What if we all could be more transparent

I'm not sure if I'll live to see
Some of my idealism come true
But I know there'll be no debris
When the needed deaths have been brouht through

I have this dream I'd like to be fulfilled
If you could help me carrying it out I'd be thrilled

I'll be taken by arrogant
If I'd say to let go what you possess
But I'm human too and desperate to clean this mess

quinta-feira, abril 05, 2007

Sou (rasgado)...

Sou um sonho
Que rasga uma vida
Que rasga um passado
Que rasga o tempo
Sou os pedaços
Do sonho rasgado
Deitados ao vento
Esquecidos na mão
Sou uma sombra
Erguida no sangue
Rasgada da vida
Na vida rasgada
Sou uma ave
E um futuro cansado
No tempo rasgado
No tempo perdido

Sou um mestre
E uma luz inquieta
Que rasga estas trevas
Deixadas para trás
Sou o mar
E o navio naufragado
Rasgado entre as trevas
Deixado à lembrança

01/08/2006
16:58

quarta-feira, abril 04, 2007

They tell me...

They tell me to pursue material richness
They tell not to be absorbed in my dreams
They tell me to prosper by means of elusiveness
They tell me everything is exactly as it seems

They tell me to avoid living my inner self much
They tell me ‘bout the dangers of authenticity
They tell me to censor some words and body touch
They tell me how I should live my intimacy

They tell me what my likes and dislikes should be
They tell me I should give in to society
They tell me how unpleasant I am when I disagree
They tell me to forget about humanity

They tell me to repress my intuition and impulse
They tell me what I need to become a whiz
They tell me I should fit in like everyone else
They tell me how utopic true happiness is

They tell me to condemn and judge the wicked
They tell me to eventually collapse
They tell me not to show off my true self naked
They tell me not to follow my path but their maps

They tell me I can’t live completely unchained and free
They tell me to be doubtful of the unknown
They tell me that’s the way things are and will be
They tell me their doctrine and make it my own

They tell me their religions are fair moral judges
They tell me I won’t find liberation
They tell me they successfully handle their grudges
They tell me with almost convict expressions

12/05/2005

terça-feira, abril 03, 2007

(Oxi)Génio.

Atrás de mim fica o rasto fumegante de alguém que se consome,
Resquícios breves de uma combustão praticamente espontânea em que sou o comburente:
Nunca o combustível efémero.

Possuo a grandeza desse elemento químico que nos dá de respirar,
Que nos escuda contra ventos solares e radiações letais,
Que corrói os metais e alimenta combustões aparentemente similares à minha.
Sou a pressão atmosférica sobre uma esfera azul de desorganizado equilíbrio
Ateando incêndios e inflamando álcoois e éteres,
Labaredas que não possuo mas que são minhas.

Expludo como gasolina num motor de combustão interna para mover-me.
O atrito da estrada gasta-me os pneus e abusa da minha entalpia.
Sou esse mesmo atrito e esses mesmos percalços,
E sou a viagem há tanto tempo planeada,
Esquecida ao nascimento.

No fim, apenas cinzas…
Morno.

Frio.

17/02/2006
13:10

segunda-feira, abril 02, 2007

A misericordiosa morte...

Revezam-se momentos desconexos através da perturbada memória que julgo ser minha, momentos de esfusiante alegria e desconcertante tristeza, de conquistas gloriosas e derrotas frustrantes. Momentos que emergem sem convite desta coisa amorfa e difusa a que chamo recordação. Procuro-me em cada um desses slides amarelados pelo passar inexorável do tempo, desesperado por me reconhecer nalguma dessas imagens distantes, quase estrangeiras. Não dei pelo passar das horas, dos dias, dos meses, da vida inteira… Estive demasiado ocupado a esconder-me de tudo que quase me esqueci de que estava vivo… Vivo? Agora que me sinto na posse de algum discernimento livre de medos e vergonhas, agora que já é tarde de mais para realmente viver, procuro entender. Com flashes cada vez mais estonteantes, a panóplia de instantes que outrora julguei pertencerem-me continua a assaltar-me e inquietar-me, sucedendo-se ininterruptamente uns aos outros sem qualquer ligação entre si. No centro desse turbilhão impiedoso, eu, numa inquietação que interfere com o meu discernimento e me impede de processar com sobriedade todas as memórias que giram à minha volta incessantes. Aperto a mão direita fechada contra o peito, numa tentativa vã de diminuir a dor dilacerante que cresce a cada momento dentro de mim como um punhal preso dentro do meu coração que tenta agora escapar da sua cela, investindo violentamente contra a minha carne num acto de desesperado desejo de libertação. Com a outra mão, erguida a custo em direcção ao céu, chamo pelo meu derradeiro destino. Vem, vem neste momento sobre mim, pois aqui me entrego de total vontade à mercê da eternidade que me reservas. Vem, corre, galopa, voa até mim, liberta de uma vez esta adaga que dentro de mim fabriquei ao longo de tanto tempo. Hoje não sou mais do que um resquício daquilo que almejei ser, um subproduto de tantas escolhas desonestas e tantas mentiras que podia ter evitado se não tivesse vergonha de mim mesmo. Agora resta-me apenas desesperar pelo misericordioso golpe que sei aproximar-se de mim com velocidade crescente. Ligeiramente aliviado da dor que me dilacera por dentro, empurro para fora o ciclone de recordações que começa a apertar na minha direcção, num acto angustiado para não ter de reviver mais uma vez a farsa que foi a minha vida.
Procuro entender… Entender as pessoas, entender as leis, os preconceitos, as guerras, as religiões, o mundo, a existência. Mas a compreensão dessas coisas há muito se perdeu no marulhar das ondas do tempo, algures entre o ontem e o hoje.

08/01/2007
14:28

domingo, abril 01, 2007

A ti, companheira.

Uma lágrima…
É tudo o que a vida nos permite quando se nos é negada.

Já chorei todas as dores que alguma vez, nalgum fugaz momento, me assaltaram quando mais desprevenido me encontrava.
Já chorei as dores que me acompanham noite e dia com maior entusiasmo do que a minha própria sombra; cada uma delas chorei já.
Já chorei as dores que quase desprezei por pequenas que eram e grandes que fazer passar se queriam.
Já chorei as dores que me atormentam periodicamente, em intervalos regulares que oscilam entre instável serenidade e frágil amargura.
Já chorei as dores que nem dores eram, mas apenas teimosia ou dissimulação.
Já chorei as dores que de certeza me esperam ao virar da próxima esquina, sedentas e implacáveis.
Já chorei até as dores que nunca tive, mas que noutros encontrei e com eles resignadamente partilhei.
Já chorei tantas dores…

Já chorei o sol que se põe e o dia que amanhece.
Já chorei a partida e a chegada.
Já chorei a paixão e a raiva.
Já chorei o sucesso e o fracasso.
Já chorei o riso e o pranto.
Já chorei as pétalas e os espinhos.

Hoje, chorei uma lágrima nova.
Hoje, a chuva que os meus olhos verteram nunca antes sulcara as planícies do meu rosto.
Provei hoje um sabor salgado que nunca tão amargo me soubera.
Ainda ontem achava que já tinha chorado tanto, e hoje vejo que nada chorei.

A lágrima que hoje derramei continha tudo o que de mim há e não há.
Tinha amor e compaixão.
Amizade, lealdade, fraternidade.
Tinha sangue e suor.
Tinha alegria e sofrimento, temperados com carinho.
Tinha terra e tinha mar.
Tinha beleza, frescura, adoração.
Tinha resplendor.
Reverência, irreverência, saudade.
Amor, saudade.
Amor.
Saudade…

Uma lágrima…
É tudo o que me resta, para além das preciosas memórias que em mim guardo com enorme estima, e desta saudade que torna o meu peito apertado e pesado.
É tudo o que me resta para libertar esta sensação de inconformidade.

Esta lágrima, hoje e sempre, é tua.
É tua.
Hoje.
E sempre…

27/03/2007
21:51